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quarta-feira, 7 de maio de 2014

“The Lone Flag”: memórias do cônsul britânico em Macau

Sobre Macau no período da “Guerra do Pacífico”, bem longe de tudo estar dito, quase tudo continua por dizer. Para além de um primeiro livro dado ao prelo há menos de dois anos, que se pode considerar ter abordado a questão em profundidade, escrito pelo jornalista João Botas, o panorama bibliográfico nessa matéria resume-se a uma ou duas monografias, um livro de memórias, artigos de jornal avulsos e pouco mais.
Face a esse panorama, a importância de “The Lone Flag”, livro da autoria de John Pownall Reeves, o cônsul britânico que permaneceu em Macau durante toda a guerra, salienta-se por si só. Mas mais ainda se agiganta por ser um testemunho privilegiado, contado na primeira pessoa por alguém que viveu por dentro as mais diversas situações, e conheceu os quês e porquês de acordos, alianças e relações internacionais que ainda hoje nos parecem misteriosas, ou nos causam pelo menos perplexidade. O cônsul John Reeves explica muitas delas num discurso de inquestionável simplicidade literária, mas que revela um domínio sólido da escrita, alinhando fluentemente uma narrativa que prende o leitor do princípio ao fim.
O livro vale a pena não só pelo que revela, mas também pela forma como o faz e, acima de tudo, pelo modo como desfaz alguns mitos que circulam por aí sobre esse período terrível e conturbado, que na parca bibliografia disponível é geralmente caracterizado como anos de festas, bailes e torneios desportivos intermináveis. Não foi assim, ou melhor esteve muito longe de ter sido apenas assim. De facto, os bailes, os saraus e as festas faziam antes parte de um plano de guerra meticulosamente planeado por Reeves e destinado a manter elevado o moral de uma comunidade de refugiados vindos quase todos de Hong Kong,
que se arrastavam penosamente pelos centros de acolhimento disponibilizados para o efeito, nomeadamente o Grémio Militar (actual Clube Militar), o Clube de Macau e o desaparecido Clube de Sargentos, instituições sedeadas em edifícios que estavam preparados para tudo menos para acolher refugiados e mais ainda num tão elevado número. Neste âmbito, Reeves desfaz algumas imprecisões de ordem histórica e, como disse, uns tantos mitos, nomeadamente no que diz respeito aos propalados braços abertos e ao calor com que os refugiados foram recebidos pelos seus irmãos de Macau. O que se pode deduzir do que diz Reeves é que reinou mais a indiferença, senão mesmo a hostilidade, do que o calor. Para compensar, Reeves salienta por contraposição a acção da igreja católica, que parecia conseguir multiplicar os pães que não existiam para matar a fome a uma população que tinha crescido em pouco tempo de cerca de cem mil almas para mais de meio milhão (há quem diga que chegou a um milhão, mas na ausência de estatísticas ficam os números do cônsul britânico). Ainda para mais, uma população quase exclusivamente confinada 
John Reeves
aos limites da península de Macau, cuja superfície era então menos de metade do que é hoje. Reeves, ele próprio um católico praticante, enaltece a acção da igreja e em particular a dos Salesianos, que para além do apostolado ajudavam também, sempre que podiam, na protecção e fuga de prisioneiros de guerra e aviadores abatidos pelos japoneses na região. Neste ponto não pode deixar de dizer-se, igualmente, que foi graças aos salesianos que Reeves se pode manter em comunicação com o comando aliado em Chunking, onde estava sedeado o governo da chamada “China livre”, beneficiando de um emissor clandestino que operava no colégio dessa ordem situado na Rua Central. 

