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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Os inícios da cidade de Macau

Artigo de Luís Gonzaga Gomes publicado no "Boletim do Instituto Luís de Camões", em Macau, no Outono e Inverno de 1969, p. 271-295
Alcançado o consentimento, para se estabelecerem em Macau, o que fizeram, em 1557, os mercadores lusitanos organizaram, ao que parece, a sua primeira feira, neste local, em 1558, ano este que alguns investigadores atribuem ter o grande poeta lusíada Luís Vaz de Camões estado, nesta incipiente povoação, como Provedor-Mor dos Defuntos. Segundo a tradição, o inditoso poeta costumava isolar-se, num sítio ermo, que ficou sendo conhecido por Gruta de Camões, para escrever parte do seu imortal poema.
A questão de Camões ter ou não estado em Macau foi estudada pelos mais brilhantes camonianistas sem se conseguir, porém, chegar a uma conclusão definitiva e convincente, por falta de suficiente documentação, não sendo verosímil que o grande poeta se instalasse, incòmodamente, entre dois apertados e rugosos penedos, para escrever as arrebatadas e épicas estrofes dos «Lusíadas», tanto mais que o adusto morro, onde se encontra o que se assemelha a um dólmen que o povo, por desconhecimento de melhor termo, denominou de gruta, nada poderia ter de inspirador, pois, só muito posteriormente, foi transformado pelos negociantes ingleses que ali se instalaram (fins do século XVIII ?), em idílico e paradisíaco parque, espessamente plantado de frondosas árvores, onde a passarada pulula, chilreando, ao desafio, de ramo em ramo.
A história que se conta de o poeta ter salvo o seu poema, sustendo-o com uma mão acima das ondas, após o naufrágio do barco em que regressava a Goa, nos procelosos baixics de Mekong, cremos ser lenda invencionada por fantasiosa imaginação, pois que a ser verídica, teríamos de a considerar um verdadeiro milagre, porquanto, ccmo é possível a um indivíduo fisicamente normal debater-se, no meio de alterosas vagas a entrechocarem-se, dementadamente, apenas com um braço?
Entretanto, os portugueses, verificando que os chineses os deixaram de incomodar, provàvelmente, pelo facto de ser grande o interesse que tinham não só em exportar as mercadorias nativas como em importar os produtos ocidentais mas, principalmente, as especiarias de outras partes do Oriente, carreadas em navios portugueses, restabelecendo-se, assim, o comércio tão bem encetado, por Fernão Peres de Andrade, e que fora brutalmente interrompido, em consequência dos incautos desatinos do seu irmão Simão Peres de Andrade, passaram a ganhar confiança e, por conseguinte, deixaram de armar e desarmar as suas improvisadas barracas de ola ou de colmo, ou tendas provisórias de lcna, todos os anos, em Dezembro, como vinham fazendo, para passarem a construir, afoitamente, a pouco e pouco, pequenos edifícios mais estáveis e sólidos.
Esta é a versão confirmada pelo Padre Nicolao Trigault, S. J. que afirma, exactamente, isso mesmo:
«Il guadagno 'e tanto grande, che prouiene da questa nauigatione, non solamente per lérario publico, ma per i priuati ancora, che i Magistrati, dissimulando la paura, non gli accettarono affatto: ma a poco a poco glielo permisero. Però con questa legge, che subito finito il mercato douessero con le loro mercantie, e robbe tornare nellÍndie: cosi moltánni traficarono infin'à tãto, che dalla paura liberati li diedero nellÍsola più grande, vna poca Penisola. In quella vi era vnÍdolo, & hoggi anco vi si vede, che haueua nome Ama, da quello fú detto il lito Amacao, cioè golfo di Ama. Quiui adunque sopra questo scoglio, che più tosto puoi dire, ch'è Isola, si diedero ad habitare non solamente i Portughesi, ma anco molti, che vi cõcorreuano de popoli vicini per il gran trafico di tutte le sorti di merci; le quali vengono portate dÉuropa, dallÍndie, e dalle Moluche Isole, con le carauelle de' Portughesi: anzi che la copia del denaro vi ha tirato ad habitarui molti Chini. In progresso di tempo si cominciò â fabricarui vna Città, doue non solamente i Portughesi, é Chini contrattarono in materia di mercantie, ma fecero insieme sposalitii, e parentele; in tãto che tutta la la penisola si è ripiena di case, e da vn sito sterile si è fatta vna ricca scala di marcãtie».
Diogo Caldeira do Rego, que foi escrivão da Câmara de Macau, evoca, em 27 de Novembro de 1623, sessenta e seis anos depois de os primeiros portugueses se terem estabelecido em Macau, numa Breve Relação do estado da Cidade do Nome de Deos Reino da China de seu principio ate o anno de 1623, o seguinte acerca da fundação da cidade:
«Depois que os primeiros Portugueses que a estas partes da China passarão no anno de 1524, estiverão e contratarão com os Chinas desoito anos na Ilha de Sanchuão, e doze em Lampacao, descobrirão este porto de Amacao aonde por acharem mais comodidades, e melhores para seu trato e mercancia se forão deixando ficar esquecer nelle ora huns, ora outros fasendo suas casas ao principio de palha, e depois de taipa, cresceram de maneira em espaço de trinta annos que quasi sem se sentir no cabo delles estava ja huâ povoação tal que tratou de ser cidade...».Mais adiante lembra-nos, que, «Porque os primeiros fundadores em bella paz fasiam sua mercancia com os Chinas e as viagens da India, Japão, Sião, e outras se continuarão sem temor dos imigos não cuidavão então que os poderião ter ao diante, e cada hú edificava para si, e a seu modo aonde lhe melhor estava sem respeito ao comú, com que ficou esta cidade muy espalhada, mal armada, pouco defensavel, e sendo edificada como foi sem licença nem consentimento del Rey da China só com a dissimulação dos Mandarins que governavão pellos proveitos comuns do Reino, e seus particulares, avendo nelles as continuas mudanças que conforme a seu governo costuma aver, não faltarão cõ elles por muitas veses varias contrariedades aos moradores della... ».Porém, em consequência da intensificação do comércio com os chineses, motivada pela interdição imperial, que cominava pesadas penas aos que abandonassem o solo pátrio e pelo encerramento do porto de Cantão ao trato estrangeiro, Macau, que, ao princípio, não passaria de um simples acampamento ou feitoria, transformou-se, ràpidamente, num importante porto, para o escambo das mercadorias nativas com as estrangeiras, trazidas, exclusivamente, pelos barcos dos negociantes portugueses, e, a breve trecho, surgia uma cidade com óptimos edifícios e magníficas igrejas. Para o seu desenvolvimento contribuiu, igualmente, o comércio sino -nipónico, feito por intermédio dos portugueses, porquanto o acesso ao território chinês estava defeso aos japoneses, com quem os chineses se encontravam mesmo em estado de guerra, devido às desenfreadas depredações perpetradas pelos corsários nipões, ao longo de toda a costa chinesa. No Japão, existia grande procura da seda chinesa, crua ou trabalhada, que era preferida à nativa, e só os comerciantes portugueses é que gozavam do exclusivo privilégio de poderem adquirir a seda chinesa, onde ela era produzida, portanto, a preço mais baixo possível, para a ir vender, no país em que era mais procurada, por conseguinte, onde se pagava mais caro. As barras de ouro e prata, auferidas em tão lucrativo tráfego, eram colocadas, na Índia e na China, advindo desta transacção novos lucros, derivados da grande procura destes metais preciosos nesses países. Cada viagem ao Japão rendia para cima de 600.000 cruzados. Além disso, alcançou enorme incremento o trato comercial, através de Macau, entre o Japão e a China com os portos de Guzerate, Choromândel, Sião, Indonésia, África Oriental, etc., sendo idênticamente lucrativo o escambo de especiarias e madeiras aromáticas da Indonésia com os panos e fazendas da Índia.
