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quinta-feira, 2 de abril de 2020

Chine ancienne et nouvelle

No último ano do século XIX o francês, G. Weulersse (1874-1950), antigo aluno da Escola Normal Superior, agregado de História e Geografia e bolseiro de viagem da Universidade de Paris passou pela China numa viagem à volta do mundo.
Em 1901 escreveu as impressões e reflexões pessoais da viagem e um ano depois publicou-as em Paris num livro  de 366 páginas intitulado "Chine ancienne et nouvelle: Impressions et Réflexions" 
O terceiro capítulo - pág. 63 a 79 -  é dedicado a Macau onde o autor esteve em Abril de 1900.

Neste post apresento alguns excertos da edição original em francês e a tradução dos mesmos onde são abordados os mais diversos temas, desde a arquitectura a hábitos locais, passando pelos templos e igrejas (Ruínas de S. Paulo e Sé Catedral), a gruta de Camões, a população cristã e chinesa, o comércio, o ópio e o jogo do fantan.


"Avec sa fraîche polychromie de murailles blanches, jaunes, mauves et roses, ornées de volets verts et vêtues de verdure, sous le ciel bleu, au grand soleil Macao a un air de jeunesse et de gaîte"

Com a sua fresca policromia de muralhas brancas, amarelas, malvas e rosadas, enfeitadas com postigos verdes e vestidas de verdura, sob o céu azul e o sol escaldante, Macau tem um ar jovial e alegre.

"La 'Praya Grande' est l'orgueil de Macao. C'est un boulevard qui se développe avec ampleur en croissant sur la grande baie. La vue sur le large est très belle: la mer vient battre les enrochements du quai, et quelquefois rejaillit par-dessus les parapets de granit. Ce n'est plus ici l'atmosphère étouffée d'Hong-Kong: on respire à pleins poumons la brise. L'ombre est délicieuse des banians aux branches basses, au feuillage serré, que l'âpre vent de mer a noués et tordus. Enfin ce grandfront de vérandas décorées des plus fraîches couleurs, ces étages de colonnes, ces frontons, ces terrasses: tout cela forme unjoli décor. (...)La Praya est soignée comme une allée de parc: on n 'a rien négligé pour l'embellir; même les poteaux télégraphiques sont décorés, peints en bleu et rouge, et surmontés de boules dorées. C'est l'élé-gance, le 'fini' minutieux d'une ville que le mouvement de la vie ne trouble plus, et qui se pare elle-même comme une relique" 


A Praia Grande é o orgulho de Macau. É uma grande avenida que se desenvolve ao longo da baía. A vista sobre o conjunto é muito bela: o mar bate nas rochas do cais e, por vezes, ultrapassa os resguardos de granito. Aqui já não há a atmosfera abafada de Hong-Kong: respira-se livremente a brisa. É deliciosa a sombra das figueiras de ramos baixos, folhagem serrada, que o rude vento do mar enredou e retorceu. Esta grande frente de varandas pintadas de cores alegres, estes prédios coloniais, estas fachadas, terraços, formam um cenário bonito. (...) A Praia está cuidada como se fosse uma alameda de parque: o seu embelezamento é muito cuidado. Até os postes telegráficos foram decorados, pintados de azul e vermelho, com um globo dourado no topo. É a elegância, o acabamento minucioso de uma cidade que não é afectada pelo movimento normal e que se enfeita a si própria como uma relíquia.

"Plus vivante que l'arrière-ville, la Praya manque cependant d'animation. Les pousse-pousse sont de longues heures oisifs à leur station; et à certains moments la Praya serait désert sans les ratisseurs et balayeurs continuellement occupés à ramasser les feuilles tombées des banians" 

Mais viva que a parte interior da cidade, mesmo assim a Praia tem falta de animação. Os riquexós permanecem estacionados durante horas nas suas estações. Por vezes, a Praia fica deserta, sem os raspadores e varredores que se ocupam da limpeza das folhas caídas das figueiras.

