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quinta-feira, 31 de maio de 2012

A-Chan, a tancareira


Nam Van - Praia Grande. Década 1920
O primeiro conto de ''Nam Vam - contos de Macau", de Henrique de Senna Fernandes intitula-se "A-Chan, a tancareira". Recebeu o Prémio Fialho de Almeida dos Jogos Florais da Queima das Fitas de 1950 da Universidade de Coimbra.
O blog Macau Antigo apresenta na íntegra esse conto.

Lançado originalmente em 1978, este é o primeiro livro escrito por Henrique de Senna Fernandes. A obra reúne seis contos que reconstituem o ambiente humano, histórico e geográfico da mais oriental das conquistas portuguesas. "Nam Van" é também o nome chinês da Praia Grande, em Macau, considerada centro da vida administrativa e social da cidade e zona residencial preferida de seus moradores, onde o escritor nasceu e viveu. “A Praia Grande, com a paisagem antiga dos seus juncos e a odisséia dos seus lorcheiros heróicos e aventureiros, inspirou-me os primeiros escritos e embalou-me os sonhos incipientes de escritor. A Praia Grande alimentou o fundo da minha sensibilidade e imaginação, com a nostalgia dos seus crepúsculos e a tristeza das suas neblinas de inverno”, descreve o autor na apresentação do livro. Em "A-Chan: a tancareira", escrito em Coimbra em 1950, Fernandes fala sobre a difícil integração entre os nativos chineses e a sociedade desenvolvida à parte pelos estrangeiros ocidentais. O conto narra a história da condutora de tancar, A-Chan, vendida aos seis anos pelos pais e levada à cidade branca dos portugueses. A personagem se envolve com um marinheiro português, a quem chama de "Cou-Lou" (homem alto) e com quem tem uma filha, Mei-Lai. O regresso do marujo, entretanto, impõe a A-Chan a dura realidade de aceitação de sua filha - que herda os costumes ocidentais do pai - na fechada comunidade chinesa. "Uma pesca ao largo de Macau" reproduz o dia-a-dia de uma pacata cidade e descreve, pontuando os ritmos, a paisagem e os sons locais, como no trecho: “A Rua da Praia Grande era a artéria chique, onde residia a gente mais abastada do tempo. Ao cair da tarde, os dandies percorriam-na, caracolando os seus alazões ou a pé, até ao Passeio Público que era o Jardim de S. Francisco, na época, um jardim fechado e muito frondoso, cumprimentando e derriçando as donzelas que vinham de cadeirinha, acompanhadas dos papás circunspectos ou da inevitável chaperone”. Como o próprio autor define no texto de introdução, "Nam-Van" é já no título uma evocação a Macau.
Eis, na íntegra, o primeiro conto do livro de HSF. A acção decorre em Macau da década de 1940.
A-Chan não era aborígene do Porto Interior. Lembrava-se confu­samente da infância, a aldeia cinzenta, perdida algures no delta. Poucas reminiscências perduravam na sua memória. Búfalos ruminando nas várzeas amarelas, homens, talvez parentes, debruçados no amanho duma terra ingrata. Um pagode, alcandorado na lomba dum cerro, calvos bonzas em lúgubres pantominas. Traficada pelos pais num terrível ano de seca, quando mal desabrocha­vam os seis anos, correra de mão em mão até desembocar no rio pela mão da Velha que a comprara a uma opulenta matrona de Seak-ki. Fora um negócio vantajoso para a idosa tancareira, pois nesses tempos não se adquiria uma mui-chai por preço tão comezinho. Mas para A-Chan aquela transação foi como uma dádiva dos deuses. AVelha conduziu-a para o extremo do delta, para a cidade branca dos portugueses e botou-a a trabalhar naquele pedaço de rio que era o Porto Interior. No começo, os labores foram difíceis, extenuantes para a sua min­guada compleição de tancareira incipiente. Mas a saúde triunfou e depres­sa se integrou naquela existência aventurosa. AVelha tratava-a com dureza, moía-lhe o corpo de pancadas. No íntimo, porém, o tratamento parecia-lhe melhor do que na casa aristocrática, pois a Velha era menos cruel e a vida mais pletórica de novidade.
Alguns meses de estágio tornaram-na exímia no mister. Guiava segu­ramente o tancar nos errores pelo rio, escapulia-se das correntes e da vizi­nhança minaz doutros barcos com ligeireza inusitada. Ninguém diria, ao vê-la remar, com a embarcação pejada de fardos e passageiros, que viera duma aldeia ignorada e fora adquirida, mui-chai, pela mão interesseira mas, no fundo, generosa da Velha.
