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terça-feira, 10 de setembro de 2019

"A nossos pés, espraia-se a cidade"

Já aqui referi o resultado da passagem do escritor Vicente Blasco-Ibañez por Macau em Janeiro de 1924 no âmbito de uma longa viagem que o autor (1827-1928) passaria para escrito na obra "A Volta ao Mundo" publicada em três volumes (Macau surge no segundo volume).
Recupero neste post alguns excertos:

“Às primeiras horas da manhã, embarcámos para Macau. Vemos em frente do vapor numerosos grupos de chineses. Uma força de polícia regula-lhes a entrada , um a um, na prancha que liga o barco ao cais. São todos revistados, da cabeça aos pés e só podem passar para diante quando o agente industânico está convencido de que não levam sequer o mais pequeno canivete. Como estes homens amarelos se parecem todos uns com os outros pelo fato azul e pelos rostos quási iguais, é difícil distinguir um cooli pacífico que vá tratar dos seus negócios a Macau, de um pirata que prepare com os companheiros o ataque ao vapor, a meio da viagem. (…)
Macau, que primitivamente se chamou Cidade do Santo Nome de Deus na China, e depois viu substituído este nome pelo de Macau, de origem indígena, seria grandemente exótica se de repente se pudesse transladar para as proximidades de Lisboa. Vista aqui, depois de se haverem visitado as principais cidades do litoral chinês, faz lembrar o antigo Portugal e parece emanar dela um longínquo sopro do nosso hemisfério…(..)
O governador actual, o doutor Rodrigo Rodrigues, é um médico que gozava merecida reputação na pátria antes de entrar na vida política, republicano como os que desinteressadamente combateram a monarquia e que depois tendo triunfado, tiveram de abandonar as suas antigas profissões para servirem a nova República portuguesa.
Durante as horas passadas em Macau pude apreciar o que o meu amigo Rodrigues tem feito em alguns anos de governo. Uma cobrança de impostos, bem administrada, deu o suficiente para a construção de um porto grandioso, no qual poderão fundear transatlânticos de grande tonelagem. (...)

A nossos pés, espraia-se a cidade, a massa apertada dos seus telhados, escuros como os da Europa. De vez em quando, surgem no meio deles telhados chineses e ornamentos dos telhados de pagodes budistas. Muitas fachadas estão pintadas de cor-de-rosa ou de azul, cores ternas que dotam de uma alegre juventude as construções antigas.
Para lá da cidade, ilhas e canais repetem-se até ao infinito, como se a terra toda fosse uma sucessão de braços de água que rodeiam picos emersos. Nestes canais de margens altas, que têm uma metade longitudinal da sua faixa líquida negra como o ébano e a outra metade dourada pelo sol, baloiçam sob a brisa da tarde dúzias e dúzias de juncos de velame recurvado, como o telhado dos pagodes. Todos eles vêm até Macau ou regressam
a portos cujos nomes arrevesados só os seus tripulantes conseguem pronunciar. A vista tropeça no “lombo” escuro de uma montanha, julgando que é o limite do horizonte. Para lá da sua linha oblíqua, existe algo que brilha como uma poça de metal em fusão. É mais um canal do estuário, um estreito navegável pelo qual passam outros juncos e sampanas, apequenados pela distância. 


Mais além, uma nova montanha, que é outra ilha; depois, um fragmento de canal, em terceiro ou quarto plano; e novos terrenos insulares, até que todo este mundo submerso e emergente se esfuma, por acção da distância, confundindo-se o azul das montanhas distantes com o azul das águas e do céu. (...)
"Visitamos por fim o mais interessante para nós, o que nos trouxera a Macau com o atractivo da devoção literária. O governador mostra-nos o jardim onde se encontra a gruta em cujo interior Camões meditava e escrevia, durante as horas de calor desta região quase tropical. Este jardim tem atractivos iguais aos dos móveis que começam a envelhecer. Nos seus alegretes e bosques misturam-se a melancolia das antigas hortas chinesas e a majestade dos jardins portugueses de Sintra. Vemos estátuas de mandarins que têm a cabeça e as mãos de louça; o resto do corpo é feito de plantas a que os jardineiros com as suas tesouras deram forma humana.
O retiro predilecto do poeta foi desfigurado e banalizado por uma admiração excessiva. A gruta não é mais do que um corredor entre grandes pedras, ocupado agora pelo busto de Camões. Todas as rochas próximas desapareceram sob lápides que têm esculpidos fragmentos poéticos do autor de Os Lusíadas ou versos de autores célebres que o glorificam. Tantas placas de mármore dão a este local, que, com razão, se pode chamar poético, o aspecto antipático de cemitério.
Alguns moradores de Macau, especialmente casais novos, vêm merendar para o histórico jardim e, ao som de um gramofone ou de um harmónio, dançam diante do busto coroado de louros. Não importa; é fácil suprimir com a imaginação essas fealdades da realidade e ver o antigo jardim tal como foi, com os seus bosques em colina, a sua pequena gruta livre de adornos, e meditando, sob o fresco arco, o fidalgo português que perdeu um olho na guerra, soldado heróico como o manco Cervantes, e desterrado de Goa para um dos pontos mais distantes da monarquia portuguesa, então senhora de colónias nas costas de África, no mar das Índias, e nos arquipélagos situados para além do estreito de Malaca"

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