"Au-dessous de l'arsenal, vaste bâtiment blanc aux volets verts dont le badigeon s'est écaillé, au pied d'une muraille de pierres sèches, s'étend le jardin où furent achevées les 'Lusiades'. Des haies de jeunes bam-bous; un taillis clairsemé de grands banians àcaoutchouc dont les racines comme des serpents se glissent dans les fissures des roches, et comme des tentacules de poulpe les enserrent; des dessins de rocaille, mais recouverts de mousse; des allés élégantes, mais envahies par les herbes: tout respire un air de demi-abandon, de nature douce et libre. Quel contraste avec le somptueux, l'impérial jardin de Hong-Kong: mais c"est bien ainsi qu'on imagine la retraite du poète!

Voici son observatoire: il tombait en poussière, on a dû le reconstruire. Mais du haut de la colline la vue ne descend plus sur une campagne paisible comme alors! Au pied même de la terrasse s'étend un quartier chinois. De petites maisons aux toits de tuiles brunes, si pressées les unes contre les autres qu'à peine aperçoi-ton de rares coins de façades blanches, bleues ou roses: au-dessus s 'élèvent les tours des Monts-de-Piété, l'arête des grands murs bordée d'une sorte de fresque blanche et noire. Et le guide me donne des détails positifs: ces Chinois paient 3 cents par an et par mètre carré au gou-vernement de Macao.
El là-bas cette île au nom poétique - 'Green Is-land', l'Ile Verte - est maintenant rattachée à la terre, gâtée par les cheminées et les fumées d'une fabrique de ciment anglaise: cela rapporte 400 piastres par an au gouvernement de Macao, plus 10 cents par tonneau de ciment; — si seulement Camoëns les avait eus pour revenu! Le monument du moins est digne du poète. Entre deus énormes blocs de granit qui, en s'appuyant l'un contre l'autre, forment une arche naturelle, le buste de bronze est placé sur un socle de granit, et sur l'héroїque mélancolie de ce visage où l'soeil droit est éteint, descendent comme des lauriers toujours nouveaux des bran-ches defeuillage vert."


Na parte inferior do arsenal, um grande edifício branco com postigos verdes cuja tinta se lascou, na base de uma muralha de pedras secas, desenvolve-se o jardim onde foram terminados Os Lusíadas. Fileiras de bambus novos, uma mata com grandes figueiras cujas raízes serpenteiam por entre as fendas das rochas e, como tentáculos de polvo, as abraçam; desenhos de conchas cobertas de musgo; alamedas elegantes, mas invadidas por plantas: tudo tem um ar de semi-abandono, de natureza doce e livre. Que contraste com o sumptuoso jardim imperial de Hong-Kong. No entanto, é neste ambiente que se imagina o retrato do poeta!
Eis o seu observatório: cheio de pó, era preciso reconstruí-lo. Mas do alto da colina a vista já não abrangia um campo agradável como então! Perto do terraço, estende-se um bairro chinês. Pequenas casas com tectos de telhas castanhas, apertadas umas contras as outras, azuis ou cor de rosa: por cima, elevam-se as rodas dos Montes-da-Piedade, a aresta dos grandes muros bordados de preto e branco. O guia dá-me informações: estes chineses pagavam 3 centavos por ano e por metro quadrado ao governo de Macau.
Lá em baixo, uma ilha de nome poético - Ilha Verde - que já está ligada à terra, corrompida pelas chaminés e fumos de uma fábrica inglesa de cimento que paga ao governo de Macau 400 piastras por ano e 10 cêntimos por tonelada de cimento; como seria bom se Camões pudesse ter usufruído de tal rendimento.
Pelo menos, o monumento é digno do poeta. Entre dois blocos enormes de granito que, apoiando-se um contra o outro, formam um arco natural, o busto de bronze está colocado sobre um pedestal de granito e, sobre a melancolia heróica desta imagem com o olho direito tapado, ramos de folhagem verde caem como coroas de louros.

