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terça-feira, 3 de maio de 2022

"Sanção na Vingança!"

Nomeado secretário do governador de Macau, Francisco Maria Bordalo (1821-1861) chegou a Macau em 1850, pouco depois da explosão da fragata D. Maria II, onde morreu o irmão.
A tragédia serviu de inspiração para uma pequena novela que se baseia em factos verídicos, e a que deu o título de "Sansão na Vingança". Foi primeiramente publicado em jeito de folhetim em várias edições (7 partes) do jornal O Panorama em 1854. Seguem-se alguns excertos de um texto de uma clareza pouco habitual para a época e que se lê de uma assentada.

"Um Bairro de Macau
Em todas as cidades ha um bairro immundo de construcções mesquinhas de miseravel apparencia habitado pela parte mais indigente da população e que é todavia o pedaço mais poetico, mais monumental d'esses grandes corpos e quasi sempre o seu berço. Ao aproximar de uma cidade antiga o viajante adivinha logo onde começou a nascer essa povoação; os signaes são caracteriscos. Enxergue se uma alta montanha coroada de ameias eriçada de canhões, é christã a terra, vêr-se-ha tambem ali o emblema eterno da redempção essa eminencia domina a planicie que em outros tempos estaria exposta a correrias de inimigos, logo as primitivas habitações deviam ser a abrigo da artilharia pendurar se pela collina até ao sobpé do monte é só mais se espraiariam pelo valle 
E assim que a primitiva Lisboa desce pela encosta do castello até se abysmar em Alfama; o velho burgo do Porto circumda os paços acastellados do seu bispo soberano; e em Macau, de que ora vamos tratar, a baixa do Monte espriguiça-se aos pés da sua antiga cidadella. Esta parte, a mais nobre de cada povoação, pelo seu fôro de antiguidade, é, por uma triste contradicção das cousas humanas, votada pelo andar dos tempos a ser o receptaculo de todos os vicios e torpezas, de mistura com todas as miserias, uma como excrecencia da sociedade, um logar maldito que a cidade nova repelle de si, como os sãos engeitam o leproso. 
Ainda esta circumstancia se dá no sitio de Macau, já apontado, onde tem logar a primeira scena do pobre drama que nos propomos esboçar, tão pobre como o seu auctor e o seu palco.
Macau é uma cidade formosa, elegante mesmo, mas de poucas recordações historicas, e esse mesmo pouco que pode ainda interessar ao antiquario está vinculado à fortaleza de S. Paulo do Monte, que abre o seu manto de muralhas para acoutar os fieis que repousam nas humildes pousadas da encosta. 
Nunca houve um alvoroto popular, uma sedição de chins, uma conspiração do senado, que para ali se não recolhessem as auctoridades da terra, a tropa e os habitantes pacificos; e o fogo de uma só bombarda pelos frades da companhia de Jesus foi bastante para fazer parar os hollandezes de Cornelio Reyerszoon quando em 23 de junho de 1622 assaltaram a cidade, facto o mais glorioso da historia de que é até hoje commemorado com procissão e festa annual. 
A este lado da cidade encaminharemos pois o leitor. Supponha que desembarcou na praia Grande, que sobe pela calçada de S. João, que atravessa o largo da Sé sem se demorar na contemplação da estranha architectura da cathedral, siga pela travessa do Bispo, volte á rua do Hospital, e verá a pouca distancia o rotulo de uma esquina a dizer lhe: "Calçada do Monte / Tái Pau toe Chian Kae. (...)
Edição de 1980 feita em Macau

Galgando por essa ladeira chega se á baixa do Monte, logar mais arriscado no transito noturno do que o bazar chinez da mesma cidade. É ahi que se refugiam os desertores e outrus quaesquer criminosos que fogem ao encontro da justiça e que acham guarida nas miseraveis barracas e palhoças de mulheres sem nome e quasi sem classificação no genero humano, pela sua hedionda fealdade. Entremos em um d'esses miseraveis alcouces, habitação de uma filha de Timor e observemos o que ahi se passa ao declinar do dia 26 de outubro de 1850. (...)
O Bazar de Macau
Começava a alvorecer o dia 27 de outubro João Antonio de casa da timora e dirigiu-se a alfandega. Este edificio grandioso que ser viu em outro tempo de casa fiscal do porto estava agora repartido para differentes usos visto que Macau havia sido declarado porto franco; ácerca d este enorme erro governativo bastante e bem se tem escripto e uma tal discussão está fora do nosso programma. O motivo que levava João Antonio naquella direcção era ser o espaçoso caes da alfandega o logar em que commummente embarcavam e de as tripulações dos navios de guerra tanto dos surtos no rio como dos ancorados na Taipa, pequeno porto defronte da cidade onde então se achava a fragata D Maria II. (...)
Eram oito horas da manhã *A fragata D Maria II e a corveta americana Marion fundeadas porto da Taipa estavam garbosamente em em arco da mesma forma que as corvetas e D. João I que ancoravam no porto interior proximidade da alfandega o dia nascêra formoso um brilhante sol fazia luzir a artilharia dos navios e avivava as cores das bandeiras era um dia de festa o anniversario de um principe sabio parecia respirava alegria a bordo da nossa pequena esquadra. (...)
Perante aquelle espectaculo horrivel do aniquipar lamento de um grande navio e da sua numerosa guarnição occorreu tambem aos homens corajosos que estavam na cidade a idea de voarem em soccorro de alguem que houvesse escapado do incendio e que corresse o perigo de morrer nas aguas por vingança e auxilio entre esta gente que corria as praias e embarcava para o logar do sinistro appareceu aquelle official de artilharia que encontramos em casa de Murray o qual saltando ligeiramente para dentro de uma lorcha ía mandar remar com força para a Taipa quando outro objecto horroroso tambem o fez suspender junto ao caes. (...)
* 28.10.1850

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