Os fabulosos lucros que se alcançavam com essas transacções justificavam, plenamente, todos os riscos de demoradas viagens, através de tormentosos mares, infestados de ousados corsários de todas as raças. Por isso, o comércio com a China e o Japão passou a constituir, de 1550 em diante, um monopólio, sendo o direito para a sua exploração concedido, pelo Rei de Portugal ou pelo Vice-Rei da Índia, em seu nome, a um fidalgo, que se distinguisse em serviços prestados à coroa ou à nação, com o título de Capitão-Mor das Viagens da China e do Japão que, por brevidade, passou a ser designado simplesmente, por Capitão-Mor das Viagens do Japão. Este gozava do direito de ceder os seus privilégios a outrem, os quais efectuavam a viagem sem perda de qualquer prerrogativa. Com o tempo, as municipalidades conseguiram, igualmente, a mercê da concessão dessas viagens que eram, pcrém, postas, em almoeda, para se empregar o seu produto na construção de fortificações, tendo outrossim sido concedidas às instituições religiosas, como ao Mosteiro de Encarnação de Madrid, em 1629, a pedido da Rainha de Espanha. Mais tarde, essas viagens deixaram de ser concedidas como recompensa ou graça especial do Rei, para serem postas em arrematação pública, dispondo o arrematante do direito de fazer tais viagens por si ou de as ceder a outrem.
Ora, o Capitão-Mor das Viagens do Japão era o chefe de todos os barcos e estabelecimentos, desde Malaca até ao Japão, sendo o representante oficial de Portugal perante as autoridades chinesas e japonesas, O ponto de partida das suas viagens era, normalmente, Goa, com escala em Malaca, ou, ocasionalmente, em Jacarta (Batávia), antes de se alcançar a costa da China. O Capitão-Mor era obrigado a equipar o seu próprio barco mas, em alguns casos, conseguia um empréstimo da coroa, mediante garantia adequada.
A primitiva população devia ser constituída por cobiçosos traficantes de pouco escrúpulo que, com as espantosas riquezas fàcilmente acumuladas, deveriam levar uma vida intensamente tumultuosa, criada pela febre do ganho. Nos primeiros tempos, o que se passava em Macau não divergeria muito do que ocorria em Sanchoão, quando o padre mestre Francisco Xavier lá pôs os pés
...praya feita de enganos e uzuras, huma praça de fogo, brigas e desmanchos, hum ajuntamen.to de gente rica, farta, ocioza, dissoluta, sem respeito de Deos, dos homens, de honra, do nome christão e portuguez, esquecidos finalmente da conta que avião de dar depois da vida prezente, pegando-se-lhes muitas destas couzas dos mercadores gentios com que tratavão e conversavão de dia e de noite.Não deveria, portanto, ser fácil ter mão em gente tão turbulenta e arrogantemente indisciplinada e afeita aos dissolutos costumes próprios da época. A única autoridade que existia era a do Capitão-Mor da Viagem do Japão sendo, porém, dependente do Governo de Goa. Era ele quem, durante a sua estadia em Macau, nos intervalos das suas viagens, dirigia os assuntos dos portugueses, esforçando-se por manter a ordem, superintendendo, igualmente, os embrionários serviços de interesse público.
Este regime de carácter transitório e resultante das circunstâncias de momento não vigorou, porém, senão nos primeiros anos, pois que o grande incremento que estavam adquirindo os interesses mercantis exigia uma organização mais completa e eficiente, porquanto, a pouco e pouco, foram surgindo assuntos cuja resolução não podia aguardar o regresso do Capitão-Mor da sua viagem ao Japão.
Foi-se, assim, formando uma espécie de república mercantil ou cidade livre e a gerência dos assuntos públicos passou a ser exercida por três representantes da população, escolhidos por votação, com o título de «eleitos», os quais desempenhavam, concomitantemente, as funções administrativas e judiciárias, existindo, já, em 1560, uma municipalidade embrionária, portanto, muito diferente da que foi descrita com tanto entusiasmo por Fernão Mendes Pinto. Sempre que o Capitão-Mor da Viagem do Japão se encontrava de regresso, assumia ele a direcção dos assuntos da administração.
A partir de 1562, um dos «eleitos» passou a ser, por escolha, Capitão da Terra, cuja autoridade judiciária deveria, porém, ser muito restrita, porquanto, como a maioria da população era constituída por homens de mar, decerto que os capitães dos navios, ciosos do seu mando não tolerariam qualquer assomo de autoridade por parte de civis sobre os tripulantes dos seus barcos.
Segundo a Relação do principio que teve a cidade de Macao e de como se sustenta até ao presente ano de 1629, esses eleitos «corriam com as cousas do governo, e paz e união com os chins, e conformando-se com eles, pois disto dependia a sua duração».
Para ocorrer às despesas que se faziam com as feiras efectuavam-se uma colecta, chamada ordinária e para a qual, todos os moradores consertaram em contribuir, voluntàriamente, além de uma percentagem incidente sobre os cabedais e mercadorias provenientes da Índia. Liquidadas as despesas, quanto sobrava era devolvido aos contribuintes, proporcionalmente, segundo a quota-parte com que cada um tinha concorrido para o cofre comum, denominado caldeirão.