Não era despreocupada a vida do rio. A luta pela tigela de arroz exsu­dava lágrimas cruciantes e todas as mulheres conheciam o acerbo travo do ofício. Mas A-Chan, embora não amasse o rio e a Velha, preferia-os à casa aristocrática, onde a escravidão fora mais penosa. O mulherio, que a recebera, de início, como estrangeira, acabou por aceitá-la no seu convívio. Ganhou amizades, porque não era mulher para cos­cuvilhices e, quando podia, auxiliava as companheiras necessitadas. Falava e sorria pouco. AVelha apreciava-a, porque era obediente e nunca se lamuriava da sorte. Nas noites serenas, costumava acocorar-se na rua marginal para es­cutar as narrativas das companheiras em que entravam donzelas, guerreiros, dragões, lendas do rio e do mar, intrigas de femeaço e confidências de amor. AVelha, sobretudo, tinha histórias encantadoras. Asua voz rouca timbrava doçuras, quando evocava a meninice longínqua, o tempo em que a vida do rio era mais fácil, quando as festas do Ano Novo e do Oitavo Mês se faziam com um punhado de sapecas. Quanta coisa sabia a Velha! Desde as mezinhas para tirar o vento sujo até os pós e exorcismos para afugentar o demônio.
Durante anos, viveu sem alteração, presa às labutas estrênuas da profis­são. Os seus vinte anos, pareciam não poder abstrair-se das imundas águas do porto, do seu cheiro característico e do lodo da vazante e mal pisavam a terra, medrosos de encarar os estrangeiros do diabo. A Velha morreu numa clara manhã de outono num grave acidente ma­rítimo. Acatou A-Chan fielmente os desejos da moribunda, fazendo-lhe digno enterro. Vieram os bonzas para os ritos, prantearam as amigas e as carpidei­ras e, por alguns dias, no pequeno mundo das tancareiras, lastimou-se aquela morte estúpida. Depois tudo voltou ao curso normal da vida. E a Velha lá ficou descansando, no cimo dum outeiro da ilha da Lapa, no meio da sua tribo.
Alforriada há muito, herdou os bens da Velha, que soube prodigamente compensar os seus méritos. Recolheu a herança sem alvoroço, com a mesma humildade com que expunha o corpo às pancadas, e, seguindo as tradições da patroa, continuou serenamente nas suas lides, agora associada a A-Lin, sua amiga dileta. Ficou transida, quando a guerra varou a cidade, mas logo reagiu porque era preciso trabalhar, se quisesse sobreviver. Nunca o ganha-pão lhe foi tão espinhoso, a fome tão negra. Com os japoneses insignificantes em redor, o ne­gócio diminuiu, dias havendo que nem um cobre auferiam. Endureceu-se-lhe o coração, tornando-se-lhe indiferente o drama dos pobres que formigavam na cidade, outrora risonha e feliz. Não a impressionava a tela fúnebre dos míseros que morriam à beira da marginal, trágicos inocentes duma sangreira que não podia compreender. Amancheia de arroz que tragava, custava-lhe tantos sofrimentos, que não podia reparti-la com quem quer que fosse.
Os seus dias teriam sido eternamente iguais se não sobreviesse um caso fortuito, que iria modificar o minúsculo âmbito da sua vida.Num baço entardecer de verão, ao singrar rente à canhoneira Macau, um marujo gritou para ela. Pedia em chinês inédito que o transportasse a terra e não foi difícil entendê-lo. Hesitou durante segundos, algo receosa desse homem louro, estatura descomunal. A-Lin, no entanto, que se jacta­va de conhecer muitos marinheiros, insinuou-lhe que acedesse ao pedido. Nunca tomara contato com os soi kuan de quem a Velha costumava dizer os podres. Via-os, amiúde, na marginal, nas lanchas e nos rebocadores, nos cais de embarque. Sempre fugira desses diabos como de aventesmas, duvidando de A-Lin, que os tinha na conta de bons e afáveis. E achava-se agora insolitamente em presença dum deles, que se obstina­va em servir-se do seu tancar. O marinheiro continuava a gesticular com sim­pático sorriso. Doeu-lhe uma recusa e timidamente convidou-o a embarcar. Limitou-se o marinheiro durante algum tempo a rogar-lhe os préstimos. E A-Chan não os negava, porque ele não só era liberal nas gorgetas, como também se lhe dirigia com delicadeza, sem os impropérios de quem paga.
