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quinta-feira, 2 de maio de 2013

Quatro nomes que marcaram um século de jornalismo em Macau

A história da imprensa em Macau remonta a 1822, com o aparecimento do primeiro jornal, “A Abelha da China”. Desde essa data, o jornalismo praticou-se quase sem quebras, embora se tivessem registado períodos em que Macau, passou sem jornais e mesmo épocas, embora curtas, em que jornais foram mesmo dados à estampa escritos à mão.
 Edição fac-simile de 1994. UM/FM

No entanto o jornalismo verdadeiramente profissional é fenómeno muitíssimo mais recente, que surge quase explosivamente na primeira metade da década de 80 do século XX, com o aparecimento nas bancas de vários títulos diários, fenómeno que nunca anteriormente tinha acontecido. Antes disso, a maior parte dos títulos que a história regista eram quase todos semanários e o número de jornalistas que a eles se dedicavam a tempo inteiro muito diminuto.
O primeiro jornal diário a ser impresso com regularidade e longevidade foi “A Voz de Macau”, jornal que seria calado à bomba pelos japoneses durante a Guerra do Pacífico (a “Voz de Macau” sofreu três atentados bombistas, de que não resultaram vítimas mas que causaram avultados estragos nas instalações e abalaram seriamente a saúde financeira da empresa).
Seguiu-se-lhe em 1945 o “Jornal de Notícias”, que não era mais do que o sucedâneo do anterior “A Voz”, com nome diferente.
O “Jornal de Notícias” manter-se-ia em publicação, até 1975, data em que obrigado ao pagamento de multas, por infracções à liberdade de imprensa e sujeito a pressões de vária ordem, acabaria por encerrar definitivamente. Depois disso manter-se-ia em publicação, a “Gazeta Macaense”, como único diário, até à década de 80, data em que como se viu começaria a poder falar-se em jornalismo profissional em Macau. Essa nova situação resultou em parte do impacte em Macau, da revolução de 25 de Abril de 1974, que consigo trouxe novos conceitos atribuindo novos papéis à comunicação social e aos seus agentes.
Na estreita conjuntura histórica anterior, do jornalismo em Macau, é natural que jornais e jornalistas tenham desempenhado um papel, muito mais relevante na sociedade, do que se poderia supor. Caminhando isolados, o estatuto do editor e do próprio jornal eram, pode dizer-se em certa medida desmesurados.
Macau era, politicamente, uma cidade controlada pela figura do governador dotado praticamente de plenos poderes e socialmente pela Igreja católica.
Apesar do aparente cosmopolitismo era igualmente uma sociedade bastante fechada e conservadora. Todavia, pode dizer-se que a imprensa ainda que relativamente subserviente em certos aspectos, dadas as condições vigentes mostrou sempre um significativo grau de inconformismo. Esse posicionamento pode ser entendido na forma como era vista na generalidade pela Igreja Católica através do historiador, Monsenhor Manuel Teixeira, ele que era simultaneamente membro da União Nacional, o partido único do Estado Novo de Salazar.
Diz assim: - ...Os jornais liberais de Macau fizeram-se campeões das doutrinas condenadas do racionalismo, indo até à negação da divindade de Cristo, do naturalismo, prescindindo da religião na sociedade, do estatismo, como o monopólio do ensino pelo Estado e a supressão das ordens religiosas e até do derrotismo, advogando-se a extinção do Padroado do Oriente e da gesta missionária que nimbou de glória a Nação Portuguesa. Grande parte dos jornais macaenses malbarataram o tempo em lutas mesquinhas de política estéril. Tais foram o Independente, Oriente, O Porvir, A Verdade, O Liberal, o Echo do Povo, a Opinião, O Combate, O Petardo e o Echo Macaense. Por esta triste amostra se vê que o nosso meio ainda não atingiu a maturidade suficiente para dispensar a censura.