Entretanto, tendo sido informado por cartas que lhe enviara o doutor Diogo de Gouveia, que se encontrava na Universidade de Paris e fora reitor do Colégio de Santa Bárbara, quando nele andava a estudar o padre Inácio de Loiola, das admiráveis virtudes e do ardente zelo de apostolização que abrasava este sacerdote bem como os seus companheiros, D. João III tratou de solicitar ao seu embaixador em Roma, D. Pedro de Mascarenhas, que envidasse os melhores esforços para conseguir a vinda a Portugal de seis companheiros de Loiola, a fim de os empregar na salvação de almas, nos vastos e ricos territórios que acabavam de ser descobertos em África e Ásia, uma vez que os mesmos, por causas de guerras, se encontravam impossibilitados de seguir para a Terra Santa, como era sua intenção.
Não obstante todas as diligências, que envidara com a máxima solicitude, D. Pedro de Mascarenhas não alcançou de Paulo III e do mestre Loiola senão a nomeação dos padres Simão Rodrigues e Nicolau Bobadilha, tendo o primeiro embarcado logo para Portugal, sem contudo seguir para a Índia, e o segundo, por ter adoecido gravemente, foi substituído por Francisco Xavier.
Uma vez em Lisboa, onde permaneceu cerca de dez meses, Francisco Xavier praticou tão edificantes exemplos de caridade e resignação cristãs, que aconselharam ao rei D. João III, ser de muito maior proveito retê-lo, bem como ao seu companheiro, no reino, a fim de se fundar um seminário, para a formação de sacerdotes da sua profissão, os quais seriam, depois, enviados para a obra de conversão, nas terras de África e Ásia.
D. João III, consultado o seu conselho, escreveu ao Papa nesse sentido, e Sua Santidade anuiu ao pedido do monarca português. Mestre Loiola foi, porém, de parecer que se retivesse o padre Simão Rodrigues em Portugal e enviasse à India o padre Francisco Xavier.
Aquele que mais tarde viria a ser cognominado o Apóstolo das Índias e entraria no Hagiológio, pelos muitos milagres que pôde obrar, partiu, então, de Lisboa, em 7 de Abril de 1541 e desembarcou, em Goa, a 6 de Maio de 1542, tendo viajado na armada que transportou o governador Martim Afonso de Sousa.
Em 1551, regressando do Japão, onde missionou com grande êxito, Francisco Xavier desembarcou, em Sanchoão, onde se informou acerca da China, cujas portas, hermèticamente cerradas, ansiava por franquear, a fim de poder exercer a sua obra de conversão.
No começo de 1552 encontrava-se, novamente, em Goa, onde se demorou apenas duas semanas, tendo-se embarcado, em 14 de Abril de 1552, para Malaca, donde deveria partir com Diogo Pereira, que seguia, no Santa Cruz, como embaixador de Portugal junto do Imperador da China.
Em Malaca, porém, Álvaro de Ataíde, filho de Vasco da Gama e governador dessa praça, que se agastara com Diogo Pereira, por este lhe ter recusado um empréstimo, sendo Francisco Xavier também abrangido no seu dementado ranccr, por ser amigo do embaixador, tratou de impedir, por todos os meios, a partida tanto do embaixador como de Francisco Xavier. Este, porém, logrou, desembarcar, em Sanchoão, em Outubro de 1552, onde faleceu, segundo versão mais corrente, em 2 de Dezembro de 1552, sem, todavia, ter conseguido entrar na China, não obstante todas as tentativas que envidara para este fim.
Ora, o consagrado sinólogo francês, Soulié de Morant, autor de numerosas obras sobre assuntos chineses, aproveita todas as dificuldades que Francisco Xavier fora obrigado a enfrentar, por força das circunstâncias que predominavam nessa época no Extremo-Oriente, para, num seu livro deturpar factos históricos e insinuar aleivosias, com o fim de fazer ver que Portugal esforçara-se por impedir que a Companhia de Jesus fosse a primeira a entrar na China, alegando ainda não convir à política nacional lusitana o envio de missionários não subordinados à autoridade real, motivo por que o padre Francisco Xavier fora nomeado Núncio e Legado Apostólico no Oriente, por tal dignidade eclesiástica lhe conferir, segundo os cânones da Igreja, poderes para excomungar quem ousasse entravara sua missão.
Entretanto, prosseguindo no meritório esforço encetado pelo padre Francisco Xavier, diversos membros da Companhia de Jesus tentaram penetrar na China, sem contudo alcançarem qualquer êxito. Por ter estado, em Cantão, no ano de 1555, para negociar o resgate dos cativos Amaro Pereira, Mateus de Brito e Galeote Pereira, tendo, por este motivo, conseguido obter importantes informações sobre a região, foi o padre Belchior Nunes Barreto nomeado o primeiro Visitador.
Como dissemos mais acima, a povoação de Macau, era constituída, no início, por uma escassa população, em grande parte de natureza flutuante. Não existia, portanto, nenhuma outra autoridade, além da já mencionada e tão pouco era necessária, porquanto os litígios suscitados deveriam ser apenas de natureza mercantil e, fàcilmente, solucionados, por meio de acordo entre as partes interessadas, segundo o uso e a equidade, ou por meio de arbitragem, em que interviriam os homens bons, e, possivelmente, também, os missionários jesuitas que se encontravam de passagem na cidade, aguardando época propícia para seguirem para o Japão, onde se encontravam já instalados.
Os jesuitas alcançaram, em breve, grande ascendência nos destinos de Macau e se não fosse a sua inteligente e frequente intervenção em muitos negócios difíceis da administração e graves crises políticas, principalmente, em certas ocasiões das mais melindrosas e periclitantes da sua existência, talvez a cidade de Macau tivesse perecido.
Sendo a população da cidade em formação, constituida destarte quase que exclusivamente de mareantes e negociantes, na sua maioria gente inculta, não obstante encontrar-se entre ela homens de fidalga ascendência, era natural que os cultos missionários fossem constantemente procurados para formalarem as suas lúcidas opiniões em assuntos particulares e de interesse público. Isso levou-os a adquirir, quase que, insensìvelmente, a absoluta preponderância em todos os assuntos que diziam respeito à administração da cidade, constituindo-se como que uma espécie de regime jesuítico-mercantil.
Passou, então, a cidade livre de Macau a ter neles os mais acérrimos paladinos da sua liberdade, defendendo-a contra qualquer ingerência dos capitães-mores e até mesmo contra a autoridade do próprio Vice-Rei.
Em 1562, com o fim de obter o consentimento do Imperador para o exercício da propaganda do cristianismo na China, tal como fora projectada pelo padre mestre Francisco Xavier, o Rei D. Sebastião ordenou a D. Francisco de Coutinho, Conde de Redondo e Vice-Rei da Índia que enviasse, novamente, como embaixador, o abastado mercador Diogo Pereira que, anos antes, já tinha sido nomeado, pelo Vice-Rei D. Afonso Noronha, para desempenho de idêntica missão conjuntamente com S. Francisco Xavier, missão esta que não pôde materializar-se, devido aos obstáculos levantados, em Malaca, pelo seu Capitão-Mor, Álvaro de Ataíde (1552-1554).
