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segunda-feira, 5 de maio de 2014

Portugal-China: 500 anos

O estabelecimento dos portugueses em Macau, a partir da segunda metade do séc. XVI, permitiu o início de uma fixação duradoura no continente chinês e o consequente desenho de uma consistente rede de interesses comerciais, religiosos e militares numa geografia muito vasta que ia de Goa a Malaca e do Japão a Timor, por si só um mundo.
Esta globalização pioneira cruzou mares e sangues, culturas e mercadorias, inscreveu a complexidade e a abertura mental ao impensado na estrutura ontológica da arte de ser português no mundo.
Numa fase expansionista da história portuguesa, missionários, navegadores, comerciantes, militares e aventureiros reconfiguraram diversas linhas interpretativas da cultura chinesa, as mais das vezes casando a intuição com a experiência valorativa, fixando, com um impressionismo notável, a dimensão geoetnográfica e histórica. A sinologia, esse conhecimento pluridimensional da civilização chinesa, enquanto saber em construção, não parece ter, aparentemente, beneficiado do legado de Maquiavel ou das subtilezas das vivências de Montesquieu, alinhavadas nas Cartas persas. O Colégio de S. Paulo, em Macau, justamente considerado a primeira universidade de matriz ocidental no Extremo Oriente, não obstante a sua vida efémera, ajudou a fixar a sinologia na tradição intelectual portuguesa.

Pelas veredas do proselitismo avançou-se na lexicografia e na linguística, na música, na matemática, na cartografia, na filosofia ou na medicina. O conhecimento era realmente uma enciclopédia estratégica aberta à alteridade. De conveniência.
O longo fascínio pela China tem-nos legado uma literatura riquíssima de sentidos, onde arte, religião e espiritualidade, filosofia e educação reorganizaram o modo de pensar, uma interculturalidade que na sua raiz é um projeto vital. Vital, porque nos limites da utopia. O Ocidente e o Oriente interpenetram-se e protagonizam desencontros culturais, religiosos, científicos e tecnológicos, numa mesmidade situada e essencial.
Álvaro Semedo é o clássico fundador da sinologia portuguesa e a sua obra Relação da grande monarquia da China transformou-se rapidamente numa referência internacional. O manuscrito da Relação ficou estruturalmente concluído em 1637 – no mesmo ano em que Descartes publica o Discurso do método –, sendo, contudo, trabalhado até 1640, e conhecendo depois a primeira edição em castelhano (1642), em italiano (1643, 1653, 1667 e 1678), em holandês (1670), em francês (1645 e 1667) e em inglês (1665). Admite-se que possam existir outras edições em outros tantos idiomas mas não há, por ora, um levantamento editorial exaustivo e fidedigno. Em Lisboa, sairia dos prelos da Officina Herreriana, em 1731, uma edição sintética da responsabilidade de Manoel de Faria e Sousa. Mais de dois séculos volvidos, em 1956, em Macau, foi a Relação da grande monarquia da China pela primeira vez integralmente editada na língua portuguesa, mercê do interesse e do labor de Luís Gonzaga Gomes, um dos grandes sinólogos portugueses contemporâneos. A extraordinária difusão internacional desta obra, resultante de mais de duas décadas de errâncias chinesas, aliadas ao estudo e aos contactos pessoais, deve-se essencialmente à seriedade e ao rigor com que o Celeste Império é descrito e analisado, não obstante, aqui e além, ser indisfarçável a presença de uma ética cristã e de uma pedagogia moralizadora. Para além do mais, introduz o Curso conimbricense e sua respetiva metodologia filosófica na China. E na história da sinologia é feita essa justiça a Álvaro Semedo que, embora tivesse estudado em Évora e em Goa, se pode classificar como um espírito estrangeirado.

