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quinta-feira, 11 de setembro de 2025

"Ser Arquitecto em Macau"

José Celestino da Silva Maneiras nasce em Macau, em 1935, numa família macaense enraizada na sociedade local. Permanece nove anos em Portugal, onde chega em 1953, em pleno pós-guerra, e quando o regime do Estado Novo admite aberturas pontuais ao contexto internacional, como prova a realização, em Lisboa, do III congresso da União Internacional de Arquitectos (UIA). Dois anos depois, ingressa no Curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes do Porto, diplomando-se em 1962. Nesse mesmo ano retorna ao território chinês então sob administração portuguesa. A cidade possui uma elite fechada, provinciana e colonial, pouco receptiva a novidades exteriores e também à arquitectura internacional. Não há grande actividade construtiva e a edificação corrente não excede os três pisos, devendo-se essencialmente ao trabalho de engenheiros radicados no território ou a desenhadores chineses que reproduzem mecanicamente projectos de arquitectos e de outros profissionais. No arranque dos anos de 1960, o objectivo de promotores e empreiteiros é já ganhar dinheiro rapidamente.
O regresso de José Maneiras faz parte de um breve movimento migratório que leva um conjunto de jovens arquitectos portugueses a Macau, casos de Manuel Vicente, Natália Gomes, Ramires Fernandes ou Jorge Silva. Integram então os quadros técnicos do governo local, desenvolvendo planos urbanos para a cidade. A equipa, coordenada por Manuel Vicente, opta por propor planos parcelares, contendo directrizes orientadoras para alinhamentos e cérceas. As propostas são mal recebidas pela população, maioritariamente chinesa, criando alguma inércia à sua aplicação com a conivência da administração colonial pressionada pela condição política da República Popular da China, com quem Portugal não mantém relações diplomáticas.
Desse grupo inicial de arquitectos, a partir de 1966 apenas Maneiras permanece em Macau. Uma possível mobilização militar para a guerra colonial, em curso nos então territórios portugueses em África, obriga-o a ficar. Sucede a Manuel Vicente no acompanhamento à obra do Liceu Pedro Nolasco de Raul Chorão Ramalho – um dos edifícios modernos mais significativos da presença portuguesa – batendo-se mais tarde contra a sua demolição. Os acontecimentos de 3 de Dezembro de 1966 no território (o amotinamento popular, que ficou conhecido por “1-2-3”, muito influenciado pelo clima vivido durante a Revolução Cultural chinesa), que coloca em causa o governo colonial, e o afastamento geográfico face à Metrópole, provocam um período de baixo investimento que se reflecte na quase inexistência de encomenda pública e privada.
A partir de 1967, José Maneiras lança-se na actividade privada, mantendo um atelier de produção “artesanal”, com a colaboração de um ou dois desenhadores, e seleccionando as encomendas, o que lhe permite sobreviver aos tempos de menor solicitação de projectos. Da sua obra construída durante esta fase, e localizada essencialmente em Macau, torna-se tarefa difícil encontrar exemplares intactos. Muitos edifícios foram demolidos, intervencionados ou estão em risco de desaparecer. A falta de hábito de registo, por parte dos profissionais da sua geração, também não ajuda ao levantamento sistemático deste património quase desconhecido. Mas nestes anos de 1960, o arquitecto desenha e concretiza um conjunto de edifícios residenciais de inclinação brutalista, no quadro das exigências das regiões tropicais, que constitui, provavelmente, a sua fase criativa mais importante. Deste elenco, destacam-se os conjuntos habitacionais na Rua da Praia Grande (Conjunto São Francisco, 1964), na Estrada do Visconde de São Januário (duas residências, 1965), Belle Court na Penha (casa e bloco de apartamentos, 1968) ou o programa residencial para invisuais, a pedido da Santa Casa da Misericórdia (1970), na Rua Sete do Bairro da Areia Preta.
Entre a construção cerrada de Macau, as variações de escala destes programas residenciais produzem ambientes contrastantes, onde uma urbanidade, colossal e compacta, dá muitas vezes lugar a espaços de maior domesticidade. Na obra de José Maneiras, a torre da Rua Ferreira do Amaral, implantada sobre uma plataforma de serviços, e o bloco de três pisos, para invisuais, funcionam como pólos opostos da mesma realidade urbana. No momento em que é concretizado este último conjunto, o terreno encontra-se ainda vazio de construções. O projecto é executado com custos muito controlados e áreas que rentabilizam a dimensão do lote.
O arquitecto elabora ainda fábricas verticais – também um programa especifico de territórios com elevada densidade construtiva e pouca área disponível (a maioria destes imóveis encontra-se actualmente desactivada, uma vez que a produção industrial migrou entretanto para a China, tendo-se Macau especializado no jogo). A apropriação dos edifícios faz-se à mesma velocidade da sua ocupação, alterando algumas das soluções arquitectónicas originais, designadamente aquelas mais ligadas ao controle climatérico. Conforme testemunha, a qualidade construtiva também não é, ao tempo, elevada, facto que contribui para a rápida deterioração e consequente substituição do edificado. A maioria dos materiais empregues é já originária da China. Esta rápida deterioração é igualmente facilitada pela legislação que na época privilegia a propriedade horizontal, ilibando governo e privados da reabilitação dos edifícios. O 25 de Abril de 1974 vai acelerar o desenvolvimento do território, assistindo-se à chegada de um novo surto de profissionais portugueses durante a década seguinte. Alguns vêm dos antigos territórios coloniais. O arquitecto mantém a mesma postura independente, que caracteriza a sua personalidade profissional antes da Revolução. É o tempo dos grandes equipamentos públicos, desenhados dentro de filiações linguísticas mais corporativas (Interiores e ampliação do Banco Nacional Ultramarino, 1975; Hotel Ramada, não construído, 1980; piscina do Complexo Desportivo, 1984; Centro de Desportos Náuticos na albufeira da barragem de Hac Sa, 1995, p.e.). Em 1987, participa no grupo que funda a Associação de Arquitectos de Macau (AAM). Eleito no ano seguinte para o cargo de presidente, cumpre dois mandatos. Reflexo da dinâmica que imprime à organização, a AAM integra a UIA no XVI congresso realizado em Montreal, em 1990.
O governo democrático traz novas oportunidades e José Maneiras torna-se igualmente vereador (1972-1989) e, mais tarde, Presidente do Leal Senado (1989-1993), fazendo a ponte entre as culturas chinesa e portuguesa, como é tradição entre a comunidade macaeense. A prática da arquitectura fica, então, em segundo plano. Afasta-se da actividade política no período de Vasco Rocha Vieira, que governa o território na última década da presença portuguesa, entre 1991 e 1999.
Monumento de Homenagem à Diáspora Macaense junto à Fortaleza de S. Tiago da Barra