Mas uma noite foi mais longe, numa dessas noites límpidas em que o luar jorra salpicos de prata no casario vetusto da cidade e no mar rumore­jante. Veio melancólico e dorido e instalou-se no barquito, perturbando a tancareira que se aprestava para o repouso. Não protestou A-Chan, afeita aos modos daquele homem. Recolheu a prancha que ligava a embarcação à terra, desamarrou as cordas e impeliu o tancar para o rio. Só então se recordou de A-Lin que fora patuscar com umas amigas. O toldo de madeira e rota não escondia ao marinheiro um bocado do céu, onde piscavam as estrelas. Do rio elevavam-se tênues sonidos dum povo que dormia. Marulhos de água nos cascos das lorchas e das sampanas. Pre­gões tristes de vendilhão de iguarias. Vago carpir de violino e flauta nativas, gorgeio de voz feminina a cantar no bairro de amor.
Alguma coisa varreu a alma do marinheiro, que viera melancólico e dorido. Quedou-se a olhar para A-Chan que lhe sentia a presença descomu­nal. Assomou-lhe então, uma sede de consolação da obscura e desprezível tancareira que, acima de tudo, era uma mulher. Chape-chape de remos, o vulto de A-Chan de encontro ao céu estrela­do, o marinheiro triste no escuro da embarcação... Perto da canhoneira, ergueu-se e ordenou-lhe que se afastasse para o mar. Atancareira mirou-o confusa, enquanto uma sensação tépida lhe in­vadia o corpo. Não murmurou uma palavra, mas obedeceu. O tancar fez-se rumo ao largo e sumiu-se no pó branco do luar. Noite mágica de verão... Noite de Macau...
II
Quando regressaram, ia a madrugada no fim. Algures crocitavam galos. Acidade modorrava na serenidade dum estio azul. Ainda era cedo para a lar­gada dos juncos. Os contornos serpeantes da Lapa eram agora mais nítidos, à luz das estrelas moribundas. O marujo penetrou na sua vida sem alvoroço, naturalmente. Batizou-o de Cou-Lou - Homem Alto - sem que todavia se lhe endereçasse deste modo. Aprincípio, as companheiras reprovaram o procedimento, abanando a cabeça em murmurações. Por fim habituaram-se a considerá-lo como seu homem. Era bem certo que não poderia viver eternamente só. Aliás nada ha­veria de mais banal do que descobrir um marinheiro ligado a uma tancarei­ra. Não valia a pena, portanto, barafustar. Assim todas as vezes que surgia à noite, junto do tancar, A-Lin saltava para as embarcações fronteiras e deixava a amiga sozinha, imperturbável.
Não lhe dedicava o marinheiro todas as horas de folga. Havia mesmo dias que não lhe via a cara. Mas não passava uma semana que não a tomasse nos braços e lhe fizesse esquecer o rio. Não exigia A-Chan mais do que isto, contente de se sentir preferida e acarinhada. Não conhecera senão aquele homem e ninguém lhe acordara sensações tão inebriantes. Entregara-lhe o corpo com tanta docilidade e submissão, como quando a Velha o punha roxo de vergastadas. Não lhe podia fugir nem chegava a esboçar a mais leve resis­tência, embora soubesse que não devia acolhê-lo tão abertamente.
Decerto possuía mais mulheres. Todos os homens possuíam, quanto mais um marinheiro. Não a acidulava, porém, o ciúme porque se criara na lógica do concubinato e da bigamia. Tudo lhe era natural. No fundo, até se orgulhava de pertencer ao número daquelas que partilhavam do seu amor. Manuel devassara mundos, estivera nos cruzeiros de África, familiarizara-se com os trópicos e calmarias, sequioso de aventura e da paixão do mar. Abor­dara a Macau, transferido para a marinha privativa da província e, durante anos se deixara seduzir pelos exotismos e sortilégios do burgo macaense. Já dava por finda a comissão, quando a guerra estalou com todo o seu cortejo de horrores.