"Ces rues étroites, ces 'calçadas' grimpantes et tournantes, sans trottoirs, pavées de têtes de chat ro-cailleuses ou glissantes, rappellent le siècle passé. Les grands vitrages de coquilles vaguement translucides montées sur un treillis en bois, aussi étranges à nos yeux que les carreaux de papier des Chinois, nous transportent encore plus loin, dans le Moyen Age. En plein jour ces rues sont presque désertes. Dans la plupart la pente est trop raide même pour des pousse-pousse. Le visiteur y peut errer et rêver sans être dérangé, troublé même par le bruit: dans quelque endroit un peu plus large il trouvera peutêtre la chaussée transformée en atelier par de petits artisans chinois qui y étanlent, pour sécher, des fleurs artificielles ou bien des cheveux. Beaucoup des rues ou ruelles serpentent entre de grands murs aveugles, sans fenêtres et même sans portes, par-dessus lesquels parfois débordent des verdures tombantes dont la luxuriance même dit l'abandon; entre lesquels résonnent clair les pas solitaires sur le pavé de galets. Quand ce ne sont pas des murs de couvents, ce sont les murs de soutènement des maisons en terrasse."


As ruas estreitas, as calçadas trepadoras e enleantes, sem passeios, calcetadas com pedras ásperas ou escorregadias, fazem lembrar o século passado. As grandes vidraças vagamente translúcidas postas sobre um engradado de madeira, tão estranhas para nós como os ladrilhos de papel dos chineses, fazem-nos recuar até à Idade Média.
Durante o dia, estas ruas estão quase desertas. Na maioria dos casos, o declive é demasiado íngreme mesmo para os riquexós. O visitante pode aí vaguear e sonhar sem ser incomodado ou perturbado pelos ruídos: nas ruas mais largas encontrará talvez a calçada transformada em oficina, com os pequenos artesãos chineses aí instalados, secando as flores artificiais ou até cabelos.
Muitas ruas ou ruelas serpenteiam entre os grandes muros cegos, sem janelas e até sem portas, por cima dos quais cai por vezes uma vegetação luxuriante, sinal de abandono. Aqui, os passos solitários ressoam claramente sobre o pavimento de calhaus. Quando não se tratam de muros de convento, são muros de apoio de casas com terraço.

"Presque toutes les fenêtres d'ailleurs sont défendues par de forts barreaux qui donnent aux habita-tions un aspect de prisons: précaution utile contre les voleurs qui sont nombreux à Macao; protection éven-tuelle contre un coup de main de la population chinoise, très mêlée et assez turbulente!" 


Quase todas as janelas exteriores são defendidas por barras fortes que dão às habitações um ar de prisão: precaução útil contra os ladrões que são numerosos em Macau; protecção contra um eventual golpe de mão por parte da população chinesa, muito intrometida e deveras turbulenta.
"Les plus riches habitations privées sur la Praya Grande sont celles de gros commerçants chinois qui, après fortune faite, ont trouvé ici un refuge contre les exactions des mandarins; ils y ont trouvé aussi un air plus sain que celui de Hong-Kong, et des terrains moins chers" 

As habitações privadas mais ricas da Praia Grande pertencem a corpulentos comerciantes chineses que, depois de conseguida a fortuna, aqui encontraram refúgio contra as imposições dos mandarins; aqui encontraram igualmente um ar mais puro do que em Hong-Kong e terrenos mais baratos.
Ruínas de S. Paulo: Imagem não incluída no livro
"Le véritable monument de l'ancien Macao est une ruine, le portail de 'San Paulo'. Les escaliers qui y montent sont imposants: ils montent, montent, comme vers les nuages, semblables aux escaliers célèbres du Japon; mais larges comme des terrasses, ils ont encore plus de grandeur; l'herbe a beau pousser sur leurs marches de pierre. La façade seule restée debout se détache en plein ciel comme un grand portique triangulaire à trois étages."