Diogo Pereira saiu de Goa, em Abril de 1562 e partiu de Malaca, em 14 de Julho do mesmo ano, com o jesuita italiano João Baptista Monte e Luis Fróis, também da Companhia de Jesus. Em Macau, aonde chegaram a 24 de Agosto de 1562, pois, de viagem, levaram apenas um mês e dez dias, hospedaram-se os três, em casa de Guilherme Pereira, irmão do embaixador. Oito ou dez dias depois, os padres resolveram ir residir para a casa de um outro seu amigo, o comerciante espanhol Pero Quintero, por ser mais cómoda e conveniente e, como esta casa ficava algo distante da igreja, alargaram os padres a varanda, para dizerem todos os dias duas missas. Muitos moradores iam buscar os padres, para se aconselharem em casos de consciência, e nos seus negócios, sendo de oito a nove centos o número de portugueses que, nessa ocasião, se encontravam em Macau.
Nesse ano de 1562, em que a regência do reino passara das mãos de D. Caterina para as do cardeal D. Henrique, pôde regressar das masmorras sínicas, onde se encontrava, há quinze anos, com Mateus de Brito, o ex-cativo Amaro Pereira, de quem nos falam as cartas de Fernão Mendes Pinto e Belchior Nunes, bem como o Tratado das Cousas da China e de Ormuz do Fr. Gaspar da Cruz (cap. XIX), autor duma interessante Informação da China, que o padre Baltazar Gago remeteu de Goa, em 10 de Dezembro de 1562. Amaro Pereira, devido aos seus longos anos de cativeiro na China, pôde prestar utilíssimas informações aos padres, que estavam ansiosos por entrarem no país, para darem princípio à evangelização.
Mal refeito da viagem, Diogo Pereira tratou de iniciar as negociações, para a aceitação da sua embaixada, junto das autoridades chinesas, e, de Cantão, vieram vários mandarins, para examinarem os presentes, porque receavam que fosse coisa fingida, retirando-se, porém, satisfeitos, e, mediante certas peitas, prometeram encaminhar bem o assunto da embaixada.
Como as negociações se iam protelando, indefinidamente, e, talvez, por que verificasse que existiam poucas probabilidades de os chineses respeitarem a imunidade do seu cargo, tal como acontecera com o malogrado Tomé Pires, Diogo Pereira acabou por desistir do cargo de embaixador, deixando-se ficar em Macau, onde gozava de muita estima e consideração, principalmente, devido à sua amizade com o padre Francisco Xavier, sendo então eleito Capitão da Terra.
O facto dele ter desistido da embaixada e a sua eleição não oficial para Capitão da Terra deveriam ter desagradado a corte em Lisboa, motivo por que, em 1563, o cargo de Capitão da Terra foi abolido pelo Vice-Rei da Índia, sob instruções superiores. Apesar disso, Diogo Pereira continuou a exerce-lo até 1587, tão grande era a popularidade e o prestígio que desfrutava entre a população.
Para o substituir no cargo de embaixador, foi escolhido o seu cunhado Gil de Gois, que partiu de Goa, em 1562 com os jesuitas Francisco Peres e Manuel Teixeira.
Gil de Gois, cansado das promessas dos mandarins, estava resolvido a fazer-se de vela a caminho de Cantão, sem esperar pela permissão imperial, a fim de mostrar que não ia fazer fazendas senão levar a embaixada del-Rei de Portugal ao da China mas os mesmos que o tinham aconselhado a seguir mudaram, dali a poucos dias, de parecer, opinando que não deveria seguir para Cantão.
Entretanto, graças ao bom acolhimento que Diogo Pereira fizera a um dos mandarins que estivera em Macau, o padre Francisco Peres, acompanhado dum Manuel Penedo, foi admitido no Conselho de Mandarins, em Cantão e, tendo-se-lhe perguntado «se trazia o testemunho publico, que deram a outra Embaixada? Como respondesse, que nam, porque sendo queimada Malaca se abrazara, deram a embayxada por finda».Chegaram, entretanto a Macau, vindos de Sunda, dois ricos mercadores, Luis de Melo e João Pereira, ambos com licença do rei para efectuarem a viagem ao Japão e com provisão para mandar nos habitantes de Macau, enquanto cá permanecessem à espera da monção. Formaram-se, imediatamente, partidos e a discórdia provocada pela ambição do mundo prometia transformar-se numa luta sanguinolenta, se não fosse a oportuna intervenção do padre Francisco Peres e do Vigário de Macau que, com tacto e sagacidade, conseguiram compor os desavindos, ficando João Pereira com o governo da cidade, pois, Diogo Pereira, que se preocupava mais com o bem comum do que dos seus interesses particulares, generosamente lho entregou.
A fim de tentar os chineses a admitir a embaixada, escreveu-se, imediatamente, ao Vice-Rei, pedindo-lhe o envio de dois elefantes e outras coisas destinadas a subornar ou tornar as autoridades chinesas mais maleáveis e complacentes.
O governo de Goa não satisfez este pedido e, quando tudo levava a crer que ia gorar o negócio da embaixada, surge, inesperadamente, um acontecimento, que Diogo Pereira tratou, imediatamente, de aproveitar com grande sagacidade.
Dois mil soldados, empregados numa guerra contra os corsários japoneses, que exerciam as suas proezas nos mares de Cantão, tinham-se transformado em salteadores, por os magistrados lhes terem recusado satisfazer o pré, e andavam talando, desenfreadamente, os subúrbios de Cantão, pois, os mandarins não dispunham de gente de guerra para os conter.
O poderio desses salteadores ia aumentando e, tendo tomado um porto, a uma jornada distante de Cantão, armaram nove juncos, saindo para o mar para exercerem a pirataria. A cidade de Cantão estava, então, em grande aperto, visto que, nenhum navio se atrevia a ir até lá e. como os habitantes dos lugarejos do litoral se refugiaram no interior, o grande empório via-se em riscos de ficar completamente despovoado.
Diogo Pereira enviou, então, secretamente, um criado seu a Cantão, para insinuar no ânimo do general de armas de Cantão que os portugueses de Macau estariam, certamente, dispostos a exterminar os piratas, desde que lhes fosse pedido tal auxílio.
No seu regresso, o criado não soube, porém, guardar a confidência e o capitão João Pereira, quando teve conhecimento do facto, irritou-se, por motivo de Diogo Pereira ter assumido por si a iniciativa de oferecer o auxílio das forças comuns portuguesas. Porém, fosse como fosse, ninguém esperava que a soberba chinesa se rebaixaria, confessando a sua impotência, a ponto de pedir auxílio aos detestados diabos estrangeiros. Porém, contra toda a expectativa, tempos depois, aparecia, em Macau, um mandarim a solicitar, em nome do general de armas de Cantão, o socorro dos portugueses.
