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terça-feira, 25 de junho de 2024

De Macau a Cantão por Arthur Lobo d'Avilla

Em uma formosa manhã de Dezembro de 1876, a canhoneira Tejo, do commando do chefe da estação naval de Macau, o sr. Ferreira do Amaral, largava d'este porto levando a seu bórdo o governador da colonia, dirigindo-se a Cantão, onde o representante de Portugal ia não só visitar o vice-rei Liu, governador da provincia de Quang-Tung ou, dos Dois-Quangs, mandarim de botão de coral, mas tratar com esse alto funccionario varios assumptos relativos aos postos fiscaes das proximidades de Macau.
Esta quadra do anno em que na Europa o inverno se accentúa, é pelo contrario a mais bella n'esta região da China. É o tempo em que, passada a monção do sul, geradora dos terriveis tufões, dominam os ventos do norte, mas não já com a violencia dos primeiros dias da mudança da monção, pelos fins de Outubro. É uma estação como a da primavera na Europa, tempo claro, céu anilado e sol brilhante, divergindo apenas na temperatura, que é frigidissima, approximando-se ás vezes ao zero.
A Tejo, sahindo do porto interior, onde tinha o seu ancoradouro em frente da fortaleza da Barra, singrou cautelosamente, contornando a Praia Grande, entre a qual e a fortaleza da Taipa fica a celebre Pedra d'Areca da tão assoreada entrada de Macau, e dentro em pouco podia-se admirar o panorama completo da cidade do Santo Nome de Deus de Macau na China, á qual pela vez primeira abordou o navegante portuguez Perestrello, em 1516, quando o reinado do Monarcha Venturoso tocava o zenith na gloria dos descobrimentos.
A peninsula de Macau, extremo da provincia de Cantão em que esse portuguez fundou a colonia, dezenhava-se nitidamente no horisonte, coroada pelas suas numerosas fortalezas, do Monte, de D. Maria, de Mong-ha, e sobranceira a todas, sobre as ribas á beira-mar, a da Guia, em que foi construido o primeiro pharol que allumiou mareantes na China, tendo à meia encosta, d'um lado, o cemiterio parse, com os seus tumulos escalonados em amphitheatro, do outro o bello hospital S. Januario, de caprichosa architectura.
Agora já em plena rada a formosa canhoneira portugueza, navegando mais rapidamente, approxima-se da ilha do Lantau, seguindo quasi a egual distancia d'ella e da costa da provincia de Cantão, divisando-se a povoação da Casa Branca, fronteiriça de Macau, e entre o limite da colonia marcado pelo arco das Portas do Cerco e aquella séde mandarina, sobre uma pequena elevação, a fortaleza de Passa-Leão, famosa por um feito d'armas da guarnição de Macau, depois do assassinio do governador Ferreira do Amaral, pae do official distincto sob cujo commando a Tejo vae fazendo a sua derrota.
A manhã é toda consumida em sulcar o vastissimo estuario do rio de Cantão, em que por vezes se chega a perder a terra de vista, rio enorme, que mais parece um mar, semeado de numerosas ilhas, percorrido sempre por lorchas e juncos alterosos que vão a Batavia e a Singapura, em longas e arriscadas navegações, rio que só parece tomar a nossos olhos este aspecto de mais limitadas proporções, quando chegamos á Bôcca do Tigre, em chinez Hu-Mun. Aqui forma uma verdadeira garganta guarnecida pelas celebres fortalezas que as tropas e esquadras alliadas da França e Inglaterra por duas vezes, em 1839 e 1859, tomaram de
assalto e bombardearam. 
O rio de Cantão d'aqui até á cilade, n'um longo e caprichoso percurso de muitas milhas,serpeia entre varias povoações, Amug-hoy, Wantong, Ti-cok-tao, e Whampu, célebre não só pelas suas docas, mas por ser o ponto d'onde vem todos os dias a carne de vaca para Macau no vapor que faz a carreira diaria entre a colonia portugueza e Cantão. Às margens ora elevadas, de escuros granitos, apresentando sepulturas dispostas em amphitheatro, ora vestidas de bambuaes, ora finalmente de arrozaes extensos e planos, são altamente pittorescas; e quando são formadas pelas varzeas d'arroz, cortadas por numerosos canaes que veem dar ao rio, e sulcados por embarcações de que só se percebem as velas de esteira discorrendo entre a verdura, semeada aqui e acolá de granjas chinezas, ou pagodes em vistosos e brilhantes torres, com a sua ornamentação caracteristica de telhas e figuras de louça, tomam, architectura á parte, um aspecto de paiz baixo e alagado, que faz recordar as descripções da Hollanda. Nuvens de garças brancas e patos bravos pousam nos campos ou atravessam os ares em bandos, e por entre a vegetação, em tractos de terreno mais secco, vêem-se chinas lavrando a terra com charruas primitivas arrastadas por bufalos.
O sol vae subindo nesse horisonte anilado e sereno do céu nos mais formosos dias d'esta região, e lá no extremo, em que dentro em breve se ha de perceber o começo da cidade fluctuante de Cantão, vae-se esbatendo suavemente em um tom lilaz delicadissimo, que se casa bem com à atmosphera embalsamada e dormente peculiar no Oriente.
Mais algumas milhas percorridas nos zig-zagues que o tio descreve, e a proximidade da cidade começa a ser accusada por maior movimento de embarcações pequenas chinezas, e pelos barcos de recreio dos europeus residentes na concessão extrangeira, denominada Sha-Myen, e na margem esquerda do rio, em que fica o Canton Hotel, que será a nossa residencia. (...)"
Texto da autoria de Arthur Lobo d'Avilla publicado no nº 18 da Revista Portugueza Colonial e Marítima em 1899.

Notas:
1. A canhoneira Tejo foi construída em 1868 e entrou ao serviço da Marinha Portuguesa em 1869. Participou em várias missões em África, principalmente em Angola e Moçambique e parte notória do seu serviço foi na Ásia Oriental. Fez missões no Cantão, Sião e Hong Kong.
2. O governador era
3. Artur Eugénio Lobo de Ávilla (1856-1945) acompanhou o pai, José Maria Lobo de Ávila (1817-1889) no cargo de Governador de Macau de 1874 a 1876 na qualidade de Secretário Particular do Governador e foi também Secretário de Legação na China, no Japão e no Sião. Regressou a Lisboa em 1877. Publicou vários livros. Destaco as suas "Memórias", de 1945, onde inclui uma parte intitulada "Com interessantes apontamentos da sua viagem à China".
4.Imagens não incluídas na publicação referida.

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