O mar era então a sua idéia obsediante. A África, a Índia, o Extremo Orien­te, tudo palmilhara, mas nenhuma terra o atraíra, a ponto de nela assentar ar­raiais para sempre. Nem o berço natal, a aldeia ribeirinha, debruçada sobre o estupendo Atlântico, conseguira prendê-lo. Mas agora queria vê-la antes de se embrenhar outra vez nos riscos e nas fainas do mar. E à irmã também que desa­parecera do lar e só depois de tantos anos lhe solicitara uma reconciliação. Enegreceram-lhe o espírito dolorosas crises de nostalgia, amargando-lhe a situação de encarcerado, quando toda a sua alma pedia o oceano. Os amigos estranhavam que não soubesse jugular as melancolias nem pudesse adaptar-se à crua realidade da guerra. Nada lhe sabia bem naquelas horas conturbadas - os colegas, a rotina do serviço, a cidade com os seus prazeres. Isolava-se, ensimesmado, preferindo a solidão dos pontos recatados. Gostava, sobretu­do, de admirar os crepúsculos da Penha, de admirar o sol a esconder-se por trás da Lapa imponente. Assistia, empolgado, ao regresso lento e cansado dos juncos, atulhados de peixe saltitante. Enternecia-o o ramalhar dos pinheiros da Guia que lhe blandiciavam recordações. O Mirante de D. Maria, onde os seus olhos furavam o mar até o horizonte e acarinhavam as Nove Ilhas, sen­tinelas verdes que guardavam os caminhos marítimos. O Jardim de Camões, as suas frondes sussurrantes. Passava tardes inteiras na curva do Bom Parto, junto à barraca do pescador, a presenciar a recolha das redes, onde pratea­vam mugens e tainhas. Ou nas verduras do Campal em brincadeira com a petizada do Tap-Seac, sob o olhar vigilante das criadas. Estrada de Cacilhas, Montanha Russa, Ilha Verde. Recantos da Cidade do Santo Nome de Deus, a cujo silêncio e beleza ia rogar sossego para os seus pesares. Confrangia-lha realizar que não fazia justiça àquele bendito solo ma­caense que tão hospitaleiramente o recebera e lhe proporcionara alguns dos melhores anos da sua vida. Mas que culpa tinha ele de se sentir dominado pelo mar - a sua eterna sereia?
Reagia bastas vezes e, então, deambulava pelas artérias concorridas e barulhentas. Freqüentava os cabarets, os serões dos centros dos refugiados e perdia-se nas vielas de amor. Eram dias em que a sua alma se emporcalhava, em que os mais belos sentimentos se lhe embotavam.
III
Quando A-Chan pisou o seu destino, não a tratou melhor nem pior que as outras de quem ia buscar um pouco de lenitivo para os seus desgostos. Não a considerou mais que um objeto de prazer de quem se podia apartar com indiferença. Mas cedo lobrigou que a tancareira possuía um dom ma­ravilhoso, que lhe fazia bem sentir-se ao pé dela. Não que fosse bonita, não. Era feia, rosto macerado e trigueiro, uma resignação estampada de quem conhecia o ferrete do sofrimento. Olhos oblíquos, dois traços miúdos, um nariz chato, grosseiro. Horrenda, não, simplesmente feia. Mas que terna ex­pressão de escrava submissa.
Nas suas andanças pelo mundo, familiarizara-se com mulheres de vá­rias raças e sabia por que preço se amava uma prostituta ao longo de todo esse Oriente prodigioso. Mas A-Chan não lhe dava a sensação dum alcoice, porque havia nela qualquer coisa de meigo, de suave, de muito comovente. E ele era um sentimental. Saturara-se do ambiente deletério das hospedarias, onde a miséria era mais profunda. Não podia suportar os sorrisos estereoti­pados das flores dos bairros de amor, as suas carícias automáticas, a desgraça imensa da guerra. Não, porque esta não era só a metralha e o sangue. Era também a fome daqueles milhares de seres que diariamente morriam nas arcadas frias da cidade, a doença que ruía sobre os miseráveis sem guarida, o meretrício desenfreado - moças e crianças mercadejadas por pais famintos.
A-Chan trazia-lhe paz na sua desinteressada dedicação. Chocava-o aquela submissão de fêmea amorosa que nada pedia. Uma calada devoção que o enternecia. Gostava de ficar ao pé dela a seguir a marcha rutilante das estrelas, a paisagem noturna de Macau, o casario da Penha e o da Barra diluídos em sonho no fundo azul da noite. Era feia, ignorante, açulada pela canga do rio. Mas os olhos orientais não escondiam uma imensa ternura pelo marinheiro saudoso do mar. Sensibilizava-o a maneira como lhe sorria, como lhe oferecia a tigela de chá ou como lhe passava os dedos calosos e ás­peros pelos seus cabelos louros de europeu, num requinte de familiaridade. Falavam pouco, entendiam-se mais por gestos que por palavras. Mas que refartantes os silêncios em que ela se apagava num canto do tancar para não lhe perturbar as meditações.
Aguerra prosseguia infindável, mas à medida que os meses rolavam, o declínio do Japão era evidente. AMacau chegaram interruptamente os párias e os deserdados da sorte que vinham pedir hospitalidade e segurança. A indigência dos refugiados de todos os lugarejos da China sofredora con­trastava com a opulência dos novos ricos e dos japoneses que traficavam impunes à sombra duma bandeira neutral.