Monsenhor Manuel Teixeira, que escrevia este texto em 1965, deixava de fora pouco periódicos da história da imprensa de Macau, que não se tinham feito “campeões das doutrinas condenadas do racionalismo”. Todavia coibiu-se de mencionar o “Jornal de Notícias” (porque era nele que publicava os seus artigos?).
Curiosamente, o proprietário e editor do “Jornal de Notícias”, Herman Machado Monteiro, era ele próprio também um campeão do tal racionalismo “execrando”.
Republicano da primeira hora, Herman Machado Monteiro, abandonaria Portugal, fixando-se em Macau, numa espécie de auto-exílio político, por altura do golpe de 28 de Maio de 1926. Foi baseado nos princípios que defendia e na oposição à ditadura que sempre conduziu o seu jornal, que teria em Macau um estatuto semelhante ao que possuía em Portugal o jornal “República” de Raul Rego, salvaguardadas as diferenças de modo e de lugar. Apesar de não hostilizar directamente nem o regime vigente em Portugal, nem os poderes instituídos locais, o “Jornal de Notícias”, não deixava de utilizar as subtilezas da linguagem, ou os paralelismos com situações que ocorriam no estrangeiro, para denunciar atentados à liberdade e prepotências, que a censura activa, vigilante e rigorosa em Macau, no que tocava à imprensa de língua portuguesa, não deixaria passar em claro.
O jornal seria entretanto acusado de conformismo e alinhamento com o poder, mas nas entrelinhas lá ia dizendo o que podia.
No entanto as acusações de conformismo teriam mais a ver com a personalidade do proprietário, figura de prestígio e feitio conciliador sempre pronto a evitar conflitos, quando o podia fazer. Isto, apesar de ter visto o seu jornal várias vezes suspenso e multado.
O “Notícias de Macau” acabaria irremediavelmente em 1975, na sequência de um conjunto de multas por alegados atentados à liberdade de imprensa e pressões de vária ordem num momento da vida em que Herman Machado Monteiro já não se encontrava em condições de arrostar com a má fortuna, como dantes.
Figura bastante distinta de Herman Machado Monteiro tinha sido Domingos Gregório da Rosa Duque, que o antecedeu na liderança de “O Combate”, igualmente alvo dos anátemas de Monsenhor Manuel Teixeira. Em matéria de pergaminhos, Rosa Duque não ficava atrás do sucessor. De facto o seu republicanismo não suscitava dúvidas, já que tinha sido um dos poucos militares, que com Machado Santos, tinha estado na Rotunda, sem vacilar, de armas na mão, ajudando a proclamar a República, em 5 de Outubro de 1910.
Porém Rosa Duque possuía um feitio bem menos conciliador do que Herman Machado Monteiro, não se eximindo à polémica que chegava a ser por vezes truculenta.
O seu desassombro era tal que um ano depois da proclamação da ditadura militar em Lisboa, nas páginas de “O Combate”, de 23 de Abril de 1927, proclama a sua condição de alto dirigente da Maçonaria portuguesa, em polémica que manteria ao longo de vários números e que iniciou com o seguinte título de primeira página: - A Maçonaria, os estudantes reaccionários e “A Pátria”(“A Pátria” era o jornal católico rival, favorecido pelo governador, contra o qual Rosa Duque, terçava armas quotidianamente). Aliás “O Combate” tinha como lema que se destacava sob o cabeçalho - “pela Pátria e pela República”.
Mas o desassombro de Rosa Duque rivalizava, por seu turno com a personalidade igualmente frontal e determinada, de Constâncio José da Silva, director de “A Verdade”.
Igualmente estrénuo republicano, que, nunca se eximia da mesma forma que Rosa Duque, à polémica ou à campanha, sempre que achava haver justo motivo, Constâncio pontificou na imprensa de Macau durante as duas décadas anteriores.
