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sexta-feira, 22 de maio de 2015

Macau, trinta anos depois

Num artigo publicado no jornal Ponto Final a 21.5.2015, António Ramalho Eanes, ex Presidente da República de Portugal evoca a viagem oficial que fez à República Popular da China há trinta anos (Maio de 1985).
Largo Ramalho Eanes em Coloane na década de 1980
Uma convivência secular cimentou entre os povos português e chinês um tipo de relação que não é, apesar de tudo, frequente na História. Ter-se-ão os nossos Estados desentendido em diversos momentos históricos, mas sempre, entre o povo português e o povo chinês, em especial em Macau, existiu um entendimento profundo. Nenhuma vicissitude realmente séria ensombrou as relações entre a China e Portugal, e nunca, entre os dois países, se registou qualquer conflito que, pela sua gravidade, originasse uma situação de guerra.
Interesses mútuos, da China e Portugal, satisfação encontraram numa pequena parcela do grande território chinês, sem quaisquer ambições portuguesas de expansão e domínio, que sempre seriam néscias. E o clima de diálogo que foi possível preservar, em todas circunstâncias, presidiria, também, ao processo de negociação, adulto, honesto e responsável. Apesar de tudo quanto se referiu, fácil nunca foi a governação de Macau dado, sobretudo, a sua situação de manifesta vulnerabilidade relativamente à Grã-China, com a qual Portugal, parco em recursos e instrumentos de acção estratégica, manteve, nas palavras do Embaixador Duarte de Jesus, “através dos séculos um diálogo assimétrico, ambíguo e, por vezes, incoerente”. Porém, Portugal foi sempre capaz de ultrapassar dificuldades e assegurar a continuação da governação do território.
No âmbito da histórica solução imperial portuguesa, a questão de Macau não se prendia, apenas – e meramente –, com a questão de devolver a administração de Macau à China, mas de encerrar o ciclo imperial com a dignidade histórica que a nossa presença no Oriente e, em especial, a nossa presença em Macau, e a acção desenvolvida no território, mereciam, exigiam, mesmo. Além de tudo isto, Macau era, ainda, de algum modo, a antecâmara das futuras relações de Portugal com a China. Mostrar, nessa antecâmara, honestidade, competência e respeito intransigente pelos compromissos bilaterais assumidos era elevar a imagem de Portugal, criar melhores condições de relacionamento futuro, e potenciar a nossa capacidade de intervenção internacional.
Creio que a importância de Macau, na história e no devir do País, exigem que se recordem alguns momentos da sua tradição. A Lei 7/74, de 27 de Julho, que reconhecia o direito à autodeterminação e independência dos territórios coloniais, e que foi comunicada à ONU pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, excluía Macau dos territórios coloniais portugueses, satisfazendo, assim, a posição chinesa (a China considerava Macau território seu). No seguimento lógico daquela posição se enquadra a Nota do Ministério dos  Negócios Estrangeiros de Portugal, de 5 de Janeiro de 1975, que estabelecia que “para o governo português, o de Pequim era o único representante de todo o povo chinês; que a Formosa era parte integrante da República Popular da China; que o território de Macau
poderia ser objecto de negociações, no momento considerado oportuno por ambos os governos”. Outras posições se seguiram, reiterando as posições assumidas nestas duas ocasiões.
A Constituição da República Portuguesa, (aprovada a 2 de Abril de 1976 pela Assembleia Constituinte) estabelece, no seu Artº. 52º, 2. 4., que “o território de Macau sob administração portuguesa rege-se por estatuto adequado à sua situação especial”. O texto para o estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e Portugal, aprovado em Conselho de Ministros, a 4 de Julho de 1978, que serviu de directiva política ao processo negocial entre Portugal e a China, desenvolvido em Paris (Embaixadores Coimbra Martins, por Portugal, e Han Kehua, pela República Popular da China), define a posição de ambos os governos sobre a questão de Macau. Nesse texto se assumiu “o compromisso, de uma e outra parte, que nunca haveria iniciativa unilateral no sentido de uma modificação do status quo, nem via de abordar o problema que não fosse a negociação, em momento considerado oportuno por ambas as partes”. Havia “uma posição de princípio chinesa”, sobre Macau, “mas (…) também o reconhecimento do peso da História.” As negociações foram concluídas em Fevereiro de 1979, durante o governo do Prof. Mota Pinto.
Na visita do Vice-Primeiro-Ministro à República Popular da China, em Maio de 1984, a questão de Macau foi abordada. As autoridades chinesas admitiram, na altura, que o estatuto que iria reger futuramente Macau seria tendencialmente idêntico ao que fosse acordado, com as autoridades britânicas, para o território de Hong Kong. Posteriormente, declarações atribuídas pela Agência France Press ao Primeiro-Ministro português, durante a sua visita ao Japão, em Junho de 1984, de que “Macau continuaria a ser administrado por Portugal, mesmo depois da recuperação da soberania de Hong Kong pela China”, levantaram alguma preocupação na República Portugal da China. Mas, logo a 9 de Julho de 1984, o Governo confirmou, perante o Presidente da República, não ter havido modificação na posição portuguesa relativamente a Macau, tendo-se tratado de um erro na tradução das declarações proferidas pelo Primeiro-Ministro no Japão e que telegramas, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para as Embaixadas de Portugal em Pequim e Tóquio, esclareciam o assunto.