Nas noites claras e luarentas, sobrevoavam a Cidade do Santo Nome de Deus aviões americanos, que iam espalhar destruição nos pontos estratégicos do interior. Roncos sinistros que angustiavam os indefesos lares macaenses e tra­ziam à boca preces de corações alanceados. Compunha-se o peito do marujo ao escutar aqueles sons cavos. Amorte rondava perto na sua fereza de colher mais vítimas. Bastava um daqueles aparelhos para reduzir a cidade a um montão de escombros. E ele não queria perecer, agora que o fim não podia estar longe.
A-Chan também se arrepiava de pavor, mas incidia o medo na sua frágil embarcação, três tábuas a flutuar nas águas lodosas, que eram o seu ganha-pão. Sim, havia quem sofresse. O rio e a guerra não lhe regateavam trágicos painéis. Mas, acima das lágrimas e dos clamores dos outros estava o seu tan­car, o seu sustento. Então abraçavam-se um ao outro desesperadamente, ele aflito pela morte que pairava no ar, ela, pela integridade do seu tancar, como se naquele desvai­rado amplexo estivessem a salvação e a tranqüilidade num mundo em delírio. E foi numa dessas noites em que o silêncio se quebrava com a trepi­dação irada dos aviões que ela descobriu a insofismável nova. Ia ter uma criança, um filho desse homem louro, de olhos azuis, que tão suavemente a tratava. Qualquer coisa de inédito, de estupendo nasceu nela, um sentimento indefinido e ao mesmo tempo embriagador. Mas calou-se, aguilhoada por súbito pudor e infantil receio de que ele se zangasse por não ter sabido evitar a maternidade.
IV
Poucas semanas depois, não voltou a aparecer o marinheiro. Na noi­te em que o aguardava, ficou desperta até aos primeiros alvores da manhã. Apertou-se-lhe o coração, apreensiva, mas desculpou-o. Nas noites seguin­tes esperou-o em vão. O Cou-Lou sumira-se, inexplicavelmente. Invadiu a sua alma negro desânimo. Implorou aos deuses, bateu cabeça no pagode, acendeu pivetes, consultou a bruxa. Tênues momentos de revolta que mal afloravam à expressão do seu rosto esmaecido. Estava-lhe porém, nas veias o fatalismo da raça e, com ele, a sujeição milenária da mulher chinesa aos caprichos do seu homem e senhor. Se o Cou-Lou não vinha era porque outra o enfeitiçara. Não havia que lutar, perante os desígnios dos deuses. Iludiu as lágrimas rebeldes e sustentou a ironia das companheiras com a sua passivi­dade habitual.
Mas restava-lhe uma consolação mais sublime do que os singelos pre­sentes que lhe ofertara - um pente, pulseiras de jade barato, meia-dúzia de lenços, uma peça de pano preto para a cabaia. Restava-lhe o filho, a única grande recordação do marinheiro louro, de olhos azuis.
A gravidez não a prescindia de trabalhar. Isto era bom para as esposas dos nababos da cidade. Para a gente do rio, só havia descanso na morte. O seu tancar ia e vinha no transporte de passageiros, mercadorias e alfaias. Durante esses meses todos, nunca A-Lin lhe surpreendera o mais leve quei­xume, embora avaliasse a extensão dos seus padecimentos. Nasceu-lhe uma menina, em certo entardecer borrascoso e frio de in­verno. Fatigara-se, ao levar passageiros à Lapa, e as dores que a cruciavam horas antes culminaram com o esforço dispendido nos remos. No meio da chuva e das correntes do rio alteroso, que ensopavam a pobre embarcação, uma criança veio ao mundo. A-Lin não conseguiu prestar auxílio algum, a tratos com o governo do tancar. A mãe conduzira, sozinha, a cruz da ma­ternidade. Quando, porém, se ouviram os primeiros vagidos não fez mais que agradecer aos deuses por lhe terem proporcionado tamanha felicidade, esquecida de todos os infortúnios.
V
O ausente vivia longe, desterrado em Coloane, a convalescer-se dumas balas que o puseram às portas da morte. Ação de bandidos que assaltaram o palacete dum negociante rico, lá para os lados da Flora.
Manuel, dando rebate, ficara prostado, seriamente ferido. Dois meses permanecera no hospital, a vida por um fio. Interessara-se a imprensa local pela saúde do arrojado mocetão, mas o drama não descera até ao rio por ser um fato vulgar naqueles dias turbulen­tos e cruéis. Triunfou a sua vigorosa compleição, mas as feridas deixaram-no com­balido. Aconselho dos médicos partiu para Coloane a fim de se retemperar. Olvidou completamente A-Chan, o mundo, a guerra, para se concentrar na sua própria saúde.