Concordaram todos os moradores de Macau em prestar este auxílio, na esperança de que o êxito de uma tal empresa levaria as autoridades chinesas a satisfazer-lhes as suas pretensões, principalmente, a da admissão da embaixada e a permissão para o exercício da propaganda católica na China.
Armaram-se, assim, trezentos denodados portugueses que, para melhor poderem lograr os piratas, passaram a sua artilharia para os juncos chineses, formando duas esquadras, uma sob o comando de Luís de Melo e outra de Diogo Pereira, que chamaram a si as despesas desta empresa. Foi adoptada a estratégia sugerida pelo general de armas de Cantão, consistindo em colocar-se a esquadra de Diogo Pereira na boca do estreito, para impedir a fuga dos piratas, enquanto que a de Luís de Melo iria procurá-los, para os investir. Quando os piratas experimentaram o efeito destruidor da artilharia portuguesa e, vendo que estavam sendo atacados não por chineses mas pelos temidos portugueses, entraram neles tal medo que se lançaram todos imediatamente à água, tratando de fugir a nado, mas, em menos de meia hora, sem perda alguma para os portugueses, foram todos capturados.
O fruto desta vitória, esteve, todavia, em riscos de se perder, pois, alguns dos portugueses negaram-se a entregar os juncos que apresaram, quando estes foram pedidos pelo general de Cantão. Luis de Melo e Diogo Pereira acudiram, contudo, salvando a situação, dizendo, arteiramente, que esta atitude não devia causar estranheza, porquanto os portugueses eram tão disciplinados e deviam tanta obediencia aos seus capitães, que não se atreviam a fazer coisa alguma sem ser por sua ordem.
O general aceitou esta desculpa, retorquindo, com subtileza, que tinha feito, espontâneamente, tal pedido, porque já sabia de antemão que os capitães haveriam de lhe pedir que os aceitasse.
Diogo Pereira, quando verificou que tinha caído nas boas graças deste general, tratou, imediatamente, de lhe pedir que patrocinasse o assunto da embaixada.
O general deu, então, licença aos portugueses para irem a Cantão, seguindo na sua companhia o padre Francisco Peres, que, tendo sido convidado a apresentar-se perante os mandarins, leu-lhes um memorial, em que lhes pedia que o deixassem conversar com os mestres e sábios chineses, acerca da religião e que lhe fosse permitido residir em terra chinesa.
Interrogaram-no os mandarins sobre diversos pontos da religião católica e, não obstante terem ficado admirado com as respostas do padre, não lhe satisfizeram o pedido, alegando não existir na China o costume de permitir que os estrangeiros vivessem no reino.
O Imperador enviou uma carta de cumprimentos ao Rei de Portugal, na qual explicava os motivos por que não lhe era possível consentir a entrada da embaixada, motivos esses originados pelo temor das desordens que os portugueses tinham provocado em anos passados.
O padre Peres demorou-se, porém, na China até ao ano de 1565.
Apoiando-se no memorando de Martinho de Melo e Castro, que diz:«A segunda vantagem que tinhamos era não só a do Dominio absoluto, e independente na Peninsula, e Cidade de Macao, mas em huma grande parte da Ilha Ançam (Hèong-Sán), conquistada pelas Armas Por-tuguezas, como assima fica dito; e naquele Território tinhão os Portuguezes, varias Fazendas, donde tiravão muitos dos Generos, que lhes eram precizos para a sua subsistencia, sem alguma dependencia dos chinas. Introduziram-se porem estes naquela Ilha, convidados da fertilidade dela; e sem encontrarem da nossa parte o menor obstaculo, a foram insensivelmente povoando, e metendo-se de posse do Territorio, que tinhamos Conquistado, até que ultimamente, depois de se acharem Senhores dele, fizeram entre a Peninsula, onde se acha Macao, e o Continente da Ilha, hum Muro de separação, com huma Porta, a que chamam a Porta do Cerco...», C. A. Montalto de Jesus, autor da «Historic Macao», sem curar da viabilidade de uma tal hipótese, homologou-a, e, divagando e fantasiando, deixou-se convencer, como se verifica nessa sua obra, que os primeiros colonos portugueses se entregaram, previdentemente, a trabalhos de agricultura na ilha de Hèong-Sán, a fim de evitar a repetição do motivo que originou o desastre de Chincheu, isto é, o cerceamento, por parte dos chineses, do fornecimento de víveres, aos portugueses, para os fazer render à fome.
Como, durante muito tempo, o livro de Montalto de Jesus tem sido considerado uma obra paradigmática respeitante à História de Macau, passaram quantos posteriormente têm versado c assunto a repetir as suas asserções. Disso resultou o convencimento de que os primeiros colonos, assim que viram a possibilidade de se fixarem, permanentemente, trataram de providenciar, no sentido de se abastecerem, sem dependência dos chineses, tanto de vitualhas como de produtos agrícolas, e, para isso, tinham as suas granjas e herdades, no interior do distrito de Hèong-Sán.
Com o tempo, como verificaram que os aldeões nativos lhes podiam fornecer quanto necessitavam a preços irrisórios, compenetraram-se da inutilidade de se entregarem ao cultivo da terra e da criação de gado, colocando-se, assim, incautamente, na completa dependência dos mandarins, que passaram a dispor de uma arma formidável, que com frequência empregaram, isto é, daí em diante, ou os moradores de Macau haveriam de ceder às suas exigências ou ficariam na contingência de perecerem à fome.
A pouco e pouco, os chineses das vizinhanças, atraídos pela extraordinária fertilidade do solo, foram usurpando esses terrenos que pertenciam aos portugueses, por direito de conquista e ocupação, sem que os moradores de Macau se importassem de lhes opor qualquer obstáculo, tão preocupados andavam com a prosperidade do comércio com o Japãc e com a China e a consequente facilidade de viver que faz esquecer a prudência e as futuras necessidades.