A minha visita, enquanto Presidente da República, à China, em Maio de 1985, situa-se no quadro definido e consequente situação irreversível, visto que a Portugal apenas cabia cumprir as obrigações acordadas com a República Popular da China, respondendo à responsabilidade assumida com a população de Macau, respeitando a sua dignidade e interesses, intensificando a sementeira dos seus interesses naquele território da promissora China. Na agenda de conversações, estabelecida entre Portugal e a China, para a visita, não se indicava concretamente Macau. Havia, no entanto, um ponto que se referia a interesses de âmbito comum. Seria, pois, natural que essa questão fosse aí incluída. Na preparação da visita, nomeadamente com o Governo, essa eventualidade foi abordada, e entendeu-se que era de manter o estabelecido desde sempre, nomeadamente no Acordo de Paris: a transferência de administração poder-se-ia fazer mediante discussão diplomática entre as duas partes e o acordo que viesse a ser estabelecido. A reacção de surpresa em Lisboa à notícia de que os dois países tinham decidido iniciar um processo negocial visando a transferência de Macau foi natural, por dois motivos.
Primeiro, a opinião pública portuguesa não tinha sido informada de que os chineses já tinham mostrado interesse em que o problema da administração de Macau fosse negociado, e que tal merecera a concordância governamental portuguesa (vice-presidente do governo do «bloco central»). Segundo, porque houve intervenções no Parlamento, essas menos compreensíveis, pois os parlamentares tinham obrigação de conhecer o Acordo de Paris, com o qual, aliás, se tinham congratulado.
Quando a República Popular da China propôs a Portugal encetar o processo negocial para a transferência da administração de Macau para a China, Portugal não tinha nenhuma razão, nem objectiva, nem subjectiva, nem poder, para dizer que não queria discutir a questão. O que se passou na minha visita à República Popular da China, em especial no que se reporta a Macau, consta da acta nº 9 do Conselho de Estado e elimina quaisquer dúvidas históricas, que existissem, sobre o que então se passou. No encontro com Zhao Ziyang tive ocasião de dizer que, relativamente às questões pertinentes ao relacionamento bilateral entre a República Popular da China e Portugal, abordava a questão de Macau, assinalando, desde logo, ser um problema que a História legara, quer a Portugal, quer à República  Popular da China e que me parecia que o entendimento amigável, alcançado em 1979, aquando do estabelecimento de relações diplomáticas entre ambos os países, permitia uma clara e ajustada caracterização da situação. Nos termos de tal entendimento, ficara reconhecido e assente ser Macau território chinês. No entanto, e até ao momento em que fosse definitivamente entregue à República Popular da China o exercício integral da respectiva soberania, ficaria a administração do território confiada à jurisdição portuguesa. Atenta essa situação, encontrava-se Portugal disponível para, em momento a acordar, diplomaticamente, serem encetadas conversações sobre a transferência da administração de Macau. Era convencimento de Portugal que o processo negocial seria iniciado quando as duas partes o entendessem, mas em qualquer circunstância com o objectivo e a preocupação de preservar os legítimos interesses da República Popular da China, de Portugal e de Macau.
Assim, a 13 de Abril de 1987, o governo da República Portuguesa e o governo da República Popular da China assinam uma Declaração conjunta em que estabelecem que “a região de Macau (…) faz parte do território chinês e que o Governo da República Popular da China voltará a assumir o exercício da soberania sobre Macau a partir de 20 de Dezembro de 1999”.
O acordo conseguido, “em conformidade com o princípio «um país, dois sistemas»”, honrou a República Popular da China, respeitou a dignidade de Portugal e salvaguardou os justos interesses de Macau. Justo é referir o papel do último governador português do território, General Vasco Rocha Vieira, que dotou Macau de especiais condições,  internas e internacionais, que em muito potenciaram o seu interesse para a China e contribuíram decisivamente para o sucesso da transferência, ao actuar na adequação dos diferentes subsistemas sociais (educação, saúde, justiça, etc.); ao manter um clima de dialogante abertura, legítima exigência e cuidada transparência para condições criar para um salutar relacionamento de Portugal com Macau e com a China, e de Macau com os países africanos de língua oficial portuguesa. 
O futuro reserva-nos, estou certo, caminhos de amizade e cooperação que a China e Portugal interesse têm em continuar a percorrer com mútuo proveito. 
António Ramalho Eanes

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