Fica assim a saber-se que a igreja católica pendia mais para os aliados do que para os japoneses, mas principalmente que o governador Gabriel Maurício Teixeira, que sabia pelo próprio Reeves da existência desse emissor, permitiu sempre que operasse, demonstrando assim o seu lado resolutamente anglófilo. Esse posicionamento do comandante Gabriel Teixeira poderá explicar talvez o facto de, para além de não ter atingido o topo da carreira naval, não ter visto devidamente reconhecida a sua acção depois do que passou nos anos de fogo da colónia portuguesa da China. Provavelmente Salazar preferiria que o governador de Macau se declarasse mais propenso ao “eixo” para o deixar chegar a almirante.
Em “The Lone Flag”, Reeves esclarece também algumas facetas da amizade que o ligava ao seu homólogo japonês Fukui, que vivia paredes meias com o consulado britânico nas faldas da Guia. Dizem até que um corredor secreto permitia a comunicação entre as casas de um e outro, mas Reeves não fala nisso. Fukui seria assassinado por um comando a soldo dos próprios serviços secretos militares japoneses, a temível “Kempentai”. O incidente revestiu-se da maior gravidade, já que o governo nipónico acusou Portugal de responsabilidade no caso, por não ter garantido as medidas de segurança necessárias em torno do seu representante diplomático. Apesar de se saber à saciedade que o homicídio tinha sido obra nipónica, Portugal não teve remédio senão pedir desculpas a Tóquio e indemnizar o governo imperial por perdas e danos.
No âmbito da segurança, Reeves fala de Macau como o verdadeiro “far west” que nesse tempo era. Descreve nomeadamente os frequentes tiroteios entre facções rivais que tinham lugar na Calçada da Guia, entre o Cemitério dos Parses, lá no alto, e o Jardim Vasco da Gama, cá em baixo. Nessas alturas, o cônsul não tinha remédio senão permanecer de portas bem trancadas no interior do consulado, protegido pelos seus vinte guarda-costas armados até aos dentes, e esperar que a tempestade bélica passasse, para então recolher à sua residência que ficava no lado oposto da cidade, perto de S. Tiago da Barra. O cônsul, para além dos guarda-costas, não dispensava um revolver de grosso calibre, que apenas tirava para tomar banho ou dormir. O correspondente da agência Reuters dizia que mesmo quando praticava no Tap Seak hóquei em campo, o seu desporto favorito, não se desfazia da arma. Reeves diz que a afirmação do amigo jornalista era um exagero e que entregava o revólver a um guarda-costas durante os jogos.
Reeves (1º à dta de pé) com um grupo de amigos no dia de
 Natal de 1941, data da rendição de Hong Kong, facto que
eles não conheceriam na altura em que foi tirada a foto
Aliás, é no âmbito da segurança que “The Lone Flag” desfaz um outro mito relativo desta vez ao temível 
Wong Kong Kit, o chefe de piratas que com o seu bando manteve Macau a ferro e fogo durante esses anos de guerra, tendo levado a cabo assaltos, raptos, homicídios e atentados bombistas que provocaram numerosas vítimas, perante a impotente passividade da polícia e dos militares portugueses.
Segundo a história corrente, Wong Kong Kit fugiu no fim da guerra para escapar às polícias de Macau, Hong Kong, China e E.U.A. que o queriam fazer julgar pelos seus hediondos crimes. Na caça ao foragido ter-se-ia destacado um agente da polícia de Macau, que teria descoberto o paradeiro do criminoso numa ilha da foz do Rio das Pérolas. Segundo ainda a mesma versão, o esperto polícia português prendeu o malfeitor, escondeu-o no porão de um rebocador que tinha pedido emprestado à “Royal Hong Kong Police”, a quem ficara de o entregar. Em vez disso, transbordou o preso para outra embarcação, rumando com ele a Macau. Wong Kong Kit nunca seria julgado, já que o mesmo polícia que o prendeu o abateu 
a tiros de pistola, alegadamente quando tentava fugir da carrinha celular onde era transportado, algures na Rua Francisco Xavier Pereira. 
Afinal, a história não foi definitivamente assim. De facto, segundo Reeves,o foragido foi apanhado por um grupo de guerrilheiros comunistas que o venderam aos americanos.Para o efeito, dois agentes do FBI deslocaram-se a Macau e o agente da polícia português limitou-se apenasa ser o intermediário no negócio, trazendo o procurado para Macau a salvo, ou seja, sem que no trajecto pudesse cair nas mãos dos ingleses.
Neste livro recheado de peripécias tudo são novidades e todas mereceriam destaque, mas fiquemo-nos apenas pela revelação do papel de Y. C. Liang, o grande magnata de Macau dessa época, que, com empréstimos vultuosos ao cônsul, viabilizou a protecção concedida aos refugiados pelo consulado britânico. Esse dinheiro pagava ordenados, dispensava cuidados de saúde e garantia alojamentos, o que ficava muito caro. Por outro lado, essas volumosas transacções financeiras fizeram com que na prática a pataca fosse vista como indexada à libra esterlina, mantendo, por isso, uma estabilidade que outras moedas, mesmo as mais fortes, não tinham, subindo e descendo vertiginosamente muitas vezes em apenas um dia.
John Pownall Reeves deixou Macau em 1946, para ocupar temporariamente um posto consular em Roma, local onde concluiu a escrita do livro “The Lone Flag”, que assina em 1949. Depois disso, passou ainda pela conturbada Indonésia do ditador Suharto, terminando a sua carreira como cônsul na cidade sulafricana do Cabo, onde se sumiria definitivamente no anonimato. Morreu ali na sua casa, recheada de preciosas recordações que amigos lhe tinham oferecido ou que ele mesmo tinha comprado nas pequenas lojas das ruelas de Macau, de que falava com a verdadeira saudade de um português. Mas morreu sem nunca mais voltar à China. E o seu livro permaneceu proibido pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros Britânico até ser agora dado ao prelo.
Artigo da autoria de João Guedes publicado no jornal Ponto Final 2.5.2014

John Reeves com a mulher e a filha. Foto de 1937 em Hankow, China
Fotos e legendas tiradas do livro "The Lone Flag - Memoir of the british cônsul in Macao during world war II", uma edição de Colin Day, Richard Garret e Hong Kong University Press. Muito em breve aqui no blog será publicada uma entrevista com os editores explicando os bastidores e os mais de 60 anos que este livro 'demorou' a ser publicado.

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