Ora não nos parece que o núcleo de 800 a 900 moradores, ou talvez apenas de «... mais de 400 portugueses casados entre os quais alguns fidalgos, muitos nobres, e os mais ou quasi todos de muitos annos de bons serviços de Sua Mag.de nas armadas e guerras de todo este Estado, afora muitos casados naturais da terra e de fora e outra muita gente de varias nações que por resão de grande trato e mercãcia que ha para muitas partes deste Oriente vão e vem e nella residem o mais do anno...». cometesse a imprudência de se internar no distrito de Hèong-Sán, para estabelecer e explorar as suas granjas e herdades, onde labutavam os seus escravos negros, designados por moços, pois, além das suas propriedades não poderem ser devidamente vigiadas e muito menos defendidas, em consequência da distância relativamente grande, a que ficavam do centro da cidade, seria inevitável uma constante hostilidade das populações autóctones das numerosas aldeias, que já se encontravam estabelecidas nesse distrito, contra uma tal usurpação. Não é igualmente crível que, nessa ocasião em que as relações luso-chinesas se encontravam ainda indecisas, se dispusessem os moradores de Macau a repetir os abusos e os erros de Simão Peres de Andrade e os que foram massacrados em Liampó e Chincheu, destruindo todos os benefícios e vantagens conseguidos por Leonel de Sousa, tanto mais, para que o comércio pudesse ser acrescentado e conservado em muita paz e quietação, os moradores de Macau tinham de despender «para isso em cada hú anno muito do seu com os mandarins que governão a China com os senhores de Japão, Cochim China, e outros nas embaxadas, peitas e presentes que he necessario fazeremse para se conservar no meo de tanto e tão poderosos inimigos» De resto tinham os portugueses, mesmo dentro da península, terrenos que poderiam servir para a cultura e criação do gado, porquanto já existia a aldeia agrícola de Móng-Há. Com a vinda dos portugueses, os aldeões do interior é que foram atraídos pelo negócio que poderiam fazer com a população de Macau, muito pequena ainda, e, assim, fundaram novas aldeias como a de Lông-Tín, em frente do sítio, onde hoje se encontra o Comando da Polícia de Segurança Pública e outras. Não introduziram os portugueses a plantação do trigo, cereal que lhes servia de base de alimentação, por o terreno e o clima serem impróprios para a sua cultura, ou, por não ser necessário, trazendo-o, talvez, em quantidade suficiente, ou, ainda, por se terem adaptado fàcilmente ao consumo do arroz, mas introduziram várias espécies hortícolas como a batata doce, o tomate, a alface, o inhame, a mandioca, o agrião, a mandioca, a alcachofra, a papaia, o ananás, a goiaba e outras de origem exótica.
Entretanto, não obstante Macau ter sido doada, incondicionalmente, aos portugueses, sendo, portanto, uma dádiva isenta de qualquer ónus e livre de qualquer dependência jurisdicional chinesa, houve sempre, desde os primeiros contactos entre os mercadores portugueses e as venais autoridades chinesas, a necessidade de as presentear com quantiosos sagoates, isto é, subornos com que se deixavam peitar, sem o que não se conseguiriam vencer os obstáculos burocráticos com que emaranhavam as suas transacções comerciais. Esses subornos passaram, brevemente, a constituir uma obrigação anual, sob a denominação do foro do chão.
Sobre este foro anual de 500 taeis que se pagava ao Governo chinês até ao ano de 1849, em que foi abolido pelo heróico governador Ferreira do Amaral, diz-nos o já referido reitor do Colégio de Madre de Deus de Macau, no ano de 1626:
«E se o foro obrigativo, q hum paga a El Rey he sinal de Senhorio, e dominio q tem nos bens de q paga foro, pagando esta Cidade a el Rey cada anno de foro quinhentos taeis pelo chão e terras q ocupa, claro está q são os Portuguezes, que morão em Macao senhores da Cidade, e pello conseguinte seo Rey E se alguem quizer saber a antiguidade e solenidade deste foro, passou assim. Desde tempo que foi entregue este porto, e peninsula aos Portuguezes, logo alem dos direitos ou ancoragens, pagão certa quantidade de prata cõ titulo de foro; mas por alguns annos não se punha no thezouro del Rey; porque como os Portuguezes o entregavão ao Aitão, por ser principal G.or e protector desta terra, elle o consumia e gastava, e por isso se chamava o peitado Aitão, e durou isto por espaço de dez ou doze annos, athe q no anno de setenta e hum, ou setenta e dous hindo os Portuguezes a feira, e sahindo os Mandarins como costumavam a porta grande vestidos de vermelho para receber os direitos q levavão os Portuguezes, depois de os Mandarins lhes darem hum boyão de vinho, e alguns bolos como era costume, disse hum Pedro Gonçalves q servia de Gerubaça, e era mestiço falando cõ Aitão -- Tambem aqui trazemos os quinhentos taeis q paga a Cidade de foro -- O Aitão, como se disse aquillo diante dos outros Mandarins, vendo q corria perigo seu estado, acodio, logo: sim, esses entreguem-se ao Tequeci, porque são para o thezoureiro del Rey por serem de foro q a Cidade paga. -- E desde este tempo, q he já sincoenta annos, se paga, e enthezoura para El Rey; e como não he de direitos né de campos, nem de vargeas, senão do sitio q ocupa a Cidade, claro está q he foro do sitio, e terras q possuem: e se alguem duvidar desta historia, pergunte a verdade della a Antonio Garcez q se achou prez.te, e está vivo, e são»
As fontes chinesas, como os autores da Ou-Mun Kei Lèok, confessam desconhecer a origem do pagamento deste foro. Dizem assim:«O foro do terreno de Macau era de 500 taéis, em prata, sendo cobrado pelo distrito de Hèong-Sán.«Compulsando a História dos Meng, encontramos que o rendimento anual proveniente dos direitos de Hou-Kéang (Macau) era de 20.000 taéis e o foro de 500 taéis, não se sabendo, porém, qual a sua origem.
A Dinastia registou-o no Fu-Iêk Tch'ün-Sü 賊役全書 (Livros Completos de Estatística). Estes livros, por terem sido impressos no reinado de Mán-Lek (1573-1620) constituem uma autoridade no assunto e não se afastam muito, quando fixaram a época do estabelecimento da cobrança do foro de Macau, para meados desse reinado».
Como as relações com os chineses continuassem incertas, tentaram os portugueses obter, em 1565, um estatuto regular com o envio a Pequim de uma delegação incumbida de levar o foro do chão, isto é, o arrendamento do terreno de Macau, na esperança de que a sua aceitação implicaria o reconhecimento do facto consumado. Foi, exactamente, por este motivo que a delegação não conseguia cumprir a sua missão, sendo recusados o tributo e os presentes.
Nesse mesmo ano de1565, encontrando-se a Companhia de Jesus no seu apogeu, foi edificada a primeira igreja, simples construção de madeira e, junto dela, uma pequena casa conventual, destinada a servir de hospício aos missionários que passavam ao Japão.
