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quinta-feira, 23 de maio de 2013

Carlos D'Assumpção: 1929-1992

Carlos Augusto Corrêa Paes D’Assumpção (1929-1992), advogado, jurisconsulto e político, era oriundo de uma família tradicional e bem instalada na sociedade macaense.
No Liceu Nacional Infante D. Henrique completa o ensino secundário, prosseguindo os seus estudos em Coimbra, matriculando-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Henrique de Senna Fernandes, companheiro de estudo e de boémia, recordava com grande nitidez: “os serões que tínhamos em torno da mesa de jantar ainda se repercutem na minha saudade. Conversávamos sobre os mais variados assuntos – os acontecimentos do dia a dia, a política nacional e internacional, os livros, o cinema, as novidades do burgo universitário. Expúnhamos as nossas ideias e opiniões, os nossos sonhos e ambições. Tínhamos discussões acaloradas, mas logo, antes de azedarmos definitivamente, interrompíamos para contar anedotas, histórias brejeiras e comentários saborosos sobre o eterno feminino. Macau estava sempre presente nas suas diversas facetas, um tema inesgotável”. Carlos D’Assumpção e Henrique de Senna Fernandes viviam na mesma casa, na Travessa do Olimpo, na cidade dos doutores.
Numa reunião com deputados em 1984 em sua casa
Em Coimbra, Carlos D’Assumpção revelar-se-á um aluno brilhante, concluindo a licenciatura em Direito com uma elevada classificação. Presidiu à Associação Académica de Coimbra em 1951-1952, uma rara distinção para um estudante ultramarino. Teve todas as condições, como realça Antunes Varela, para se doutorar e singrar na carreira universitária. Regressou às origens, a Macau, em 1953. Ingressa na advocacia, mais tarde no notariado e, finalmente, na actividade política. É lendária a história de nunca ter cobrado honorários a portugueses e a macaenses. Foi vogal do Conselho Legislativo, vogal do Conselho do Governo, procurador à Câmara Corporativa, deputado e presidente da Assembleia Legislativa, de 1976 a 1992. Em 1974, foi um dos fundadores da Associação de Defesa dos Interesses de Macau (ADIM), que publicou o jornal ‘Confluência’, onde abundantemente deixou colaboração.
Moradia Skyline onde viveu Carlos D'Assumpção