Amedrontava-o a idéia insidiosa de morrer, agora que o termo da con­flagração estava mesmo à vista.
Havia maior certeza de paz, quando regressou à Cidade do Santo Nome de Deus. Adesintegração da Alemanha não merecia dúvidas e os aviões ameri­canos eram mais numerosos sobre os telhados da terra macaense. Vinha forte e animado, mas não procurou logo a chinesa. Só quando as aeronaves bombar­dearam o solo neutral e semearam morte no Porto Interior, se lembrou dela. E uma noite, pressuroso, dirigiu-se à marginal. Espreitou o sítio do costu­me, errou pela margem, retornou ao mesmo local, estugando o passo. Divisou, então, o barquinho que uma chama bruxuleante alumiava. Aproximou-se algo envergonhado da sua longa ausência. Distinguiu, nitidamente, o perfil da tan­careira, curvado para as águas quietas. Acercando-se da prancha, bradou: - A-Chan! A mulher empertigou-se, surpresa, volvendo-se toda para ele. Depois, com ligeiro menear de cabeça, murmurou: - Boa-noite.
Sorria-lhe. Aboca feia abria-se num acolhimento enternecedor como se nada tivesse acontecido. Sem uma admoestação, o mais pequeno azedu­me, que lhe fizesse recordar todos esses meses de afastamento.
Pulou para a embarcação e atancareira, sem mais palavra recolheu a prancha, desligou as amarras. E o tancar deslizou na noite negra e úmida. Não falaram durante muito tempo. Ele, comovido, a gozar aquela serenidade tão difícil de haurir nesses trágicos dias. Ela, confusamente feliz, um mundo a entrechocar-se no âmago do coração. Mas ambos pareciam indiferentes. Ele, a reprimir uma vontade incontida de chorar. Ela, sempre oriental, a es­conder os mais exaltados sentimentos num rosto imóvel, quase impassível.
De repente, alguma coisa se agitou perto dele. Ergueu-se alarmado, e, entre panos velhos e andrajosos, descortinou o indiscreto que lhe cortava o fio das meditações. Ficou aniquilado ao tocar na criança que se esperneava ao frio. Um ser minúsculo, ralos cabelos alourados, tez quase branca, olhos claros, a denunciar ascendência européia.
Os remos vibravam, com ritmo singular, na placidez da noite. Achi­nesa parecia alheia ao drama que se desenrolava perto. Mas os olhos não se despregavam do enorme dorso do marinheiro e compreendiam quão petri­ficado ele estava. Acriança soltou um vagido, mais outros. Atabalhoadamente, Manuel enfaixou-a, apertou-a contra o peito, ciciando: - Minha filha, minha pequenina. A-Chan entendeu o apelo da criança. Largou os remos e pediu branda­mente ao marinheiro que a substituísse. - O nome? - Mei Lai.
O tancar vogou, por segundos, à deriva, porque o marinheiro senti­mental se especara na adoração da filha que sugava o peito sazonado da mãe, com abençoada sofreguidão. Acordou nele a paternidade, um amor profundo pela inocente. Expe­rimentado nos perigos que rodeavam o tancar, pensou logo em afastá-la do rio e, ao cabo de duas semanas desencantou uma casa na Praia do Manduco. Não defrontou qualquer oposição da mãe, que detestava a terra, onde a vida lhe fora tão agreste. Submetera-se A-Chan, porque não lhe estava nos hábitos contrariá-lo e, mormente, quando lhe patenteava maior afeição. Confiou o barquinho aos cuidados de A-Lin e, docilmente internou-se na cidade.
Foram os mais aliciantes meses que juntos viveram. Até ali, A-Chan não era mais do que uma simples ligação de marinheiro. Agora era a mãe da sua filhinha. Continuavam a falar pouco, isolados em mundos opostos. Entre eles, porém, existia a doce presença de Mei Lai. O que ambos não conseguiam dar um ao outro, prodigalizavam-no à criança. E como eram felizes! Atancareira soltava francas gargalhadas, sem rebuço, quando brincava com ela. E Manuel transmudava-se num gaiato, que passava horas sem fim a distraí-la.