«Vendo os Padres que sua entrada na China se não effeituava, determinarão de fazer ally huma casa pollo muito fruito que com os portugueses e naturaes da terra se fazia, como já tinhão experimentado, e tambem pera que os Padres que passão a Japão tivessem ally onde se recolher, porquanto esperão muitos meses pera que se embarquem. Deu se principio a esta casa no anno de 1565, contradizendo os mandarins parecendo-lhe que os portugueses com nome de igreja fizessem fortaleza; mas com boas rezões, e com peitas, que tudo acabão, ficarão quietos. Nos fomos os primeiros religiosos, que no porto de Amacao tivemos casa, a qual assy como a cidade foy crecendo, assy também creceo com o favor divino, de maneira que veyo a ser hum bom collegio, no qual averá de ordinario cincoenta religiosos.»O referido hospício, também de madeira, veio depois a ser a sede dos missionários e ali se instalaram os jesuitas espanhóis Boaventura Riera e João Bautista Ribera, em 1567, enviados pelo Geral da Companhia, padre Diogo Laynes, com instruções para envidarem todas as diligências para entrarem na China e obterem a liberdade de propaganda. O padre Ribera era
«de espirito, mais fogozo, e de coração mais resoluto, e para dizer tudo de genio mais inquieto, e assentava comsigo que quando se não abrisse algum caminho, se havia de romper por qualquer obstaculo, e cortar pela mor difficuldade.
Era mais moderado o P. Riera, e fez primeiro as diligencias, pedindo com muita humildade licença aos Mandarins de Cantão pera entrar na terra firme da China; não lhe concederão».
Os esforços tenazes desses dois jesuitas espanhóis para entrarem na China, principalmente as imprudências do impetuoso padre Ribeira, puseram os poucos padres portugueses da Companhia que viviam em Macau em sobressalto e as suas inquietações só termina ram com a chegada do bispo D. Belchior Carneiro, igualmente membro da Companhia de Jesus.
D. Belchior Nunes Carneiro Leitão, era este o nome por extenso do Bispo de Niceia nomeado Vigário Apostólico da China e do Japão, pelo breve Ex litteris charissimi de Pio V, de 2 de Fevereiro de 1566, por o bispo de Hierápoles, D. André de Oviedo, ter recusado este cargo, assim que chegou a Macau, no ano de 1568, hospedou-se numa modestíssima casa que cs jesuitas tinham edificado três anos antes, mas, a conselho do Visitador, Francisco Cabral, procurou habitação separada do hospício dos jesuitas, a fim de poder ter ampla liberdade espiritual que carecia para o exercício da sua missão. Instalou, assim, o que seria seu paço episcopal, o primeiro do Extremo-Oriente, numa vivenda, de madeira, na vizinhança da ermida de Santo António.
D. Belchior foi recebido com grande satisfação e alívio pela população, pois a alta hierarquia de que vinha revestido proporcionava-lhe poderes para impor a disciplina e a ordem tanto no meio clerical como no civil, porquanto, a autoridade que existia, por mal definida, não estava sendo devidamente respeitada.
A sé deste bispo era apenas uma pequena ermida de madeira, tendo a ela apegada uma casinha de madeira, sendo de chumbo o cálice que usava nas suas missas.
Homem de grande iniciativa e muita actividade, D. Belchior instituiu, logo no ano seguinte, isto é, em 1569, o Hospital de S. Rafael com leprosaria anexa, a Santa Casa da Misericórdia e o Hospital de S. Lázaro para os conversos chineses.
Data de 22 de Setembro de 1570 a concessão dum alvará que dispensou os nativos da China, Japão e Malucas de pagarem dízimos, durante 15 anos, sendo esta concessão destinada a facilitar a acção dos missionários.
Em 23 de Janeiro de 1576, Gregório XIII, a instâncias do rei D. Sebastião instituiu, pela bula Super specula militantis Ecclesiae, a diocese de Macau, com o título de Santa Maria, sufragânea da arquidiocese de Goa, abrangendo as províncias da China, Tartária, Tonquim e Japão. A fim de se dar cumprimento a esta bula, dizem certos autores que a igreja matriz de Nossa Senhora de Esperança de S. Lázaro foi erecta em Sé Catedral 25 e é, por ter sido a primeira catedral que, ainda hoje se celebra nesse templo a recepção de quelquer novo bispo que entre, pela primeira vez, na cidade. Para prelado desta diocese foi nomeado o cónego-tesoureiro da Sé de Évora, D. Diogo Nunes Figueira, bacharel em Teologia e Direito Civil pela Universidade de Coimbra, que, tendo já rejeitado o bispado do Congo, rejeitou, igualmente, a mitra de Macau.
Entretanto, os franciscanos espanhóis, frei Pedro de Álfaro, Sebastian de San Francisco de Baeza e Agustin de Tordesillas e o italiano Juan Baptista Lucarelli, de Pesaro, abrasados pela mística de conversão das almas de idólatras nativos e excitados pelo fervor religioso, conseguindo ludibriar o governador das Filipinas, Francisco de Sande, pretextando desejar visitar a província de Ilocos, partiram, em 14 de Junho de 1579, das ilhas Filipinas, acompanhados de três militares, Francisco de Dueñas, Juan Diaz Pardo e Pedro de Villaroel e dum intérprete chinês, que tinham convertido, em Manila, tendo chegado a Cantão, em 19 de Junho de 1579, não passando de lenda o que se conta de lcvarem bem erguida uma imagem de S. Francisco, segundo uns, ou de Cristo, segundo outros. Não sendo, porém, tolerada a sua presença em Cantão por decreto imperial, nem conseguido fazer qualquer pregação, por desconhecimento da língua nativa, resolveram passar para Macau, onde podcriam aprender o idioma sínico e sabiam que seriam bem acolhidos por D. Belchior Carneiro que lhes escrevera neste sentido e pelas autoridades locais que não só mostraram «estimar sua vinda para a cidade, mas os convidavam e incitavam com pressa os buscassem; já fosse por devoção que lhes grangeou a fama, já por os tirar de Cantão, onde os nossos portuguezes temiam que, sendo castelhanos a prégação do evangelho, se fizesse castelhano o commercio». Saíram, então de Cantão, em 10 de Novembro de 1579 e chegaram a Macau a 15 desse mês e ano, Álfaro, Lucarelli e Villaroel, este disfarçado em português, pois Sebastian de San Francisco falecera naquela cidade e Agustin de Tordesillas, Juan Diaz Pardo e Francisco de Dueñas, preferiram regressar a Manila, via Tch'ün-Tchâu e Amói, pois, como narra Álfaro «porque a ter que ir estar com os portugueses antes se deixariam fazer em pedaços por estes infiéis», tendo lá chegado, em 12 de Fevereiro de 1580, a fim de dar conta dos sucessos desta expedição ao custódio de S. Gregório, cargo este que estava sendo exercido por Juan de Placencia. Quando esses franciscanos estiveram, em Cantão, pôde Lucarelli celebrar com solenidade em casa de um chinês cristão, chamado André, que servia de intérprete uma missa, no dia de S. João Baptista, sendo esta, ao que consta, a primeira missa dita no continente chinês.