Com a criação da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM), em 1999, o território conhece a actual fase de desenvolvimento urbano tornando-se apelativo a profissionais de outras esferas geográficas. É o tempo das grandes corporações de arquitectos de Hong Kong ou dos EUA cuja experiência na produção de uma arquitectura comercial e de inspiração “tecnológica” serve os novos objectivos da cidade. Macau deseja superar Las Vegas, em volume de negócios do jogo, em construção, e em imaginário. Os pequenos ateliers têm maior dificuldade em sobreviver . O conjunto banda e torre da Praia Grande – tropical, complexo e brutalista – surge agora na sombra do “enorme, dourado, reluzente” (e anónimo) novo Casino Lisboa. José Maneiras alia-se a outros arquitectos com obra no território e dá continuidade a uma fase mais direccionada para o acompanhamento de grandes programas urbanos. Projectos como a requalificação da Praça do Tap Seac (2003-2006), com Carlos Marreiros e José Chui Sai Peng, ou a coordenação da equipa projectista do reordenamento viário da Rotunda Dr. Carlos de Assumpção (2006), assinalam este período do seu percurso profissional.
O crescimento recente da cidade, porém, estigmatiza os edifícios “modernos”. O edifício comercial Si Toi – Hong Kong Bank (actual HSBC – Hong Kong and Shangai Bank Corporation, 1982), também da sua autoria, é um caso exemplar deste fenómeno. Localizado no centro é a primeira obra em Macau a recorrer a um sistema curtain wall. O sistema é adoptado, já em construção, por decisão do promotor que assim procura alinhar-se com as tendências praticadas em Hong Kong, contrariando a opinião do arquitecto que duvida da sua eficácia em climas tropicais. Todavia, José Maneiras adapta o projecto e o edifício constrói-se com dignidade. O programa admite na época, um centro de convenções e escritórios. Hoje está ocupado com clubes privados e salões de bilhar. A pala da cobertura foi entretanto fechada. Um dos actuais proprietários chegou mesmo a romper uma laje para ligar dois pisos. O arquitecto confirma que o edifício original “nem se vê”.
Cartaz de uma palestra realizada em Macau em 2023

José Maneiras prossegue entretanto com a sua actividade, privilegiando projectos de pequena escala, como renovações de edifícios de valor patrimonial, e continuando “velhas” práticas, como o acompanhamento da obra ou a elaboração de pormenorizados desenhos. O Monumento à Diáspora Macaense, na Rua São Tiago da Barra, inaugurado em 2001, insere-se nestas preocupações. Torna-se também consultor na companhia Nam Van, para o Plano da Baía da Praia Grande, e presidente da Assembleia Geral do Laboratório de Engenharia Civil de Macau. Em 2006, é nomeado membro honorário da Ordem dos Arquitectos por indicação do então vice-presidente da instituição portuguesa e seu velho companheiro em Macau, Manuel Vicente. O seu trabalho em defesa da dignidade da prática arquitectónica, num contexto de elevada competição profissional, é considerado um exemplo ético para as novas gerações. O reconhecimento público chega assim entre pares.
Texto de de Ana Vaz Milheiro (com Hugo Coelho, em Macau) publicado no nº 243 do Jornal de Arquitectura, 2011.

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