A sinologia inscreve-se na filosofia e na filosofia da educação comparada, desde os alvores do séc. XIX, com o labor dos jesuítas e, depois, com uma indesmentível feição neotomista acentuada pelo magistério de Francisco Rondina, sem esquecer, também, a importante vertente burocrática, política, jurídica e diplomática da Procuratura dos Negócios Sínicos, da Repartição do Expediente Sínico e da Direção de Serviços dos Assuntos Chineses. O esforço de compreensão poderia, no limite, apontar à salvação do outro, como o homo viator pensado por Gabriel Marcel.
Pedro Nolasco da Silva, Manuel da Silva Mendes, Luís Gonzaga Gomes e Joaquim Guerra serão, porventura, os autores mais representativos da difusão do universo axiológico neoconfuciano e neotaoísta na cultura portuguesa, cuja receção está ainda por fazer. Todos foram mestres sem discípulos, num porfiado e solitário trabalho individual de fecunda exegese, de traduções e versões ou de labor histórico, lexicográfico e de criação literária. Jamais foi possível, por motivos políticos e administrativos, um enquadramento institucional que permitisse a criação da escola sinológica portuguesa. Assim, a sinologia portuguesa foi sempre uma solitária aventura individual. Sempre a começar de novo. Sempre em perpétuo esquecimento. Ontem como hoje.
De resto, Macau parecia viver uma conspiração de infelicidade. Nas Cortes Constituintes de 1821, o deputado Manuel Borges Carneiro propõe, com alguma insistência, que os espanhóis tomem posse de Macau por troca com a Galiza. Nada se concretizou, mas fica o registo da menoridade da inteligência por tamanho legado histórico.
Pedro Nolasco da Silva (1842-1912) foi talvez o mais erudito sinólogo português e o que melhores condições reuniu para fundar a escola sinológica portuguesa a partir da Repartição do Expediente Sínico. A Amplificação do santo decreto, do imperador Yongzheng (versão bilingue, português-chinês, com aparato crítico de Pedro Nolasco da Silva) foi uma oportunidade para se absorverem os valores de hierarquia, de tolerância ou de obediência como virtudes cardeais, para que as mudanças conjunturais não trouxessem efeitos devastadores para a organização da sociedade.
Manuel da Silva Mendes (1876-1931), oriundo do anarquismo e dos combates pela instauração da república em Portugal, nos Excertos de filosofia taoísta, pensa o taoísmo filosófico integrando-o no pragmatismo quotidiano dos valores, cuja assimetria era diretamente proporcional aos jogos de racionalidade. O taoísmo parece ser um anarquismo espiritual e místico.
Luís Gonzaga Gomes (1907-1976) divulga e difunde toda uma constelação ético-moral, com histórias exemplares, cuja interiorização parece apontar para o fim da independência do sujeito em face da manutenção de uma identidade corporativa neoconfuciana. O olhar contemporâneo dos portugueses sobre a cultura chinesa é tributário do enorme esforço intelectual de Luís Gonzaga Gomes, das suas traduções, dos seus ensaios monográficos ou da sua regular colaboração na imprensa de Macau.
Joaquim Guerra (1908-1993) é um espírito verdadeiramente renascentista. Traduziu os clássicos chineses, concebendo uma metodologia realmente inovadora para resolver complexos problemas linguísticos, lexicográficos e de tradução literária, incluindo um dicionário e a romanização da língua sínica.
A sinologia lega-nos uma reflexão crítica sobre um sistema codificado de preceitos sobre a problemática da piedade filial, sobre a compaixão, sobre a filantropia, sobre a sabedoria, sobre o corpo, sobre a hierarquia social, sobre o outro, sobre o amor, sobre o estudo, sobre os exames, sobre a política ou sobre o culto dos antepassados. Problemáticas, convenhamos, pouco sensibilizantes ao materialismo dominante numa sociedade técnica e dominada pela instrumentalidade. Para não falar da suspeição que impende sobre tudo quanto é exterior aos alicerces gregos da filosofia e do filosofar. Contudo, a sua instalação ôntica no ser traz novas formas de agir que se aprofundam na descontinuidade da condição humana.