Os momentos de grande turbulência política que agitaram a contemporaneidade em Macau, o maoísmo do 1-2-3 e a dissolução da Assembleia Legislativa, no consulado do Governador Vasco Almeida e Costa, encontraram em Carlos D’Assumpção um defensor acérrimo dos valores nucleares da política, da segurança jurídica e do diálogo edificante e leal. Patriota e conservador, diplomata sagaz, político íntegro e homem probo, Carlos D’Assumpção é uma das figuras mais marcantes de todo o século vinte e que os acasos da história não permitiram que tivesse sido o último Governador de Macau.
Ao receber o Presidente da República, Mário Soares, na Assembleia Legislativa, no dia 17 de Novembro de 1990, profere estas palavras que revelam um pensamento político muito estruturado e coerente: “A miscigenação física e cultural não mudou os que sempre pautaram a sua vida em consonância com a do povo que, impelido pela ânsia criadora e pelo espírito de aventura e descoberta, trouxe até aqui os valores morais e espirituais da civilização ocidental. Tão pouco transformou o povo portador de uma cultura e sabedoria de milénios, com a sua própria concepção do mundo e da vida. Macau é um padrão europeu no Oriente, uma moeda rara e preciosa, concebida e cunhada pelo génio luso-chinês que importa preservar, sejam quais forem os custos”.
Foto de Bessa Almeida.
Numa entrevista ao jornal ‘Comércio de Macau’, em 1988, limitou-se a dar nota em voz alta, como se precisasse, de uma prática cimentada por uma coerência de anos a fio: “o trabalho para a minha terra fá-lo-ei sempre. Seja como advogado ou como simples cidadão, nunca deixarei de fazer aquilo que for necessário
pela terra que me viu nascer e à qual devo tudo o que sou hoje”.
Celina Veiga de Oliveira dedicou a esta figura ímpar uma investigação pioneira, convocando o testemunho dos seus contemporâneos de molde a não ficar perdida a sua lição de vida, a encruzilhada dos afectos e das amizades, e a sua visão ética e política sobre Macau e as suas gentes. É este desiderato que temos a obrigação moral de transmitir e de ensinar às gerações mais novas.
Jorge Neto Valente enfatiza, entre outras, a vertente profissional: “foi sempre, porque quis sê-lo, um jurista na política. Ele, que gostava muito da profissão que escolhera, tinha todas as qualidades para ser um bom advogado: era um estratega de grande mérito, o lutador que não abandonava um combate; dotado de memória prodigiosa e de uma argúcia espantosa, a sua inteligência rápida facilmente apreendia as situações que se lhe deparavam; sabia guardar segredo; os argumentos eram brilhantes, e muitas vezes dilemáticos, mas daqueles dilemas em que qualquer das opções arrasava os oponentes”.
São deveras importantes as apreciações dos diferentes Governadores de Macau, onde se destacam experiências, episódios, considerações ou reflexões sobre alguns aspectos escassamente conhecidos da actuação de Carlos D’Assumpção.
O general Garcia Leandro, o primeiro Governador de Macau após o 25 de Abril, recorda dois pormenores muito significativos: “houve duas acções na área legislativa, que foram de grande importância e que hoje talvez já estejam esquecidas, mas que eu gostaria de relembrar. Quando se preparou o Estatuto Orgânico de Macau, em 1975, o Dr. Carlos Assumpção deu uma grande ajuda em todos os passos que prepararam a sua versão final. Um outro grande trabalho legislativo foi a reforma tributária feita em 77/78, por proposta do Governador, projecto esse que quando passou para a Assembleia Legislativa em muito foi melhorado, tendo para o efeito sido significativo o trabalho pessoal do Dr. Assumpção”.
Um outro Governador de Macau, o general Melo Egídio, deixa vincado alguns traços do seu carácter: “defensor intransigente da coexistência harmoniosa entre as duas comunidades, portuguesa e chinesa, cujos aspectos característicos muito bem conhecia, revelou possuir uma invulgar capacidade de intervenção junto das mesmas. O seu comportamento isento e as atitudes que criteriosamente tomava nas mais variadas circunstâncias, por mais difíceis que fossem, granjearam-lhe o respeito e o apreço de ambas as comunidades que, com frequência, procuravam o seu conselho e apoio”.
O Governador Carlos Melancia lembra o seu patriotismo a propósito da comissão de redacção da nova Lei Básica: “foi uma das poucas individualidades macaenses de origem portuguesa que foi convidada especificamente pelas suas qualidades, pelos seus méritos, pela República Popular da China, mesmo sendo presidente da Assembleia Legislativa. Isto mostra bem o prestígio que o Dr. Carlos Assumpção tinha na República Popular da China. Pois não hesitou em fazer depender a aceitação deste cargo, sem formalmente obter, através do Governador de Macau, que representa os órgãos de soberania da República Portuguesa em Macau, a autorização do Sr. Presidente da República para aceitar aquele cargo. Entendia que, além de tudo, era um cidadão português e não podia aceitar cargos dum governo estrangeiro sem pedir autorização ao Sr. Presidente da República”.
O último Governador, general Vasco Rocha Vieira, aponta uma outra importante característica: “foi também um homem que soube defender e fazer ouvir Macau em Lisboa. Porque Macau, sendo pequeno e estando longe, necessita de ser ouvido e de ter uma voz com credibilidade. E o Dr. Carlos Assumpção, com a força e o prestígio que possuía, prestou inestimáveis serviços ao Território”.
Henrique de Senna Fernandes lamenta-se, “e desapareceu o escritor que podia ter sido, narrando as suas memórias e vivências, através duma lupa única, uma perda irreparável para Macau, para todos que o conheceram e para os vindouros”. Na mesma linha está o jornalista João Fernandes, “repetidamente instei com ele de que tinha de escrever as suas memórias, transmitindo alguma coisa do muito que sabia – até por ter participado activamente em momentos fulcrais – sobre meio século de história de Macau”.
José dos Santos Ferreira, Adé, fixou-lhe para sempre este perfil:
Um advogado tão sabedor
Macaense de tão grande aceitação
Que vive só para Macau
Com Portugal no coração.
Agustina Bessa-Luís nesse fabuloso romance que é “A Quinta Essência”, publicado em 1999, um romance inteiramente consagrado a Macau e estranhamente esquecido, lança este quase aforismo misterioso: “Macau continua a ser a porta da cultura ocidental, e os eruditos tem de que honrar esse pequeno território engastado na aba da China como um manto que vai arrastando consigo uma história fascinante”.
E foi uma plêiade de homens, homens como Carlos D’Assumpção, que permitiu que se fosse garantindo, geração após geração, uma identidade, uma memória e uma história singular e irrepetível. Macau consolidou-se assim.
Artigo da autoria de António Aresta publicado no JTM de 31-3-2011
Carlos D'Assumpção num cerimónia em 1982 no quartel de S. Francisco
Foto cedida por Ana Monge

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