Álfaro e os seus companheiros foram muito bem recebidos em Macau e tanto o vigário D. Belchior Carneiro como vários moradores os convidaram para se hospedarem em suas casas, mas eles preferiram instalar-se no hospital dos leprosos e tão grande foi a admiração que conseguiram grangear pela humildade e resignação com que tratavam os gafos, sem pejo das suas asquerosas chagas, que os moradores instaram com eles para edificarem um convento, dando-lhes para isso bom terreno e dinheiro.
Principiou-se, então a construção do Convento de S. Francisco, em Novembro desse ano de 1579, sobre um morro na parte oriental da cidade.
«no começo de uma formosa praia, cujas ondas de continuo ferem os muros que a cercam, ficando o convento com a vista para o mar ao leste, norte e meio dia, e das muitas ilhas que por essas partes lançou a natureza, e tambem do principal da cidade, que fica ao occidente. O amor da pobreza foi o engenheiro désta machina, que em nada passou das calculações e linhas de sua geometria. O zelo das almas lhe acrescentou um seminario, em que se criassem 20 meninos, ou dos que convertessem do gentilismo, ou dos já convertidos, porque bem instruidos nos mysterios de nossa santa fé, fossem prégadores dos seus naturaes; que é certa grangearia a similhança ou identidade da natureza e propriedade da lingua».Tão grande foi a fama de santidade desses franciscanos que vieram do interior vários bonzos para os admirar e um deles pediu para ser admitido no seio da Igreja. Três portugueses professaram também, tomando o hábito de franciscanos e se chamaram fr. António dos Mártires, fr. Boaventura de Lisboa e fr. Bernardino de Jesus.
Este entusiamo pelos franciscanos não durou, porém, muito tempo, pois, aqueles mesmos que os chamaram procuraram, depois, a sua expulsão, movidos pelo receio de não ser tomada a bem pelo Vice-Rei a admissão de estrangeiros na cidade, mesmo sendo religiosos. As razões de estado soprepuseram-se às da religião.
Álfaro foi então obrigado a deixar o convento a cargo de Lucarelli e, na companhia de um noviço, partiu para Goa, a fim de expor o assunto ao Vice-Rei e ao Arcebispo. Não conseguiu, porém, o seu intento, pois o barco que o transportava naufragara, em Junho de 1580, nas costas da Cochinchina, onde os sobreviventes o encontraram, na praia, de joelhos e com o rosto posto em céu, mas morto.
Quanto a Lucarelli que desejava seguir para Cantão para trabalhar na conversão, prenderam-no como mentecapto, alegando que as penitências, vigílias e abstinências lhe tinham transtornado o juizo, e, assim, embarcaram-no preso para Malaca, onde foi recebido e ali fundou um convento.
Lucarelli regressou, novamente, a Macau, em 1582, mas teve de partir, apressadamente, em 31 de Dezembro desse ano. Chegou à Itália, em 1585, donde tentou regressar à China, pela terceira vez. Em 1592 escreveu o seu Viaggio dellÍndie, em forma de diálogo, e uma relação mais breve, que terminou em 15 de Janeiro de 1593. Faleceu em Nápoles, em 1604.
Agustin de Tordesillas regressou à China, nesse mesmo ano de 1582, com Geronimo de Burgos, Martin Ignácio de Loyola, parente muito chegado do fundador da Companhia de Jesus, Geronimo de Aguilar, Antonio de Villanueva, Francisco de Cordova, Cristoforo Gomez e três militares, um dos quais, se chamava Juan de Feria. Tendo arribado, em Junho, a um porto de Fuquien, foram presos e enviados para Cantão, onde Antonio de Villanueva faleceu, em Setembro de 1582, e remetidos, depois, para Macau.
Agustin de Tordesillas, eleito custódio do Convento de S. Francisco desta cidade foi, porém, expulso em 1585. Regressou a Manila, em 1586, onde escreveu a Relación del viage que hizimos en China e ali morreu, centenário, em 1629.Martin Ignácio de Loyola embarcou, em 31 de Dezembro de 1582 para Malaca, onde chegou em 12 de Janeiro de 1583 e a Lisboa em Agosto de 1584. Regressou a Cantão, em 1586, onde foi preso e enviado para Macau, donde seguiu para a Europa, em 1588. Foi bispo de Ascensão, no Paraguai, em 1601, e faleceu, em 1612, em Buenos Aires.
Razão tinham os moradores de Macau para se inquietarem com esta teimosa intrusão dos religiosos espanhóis na esfera de acção dos missionários portugueses e a desconfiança, seguida de declarada hostilidade, por parte dos cidadãos macaenses, estava plenamente justificada, uma vez que esses religiosos, na sua vinda à China, se fizeram sempre acompanhar de militares, que outra missão não podiam ter senão a de espionagem.
Entretanto, os mandarins iam estendendo a sua autoridade sobre as terras que confinavam com Macau e, em 1621, guarneceram, militarmente, a aldeia de Tchín Sán 30, a mais próxima da fronteira norte da península e, em 1648, estabeleceram aí um posto militar com 500 homens. Em 1573 ou 1574, sob o pretexto de impedirem as incursões dos fugitivos escravos negros, construiram uma barreira, no istmo que liga a península de Macau ao resto da ilha de Hèong-Sán, com o fim de delimitarem a fronteira, pois receavam que os portugueses fossem expandindo o seu domínio e, também, para fiscalizarem a cobrança das taxas das mercadorias que entravam ou saíam de Macau bem como para controlarem o abastecimento da cidade.
Essa barreira tinha uma porta que passou a denominar-se Porta do Cerco e que era aberta 31 periòdicamente, ao princípio, de cinco em cinco dias, e depois, quinzenalmente. Para além dessa porta, em recinto vedado, realizava-se a feira, onde os nossos se iam aprovisionar, finda a qual voltava a ser fechada e selada com seis folhas de papel, devidamente carimbadas pelas autoridades chinesas. No alto dessa porta lia-se a seguinte inscrição: «Temam a nossa grandeza e respeitem a nossa virtude».
Alguns soldados chineses encontravam-se destacados nessa barreira e, como eram mal pagos, extorsionavam quanto podiam os aldeões que traziam as suas mercadorias para a feira.
Conta Geronimo Roman, feitor espanhol nas Filipinas, que visitou Macau, em 1584, o seguinte a respeito desses soldados:
«The soldiers of this country are a disgraceful set. The other day they had a quarrel with some other Chinese who were carrying provisions to market, and beat them; the latter went to complain to the governor of Macao, who caused forty soldiers to be arrested and beaten with bamboos. They came out afterwards crying like children. They are mean, spiritless, and badly armed knaves. There is nothing formidable in thousands of such soldiers. Besides what can the soldiers be in a country where their position is looked upon as dishounarable and occupied by slaves. Our Indians of the Philippines are ten times more courageous».

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