A guerra terminava, no entanto. Rendida a Alemanha, esfacelava-se o Império do Sol Nascente. Ao observar A-Chan nas suas lides domésticas uma tribulação se apoderava dele. Sabia que não podia ficar para sempre ao pé da tancareira, porque o seu destino era o mar. Não lhe tinha amor porque isso só podia florir com a comunhão absoluta das almas. Mas votava por ela uma estima que jamais tivera por alguém. Os colegas chasqueavam dele, do seu "gosto degenerado". Não atinavam como pudesse viver junto daquela criatura feia. Mas era verdade. Pesava-lhe abandoná-la, agora que a via tão venturosa, protegida da crueldade do rio. Aliás, fora a única mulher que lhe insuflara a sensação de possuir um lar.
E não se enganava. Nunca A-Chan bendisse tanto a vida como naqueles meses. Aterra mostrara-lhe a sua feição benigna. Não era uma desprezada mui-tchai que ali estava. Era uma senhora que governava a sua casa, com o devido respeito da vizinhança. Orgulhava-se da Mei-Lai, como se tivesse dado à luz um rapaz. E nunca o seu amor pelo marujo louro, de olhos azuis, fora tão grande, tão mimoso. Sim, a guerra estava no fim. Ele dera-lhe a perceber, desde o começo que, depois da tempestade faria rumo ao longínquo País das Uvas. Mas esperava que ele não partisse, agora que tinham uma filha. E, aca­lentada por tal esperança, vivia indiferente a tudo que não fosse o lar.
Quando o Japão se rendeu, a notícia rebolou estrondosamente pela cida­de no meio de foguetes e panchões. Mas as novas penetraram com relutância na casa do marinheiro. Durante dias, examinou sorrateiramente as atitudes do Cou-Lou, mas acabou por se tranqüilizar, perante os seus modos habituais. Mal sonhava que ele recalcava uma surda tristeza. Com pena dela, pedira para ficar mais alguns meses, dominando a sua própria ânsia do mar, mas o requerimento fora-lhe indeferido. Devia partir no primeiro transporte que chegasse a Macau.
Tornou-se-lhe obsidiante o problema da filha. Não tinha coragem de renunciá-la. Que futuro lhe reservaria a tancareira? Cresceria no ambiente soturno do porto, acompanharia a mãe nos espinhos do ofício, maltratada pelo mundo e pela fome que é o estigma de todas as camadas paupérrimas da China. E depois, Mei-Lai não tinha feições puras de oriental. Só por si denunciava uma pecaminosa ligação com o europeu. Nunca vira mestiças a trabalhar no rio. Para outros caminhos as levara o destino. Para os bor­déis, para as hospedarias das vielas do amor. Em toda a parte, onde nasciam rebentos clandestinos de europeus, a prostituição lucrava. Não, não podia abandoná-la. E pensou na irmã redimida, que distante acenava por ele. De­certo albergaria a sobrinha e educá-la-ia com desvelo. Mas era doloroso ar­rebatá-la da mãe. E neste dilema se debatia a sua alma inquieta.
As semanas corriam vertiginosas, despreocupadas para A-Chan, mas ta­citurnas para o marinheiro sentimental. Resolveu-se, porém, numa noite de insônia, quando a companheira embalava a criança que se achava febril. E não se descurou nos dias seguintes, enquanto não obteve uma passagem para ela.
Um dia, porém, A-Chan despertou. O desaparecimento de certas peças de roupa, a tristeza macambúzia do Cou-Lou, fúteis pormenores da vida quotidiana, indicaram-lhe que se preparava algo de lancinante para ela. A verdade só veio à luz nas vésperas da chegada do fatídico paquete.
Manuel trouxe consigo um intérprete que fluente nas duas línguas, po­deria explicar melhor a A-Chan. Recebeu-os retraída, com pressentimentos de desgraça. O intérprete, advinhando o melindre da situação, exprimiu-se arrastadamente. Quando ficaram sós, fixou-o de frente. Tinha as faces terrosas, uma ex­pressão de infinito desespero. O marinheiro, agarrado a Mei-Lai que traquinava, não suportou aquele olhar e tartamudeou desculpas que não soube completar. Não deu palavra e encaminhou-se a cambalear para a cozinha. Mas quando o chamou para jantar, a voz tinha a mesma suavidade de sempre.
Nunca mais lhe viu a sombra dum sorriso. Não se opôs aos prepara­tivos do enxoval da criança e foi ela própria quem o entrouxou com a sua atávica resignação. Mantinha o rosto inexpressivo, quando estava ao pé do marinheiro. Adissimulação porém era inútil porque ele a conhecia bem e lia-lhe os pensamentos.