Tão temido enquanto Jornalista, como respeitado causídico, a “Verdade” de Constâncio, esteve na base das alterações políticas resultantes da proclamação da república em 1910. Seriam as suas denúncias, que levariam a guarnição militar a pronunciar-se, cercando o Palácio da Praia Grande e obrigando à ponta da baioneta o Governador e o Juiz da Comarca a tirarem da gaveta os decretos da República e pô-los em execução.
A mesma “Verdade” levaria também, à efectivação da ordem de expulsão das ordens religiosas de Macau e finalmente à demissão do próprio governador Eduardo Augusto Marques (Eduardo Marques, que nunca abandonaria as suas convicções monárquicas e viria mais tarde a integrar um dos governos da ditadura).
Igualmente republicano, mas com personalidade distinta de Rosa Duque e Constâncio José da Silva, seria finalmente Francisco Hermenegildo Fernandes, cujo perfil se assemelharia bem mais ao de Herman Machado Monteiro, figura que nunca conheceu, já que morreu em 1923, ou seja, alguns anos antes da chegada daquele a Macau.
Francisco Fernandes, dirigiu durante muito tempo o principal jornal de Macau de então, o “Eco Macaense”, igualmente citado por Monsenhor Manuel Teixeira, que singrou nas últimas décadas da Monarquia.
De todas as personalidades ligadas à imprensa de Macau, Francisco Fernandes, foi sem dúvida uma das suas mais enigmáticas figuras. Apesar de ser um dos principais protagonistas do apoio local à revolução na China, que acabaria por desembocar também ali na proclamação da República em 10 de Outubro de 1911. Isto devido, principalmente às suas ligações íntimas com Sun Yat-sen. Pouco se conhece da sua vida e apesar das buscas empreendidas nesse sentido. Dele também não se conhece uma única fotografia que o identifique. Nem mesmo na campa onde jaz no Cemitério de S. Miguel.
Para além do jornalismo Francisco Fernandes, manteve também uma constante actividade política, integrando nomeadamente a vereação do Leal Senado. No entanto, das actas da câmara não consta igualmente nenhuma intervenção de vulto, da sua autoria. Nas actas da Câmara pouco resta mais do que o seu nome nas notas de presença e a respectiva assinatura. Esse facto contrasta com as posições por vezes radicais que o seu jornal assumia. Posições que por vezes chegavam a melindrar o relacionamento entre o governo de Macau e de Cantão nomeadamente quando o “Eco Macaense” empreendeu uma campanha pública em defesa das actividades de Sun Yat-sen em Macau (claramente subversivas) a coberto do exercício da sua actividade médica.
Esta e outras posições semelhantes redundaram naturalmente em várias suspensões do periódico e pelo menos uma vez na condenação em tribunal do próprio Francisco Fernandes, por difamação. Esta condenação que o levou à prisão, resultou de uma das polémica do jornal que teve como alvo o então secretário-geral do Governo, Horácio Poiares, que ganhou a causa. Curiosamente o bom relacionamento pessoal de Francisco Fernandes, com sucessivos governadores (a que a lei concedia poderes discricionários, para expulsar qualquer cidadão da colónia sem grandes justificações, o que não era expediente raro, nunca se verificou quanto a ele) foi sempre uma constante. Francisco Fernandes, já numa época tardia da sua vida, acabaria por, com a aquiescência do governador Tamagnini Barbosa, ver aprovado o seu ingresso num lugar confortável do funcionalismo público de Macau. A mesma estrutura administrativa da qual o seu “Eco” nunca deixara de denunciar os compadrios e as prepotências fosse em que circunstâncias fosse.
Francisco Fernandes, Constâncio José da Silva, Rosa Duque e Herman Machado Monteiro, foram as quatro figuras que mais marcaram um século peculiar da imprensa de Macau, feito de voluntarismo, causas, profissões de fé arrebatadas e talvez alguns excessos, mas sempre declaradamente em nome do ideal Republicano.
Artigo da autoria de João Guedes, jornalista e investigador da História de Macau, publicado no Jornal Tribuna de Macau.

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