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sábado, 13 de julho de 2024

Uma lição bem à Oriental

Tinha chegado à Ilha da Taipa (Macau) havia apenas um mês, comandava o único posto militar lá existente, nessa ilha isolada de Macau e da Ilha de Coloane. Perto do quartel, havia uma carreira de tiro militar e na parte final da mesma estava localizado um imenso cemitério chinês.
Na cultura e geomância chinesa e seu Fong Soi, os cemitérios devem serem construídos nas colinas e virados para o mar, sempre que for possível, dando assim o maior descanso aos defuntos e sorte perpétua, porém este na ilha da Taipa tira só uma vista para o mar, visto ficar no sopé de uma montanha.
Os familiares vão junto das campas de seus antepassados orar e ofertarem comida, bebidas e frutas. Muitas das campas são enormes, quase sempre com um formato de ferradura. Por altura dos dias de finados chinês, cujos dias variam segundo o calendário chinês, este ano de 2008, se processou em Abril e será celebrado em Outubro, as famílias dos falecidos vão em romaria prestar homenagem aos seus antepassados lhes levando, depende das posses de cada uma, um leitão assado, uma galinha já cozida, arroz, vinho e fruta, queimando três pivetes e na posição de sentido fazem três vénias, curvando a cabeça em direcção ao chão e queimando panchões para afugentarem os diabos, estas práticas seguem as regras milenárias herdadas.
Foi por uma dessas alturas que um soldado da minha companhia passou pelo cemitério e lá viu um leitão assado e o roubou, porém foi visto por um dos familiares. O referido soldado, por sinal alentejano, convidou alguns dos seus colegas, foram comprar cervejas e comeram o leitão.
Os chineses depois de se reunirem com seus familiares foram até ao quartel e perante mim relataram o sucedido; fizeram-no calmamente e desejavam que eu mandasse chamar esse militar para lhe dizer que tinha feito uma má acção.
Sobre o meu comando tinha somente 10 militares que chamei à minha presença, tendo o chinês reconhecido o militar. Mandei retirar os restantes e fiz-lhe ver que o procedimento que tinha tido, não era correcto, visto que além de ter cometido um roubo, tinha igualmente ofendido os familiares do falecido e a sua cultura.
Esperava eu uma resposta pedindo desculpas ao senhor ali presente, mas a falta de cultura do militar levou-o a dizer que tinha somente tirado e comido o leitão, pois era um desperdício ali ficar, visto que o falecido o não iria comer.
O senhor chinês que se comunicava comigo em inglês, sabia algo de português e entendeu, por alto, mas acertadamente, o que o militar tinha dito e ficou ofendido; disse que ele era um pirata em correcto português, fez o mal e não quer aceitar as responsabilidades.
O militar ia ripostar quando eu o mandei calar e pedir desculpas ao senhor, e se ele continuasse com a teimosia de ser mais superior que o chinês eu o castigaria. Só assim pressionado olhou para o chinês e disse com voz baixa, quase por favor: desculpa!
O senhor então pediu-me para eu traduzir para ele estas palavras, que jamais me esquecerei e que deram uma enorme lição de civismo e de humanismo: "Esse soldado falou ser um desperdício nós colocarmos um leitão e toda a comida na campa do falecido, se ele jamais a irá comer, mas esta é a nossa tradição e terá que ser respeitada por todos quer seja chinês ou ocidental, nós sabemos perfeitamente que o nosso antepassado jamais irá comer tudo aquilo que lhe ofertamos. Da mesma forma que os vossos antepassados jamais irão sentir o odor das flores que colocam em suas campas, porém vós o fazeis por ser esse o vosso culto que nós respeitamos".
Desta enorme lição de moral poderemos tirar as nossas ilações, pois cada povo tem sua religião, suas tradições e suas culturas que devem ser respeitadas, só assim no mútuo entendimento e tolerância se poderá viver em paz e harmonia.
Texto de António Cambeta em 2008

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