Que existência lhe guardava o porvir? O rio, o eterno e inalterável rio a exigir-lhe as forças até o alento final. O tancar, os remos, o vaivém na super­fície barrenta do porto. Dias incertos, privações. A velhice insegura, a perene escravatura do ofício. Sim, ele tinha razão. Se a filha ficasse, que seria do seu futuro? Ela podia sofrer porque fora criada no sofrimento, vendida pelos pais a mãos empedernidas. Mas nunca a Mei-Lai, que era tão bonita e se parecia tanto com o marinheiro de olhos azuis.
No dia da abalada, deixou-a quando fulgiu a primeira chapada de sol. Não devia retornar ao lar. Iria mais tarde juntar-se a ela, no tancar, até à hora da partida. Osculou-lhe a testa e mansamente apressou-se. A-Chan viu-o vestir-se, andar dum lado para outro, fechar a porta da casa. Compreendeu, então, que alguma coisa lhe morria por dentro e se es­facelava para sempre.
Avermelhavam-se os contornos da Lapa com o rubor do ocaso, quando apareceu diante do barquinho. Ainda lhe restavam umas horas à frente, antes que saísse a última lancha. Atancareira cozinhara um jantar delicioso, vestira a melhor cabaia - presente singelo do marinheiro sentimental. E na trança more­na brilhava o pente cravejado de pedras falsas, lembrança cúmplice duma noite de amor. Acolheu-o com a ternura habitual de que ele tanto gostava. E mais uma vez o tancar singrou para o largo com o familiar chape-chape de remos.
Fazia frio, porque estavam no inverno. Mas ninguém o sentiu nem a ga­rota que gatinhava no ínfimo espaço da embarcação. Os pais, ensimesmados, incidiam sobre ela as suas atenções, sem conseguirem trocar entre si o mais ligeiro pensamento que fosse. Juncos e lorchas passavam perto. Uma vedeta agitou as águas sonolentas, mas o tancar fugiu à inoportuna aproximação. Queimavam panchões na margem. Odores de peixe salgado aturdiam o per­fil dum barco de carreira de Hong Kong, na Rada. Afortaleza de S. Tiago da Barra amadornava nas sombras da noite que caía. AIlha Verde, ao longe, dormitava entre diáfanos mantos de verdura. O Sequião, atrás, muito sujo, a perder-se nos extensos arrozais da China. Apaisagem de Macau enchia-lhe os olhos de inéditas facetas, que só agora adregara de descobrir. E admirou-se de estar a limpar subitamente as faces orvalhadas.
Jantou sem apetite, só para agradar à companheira que se empenhara em oferecer-lhe opípara refeição. Dilacerava-o a sua mansidão usual. Prefe­ria que ela gritasse toda a sua revolta do que guardar no fundo da sua alma estranha de oriental, uma dor incomensurável. Estava pálida, imensamente abatida. Mas procedia como se estivesse em dias mais ledos.
Quando bateram as nove de qualquer relógio da cidade, soergueu-se da esteira, onde se deitara para mitigar a comoção. A-Chan, que amamentava a criança, estremeceu. - Vamos. Ela assentiu resignada, aconchegando mais a si o ente querido de quem se ia separar. Manuel pegou nos remos e guiou o tancar para o porto, para os cais de embarque, onde resfolegava a lancha dos passageiros.
Então, nesse momento, sem disfarces, romperam soluços do peito da tancareira. Espaçados, pungentes, envergonhados. Manuel quis-lhe pedir que os contivesse, mas estrangulara-se-lhe a voz. E sentiu que perdia qual­quer coisa de inestimável que jamais poderia ser substituída. Remou com mais vigor na penosa necessidade de escapar àquela cena. O inverno soprava da China uns resquícios do seu vento gelado. Mas, de novo, ninguém deu por ele. E os soluços continuavam. Espaçados, pungentes, envergonhados.
O marinheiro não subiu imediatamente para a lancha. Já soara o se­gundo apito para a largada. Ficaram a olhar para a filha adormecida, ambos lutando para balbuciar algumas palavras. Ela feia, sucumbida, a conter em vão os soluços, para implorar que voltasse para tirá-la do rio que era a sua prisão. Ele, para inutilmente prometer os mais impossíveis compromissos, e rogar-lhe que fosse boa rapariga.
Quando o apito estrugiu mais uma vez, Manuel estendeu os braços para a tancareira humilde. A-Chan mirou-o num instante e depois, suavemente, entregou-lhe a filha pequenina, murmurando numa derradeira solicitude maternal. - Cuidadinho... cuidadinho...
(Escrito em Coimbra, em Fevereiro de 1950, com saudades de Macau.)
Henrique de Senna Fernandes

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