Com Confúcio, vamos confrontar-nos com a racionalidade prática da ortodoxia mandarínica, com os preceitos da justiça e com a complexidade ética da piedade filial. Com Lao Tse emerge a metafísica da perplexidade, cujo valor máximo está na liberdade.
Muito esquematicamente, poderemos fixar a genealogia da sinologia portuguesa em quatro linhas de força, que ganharam vida a partir desse microcosmos que é Macau, com estéticas, hermenêuticas, ideologias e filosofias interdependentes, mantendo em comum apenas o modus cogitandi típico dos valores cosmopolitas da latinidade. O peso da linha histórico-cultural, quiçá excessivo, resulta essencialmente da fragilidade da linha erudita. A produção intelectual destes autores corresponde ao corpus maior da sinologia portuguesa:
a) Linha clássica: Bento de Góis, António de Gouveia, João de Barros, Álvaro Semedo, Gabriel de Magalhães, Gaspar da Cruz, Galiote Pereira, Fernão Mendes Pinto;
b) Linha histórico-cultural: José Miranda e Lima, Leôncio Ferreira, Bento da França, Francisco Rondina, José Gomes da Silva, Lourenço Marques, João Feliciano Marques Pereira, Manuel da Silva Mendes, Morais Palha, João Paulino Castro, Abílio Basto, José da Costa Nunes, Ferreira de Castro, Jack Braga, Manuel Teixeira, Benjamim Videira Pires, Almerindo Lessa, Leonel Barros, José Silveira Machado, Francisco Carvalho e Rego, Arquimínio Costa, Ana Costa Lopes, Celina Veiga de Oliveira, Graciete Batalha, Beatriz Basto da Silva, António Carmo, Jorge Rangel, Ana Maria Amaro, João de Deus Ramos, Cecília Jorge, Rogério Coelho, José Rocha Dinis, António Caeiro, João Guedes, Carlos Morais José, Hélder Fernando, Rogério Puga, Daniel Pires, Luís Sá Cunha, Carlos Marreiros, António  Conceição Júnior e João Botas;
c) Linha erudita: Joaquim Afonso Gonçalves, Pedro Nolasco da Silva, José Vicente Jorge, Luís Gonzaga Gomes, Joaquim Guerra, Daniel Carlier, António Graça de Abreu e Ana Cristina Alves;
d) Linha literária: Camilo Pessanha, António Patrício, Wenceslau de Moraes, António Patrício, Maria Anna Tamagnini, Deolinda da Conceição, José Joaquim Monteiro, José Santos Ferreira, Henrique de Senna Fernandes, Maria Ondina Braga, António Manuel Couto Viana, Fernanda Dias, Alberto Estima de Oliveira e Rodrigo Leal de Carvalho.
A filosofia comparada, com os arquétipos ocidentais e orientais, revê-se na sua radicalidade, na sua historicidade e na sua racionalidade para cimentar um discurso crítico divergente, porque centrífugo às ideologias, e promovendo uma sabedoria da vida cuja trajetória deve ser transmitida. A aliança das civilizações começa por este caminho.
O ideal de perfeição deve ser educado no espírito para repousar na conduta social.
Que grande síntese utópica não paira filosoficamente sob esse preceito?
Texto da autoria de António Aresta  publicado no volume colectivo coordenado por Miguel Castelo-Branco, “Portugal-China: 500 anos”, co-edição da Biblioteca Nacional de Portugal/Babel, Lisboa, 2014.
Obra de autoria coletiva e multidisciplinar, aborda diversas áreas que ilustram os 500 anos das relações luso-chinesas, designadamente: fontes históricas, tipografia e imprensa, cartografia, urbanismo e história da arte, missionação, história das relações internacionais, letras, artes, música, orientalismo e sinofilia, história da ciência e da tecnologia, linguística e história das migrações. No próximo post abordarei uma mostra que esteve patente na Biblioteca Nacional (em Lisboa) a este propósito.

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