O verdadeiro monumento da antiga Macau é uma ruína, a fachada de S. Paulo. As suas escadas são imponentes, não param de subir, até parecem as célebres escadas do Japão; mais largas que terraços, têm ainda uma grandeza maior. A erva cresce por entre os seus degraus de pedra. A fachada fica no topo, destaca-se em contraste com o céu, como um grande pórtico triangular de três andares.

"L'incurie des Portugais a laissé la saleté chinoise souiller cette ruine. Ce qui fut l'intérieur de la nef n'est qu'un amas de décombres et d'ordures où les porcs se promènent. Au moment où je lis l'inscription sculptée sous la grande arcade du milieu: 'Mater Dei...' une énorme truie paraît dans l'ouverture; et des immondices sont accu-mulées devant la 'première pierre', jadis posée en grande pompe, où se lit encore une inscriptions mémorable:
VIRGINI MAGNAE MATRI CIVITAS MACAENSIS LIBENS POSUIT AN. 1602."


A incúria dos portugueses deixou a sujidade chinesa estragar esta ruína. O que tinha sido o interior da nave é agora um monte de escombros e imundície onde os porcos se passeiam. Na altura em que leio a inscrição esculpida sob a grande arcada do meio Mater Dei... aparece uma grande porca na entrada. A imundície acumula-se à frente da "primeira pedra", lançada com grande pompa, onde se pode ler uma inscrição memorável.

"L'intérieur de la cathédrale est très gai, tout blanc, vivement éclairé par de larges fenêtres ouvrant sur des vérandas; les lustres sont chargés de cristaux; jusqu'aux verres des lampes qui sont ondulés et teints en bleu: c'est une salle élégante. Point de mystère, point d'envolée: l'arc du plafond est surbaissé, et des filets d'or relèvent la corniche blanche, comme dans un salon Louis XVI. La chaire est de belle laque noire dorée; et les boiseries des 'loges' reluisent également de laques et d'ors. Les chapelles latérales sont décorées en bleu foncé et en rouge vif. Le grand autel est tout blanc, mais étincelant d'orfèvreries; au-dessus une Vierge en blanc trône sous un dais bleu tendre" 

O interior da catedral é muito alegre, todo branco, iluminado pelas largas janelas abrindo sobre varandas; dos lustres carregados de cristais, até aos vidros das lâmpadas, ondulados e azulados, é na verdade uma sala elegante. O arco do tecto é rebaixado e filetes de ouro realçam a cornija branca, como num salão do estilo Luís XVI. O púlpito é feito de laca preta dourada e os forros reluzem também com lacas e ouros. As capelas laterais estão decoradas com azul escuro e vermelho vivo. O grande altar é todo branco, mas decorado com joalharia. Por cima, está uma Virgem num trono branco sob um pálio azul suave.
"Macao est remplie de religieux et fait montre de ses soldats. Mais ce sont justement des soldats de parade: c'est à peine s'ils savent tenir leur arme; et au moindre défilé on les voit tous: ils sont deux cents. Macao est défendue par sept forts: cela fait à peine trente hommes par fort, à peine de quoi garder les priso-nniers. Et ces forts sont des antiquités: la plupart des canons sont des canons de bronze. Macao contre une attaque sérieuse ne tiendrait pas une heure!" 

Macau está repleta de religiosos e faz alarde dos seus soldados, mas são somente soldados de parada: é com muito custo que sabem pegar numa arma e no mais pequeno desfile vêem-se logo todos pois são só duzentos. Macau está defendida por sete fortes e é com muito custo que cada um tem uma guarnição de trinta homens e é também com dificuldade que os presos são guardados. Estes fortes são antiguidades: a maioria dos canhões é feita de bronze. Perante um ataque a sério, Macau não durava mais do que uma hora.

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