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quinta-feira, 2 de julho de 2020

"José Calvet de Magalhães, um diplomata entre dois regimes": 1ª parte

Excertos sobre Macau do artigo "A arte do compromisso: José Calvet de Magalhães, um diplomata entre dois regimes" de Pedro Aires Oliveira, Revista Ler História, nº 71/2017 p. 103-126.
Livro de 1992
Entre os diplomatas portugueses de carreira da segunda metade do século XX, porventura poucos se poderão equiparar a José Thomaz Cabral Calvet de Magalhães (1915-2004) em termos de influência e notoriedade. (...)
A sua estadia americana, porém, foi curta. Lisboa tinha-lhe reservado um outro destino. No Verão de 1946 é chamado às Necessidades para receber instruções acerca do posto que lhe fora confiado – o consulado em Cantão. Tratava-se, bem entendido, de uma missão eminentemente política, dada a reduzida expressão da comunidade portuguesa na capital de Guangdong. Macau, à semelhança de Hong Kong e outros estabelecimentos europeus, estava na mira de várias correntes de opinião nacionalistas chinesas, há muito ressentidas com as humilhações infligidas pelos ocidentais desde as guerras do ópio do século XIX e os “tratados desiguais” daí resultantes. Apesar de fragilizado pela guerra civil contra os comunistas, e outros problemas não menos intratáveis, o governo do Kuomintang conseguira duas proezas assinaláveis – o reconhecimento como um dos “Cinco Grandes” nas recém-constituídas Nações Unidas (um assento permanente no Conselho de Segurança) e a cessação dos privilégios de extra-territorialidade auferidos pelas potências estrangeiras na China (Mitter 2013, 125).
Embora aceitando a inevitabilidade dessa perda, as autoridades portuguesas resistiram à ideia de inscrever uma cláusula relativa ao futuro de Macau no acordo de troca de notas que celebraram com o governo de Chiang Kai-shek, em Abril de 1947. Essa circunstância daria azo ao surgimento de uma aguerrida campanha de imprensa contra os interesses portugueses, tão mais virulenta quanto, durante a segunda guerra mundial, o ministro português na China não seguira para o interior com o governo de Chiang (mantendo-se na zona ocupada pelos japoneses), e Lisboa adiara até à última hora a assinatura de um acordo similar àquele que os EUA e outras potências ocidentais haviam celebrado com a China, com vista à renúncia dos seus direitos extraterritoriais.
Perante a volatilidade da situação, e a possibilidade de certas dinâmicas relativas à “retrocessão de Macau” acabarem por escapar ao controlo da liderança de Chiang, a missão de Calvet era delicada. Como lhe terá confidenciado o secretário-geral Marcello Mathias, Salazar já daria Macau como “um caso perdido”. Gozando de instruções bastante abertas, o novo cônsul rapidamente revelou notável desembaraço na condução de uma série de iniciativas visando esvaziar a pressão desses sectores mais militantes, desde a organização de uma visita de jornalistas cantoneses a Macau ao estabelecimento de um relacionamento pessoal com T. V. Soong, governador de Guangdong, cunhado e antigo ministro das Finanças de Chiang Kai-shek, junto do qual foi capaz de garantir um acordo para o fornecimento de arroz a Macau – proeza tão mais assinalável quanto a guerra civil em curso viera trazer enormes dificuldades ao abastecimento de Cantão e outras cidades. Porventura fundamental para esse à-vontade que foi evidenciando terá sido a sua apetência pela compreensão da história, da cultura e da sociedade chinesas, mesmo que as suas impressões nos pareçam agora tingidas do “orientalismo” típico daquela época (Klein 2003). Embora maioritariamente apoiados em fontes ocidentais, ou em traduções inglesas dos pronunciamentos dos líderes chineses, os relatórios que entre 1947 e 1952 foi produzindo acerca da evolução da situação política na China e na Ásia Oriental estão recheados de observações certeiras e premonitórias, como veremos a seguir.
Duas questões fundamentais atravessavam algumas dessas monografias – por que razão a China aceitara a presença portuguesa em Macau desde o século XVI? E quais as orientações que Portugal deveria seguir para conservar a sua soberania no enclave, agora que o nacionalismo chinês se mostrava mais aguerrido e intransigente?
Para responder à primeira questão, Calvet socorria-se de vários exemplos históricos que, no seu entender, atestavam o sentido eminentemente pragmático dos burocratas imperiais chineses face aos benefícios que poderiam advir da interacção com um pequeno poder ocidental. Portugal era simplesmente demasiado fraco para constituir uma ameaça equiparável àquela que outras potências estrangeiras começaram a representar para o Império do Meio a partir do século XVIII, sem esquecer que a China nunca verdadeiramente considerou que alguma vez tivesse abdicado da sua soberania no enclave – uma circunstância facilmente verificável pelo pagamento de tributos aos vice-reis de Cantão à presença de “magistrados chineses exercendo jurisdição e aplicando leis chinesas” em Macau. Em segundo lugar, Calvet entendia que as pressões mais difíceis de gerir sobre Macau eram sobretudo as oriundas de Cantão (do vice-rei ou dos mandarins dos distritos vizinhos), circunstância que havia levado os portugueses a procurar uma interlocução directa com o centro imperial, primeiro através do sistema de embaixadas extraordinárias, mais tarde através da acreditação dos governadores de Macau como ministros plenipotenciários junto da corte em Pequim.
Uma perspectiva histórica era igualmente útil para a definição de políticas realistas relativamente aos poderes que governavam a China. Segundo Calvet, havia uma tensão permanente que perpassava a história de Macau – o choque entre uma tendência “nacional” (geralmente encarnada por governadores, bispos ou ouvidores e procuradores do povo) e uma tendência “macaísta” (personificada por influentes locais que dominavam o Leal Senado). Mas – homem do seu tempo – em vez de sugerir uma conciliação entre estas duas correntes, Calvet pronuncia-se claramente a favor da primeira, mesmo sem ignorar o precedente trágico de Ferreira do Amaral (1803-49), o governador que ao tentar transformar Macau numa verdadeira colónia, no rescaldo da I Guerra do Ópio (1839-42), pusera em xeque os mandarins chineses que exploravam parte das alfândegas do enclave, acabando depois assassinado a mando destes. Sem ocultar alguma sobranceria em relação aos “comerciantes semi-analfabetos de Macau”, Calvet entendia que tudo deveria ser feito para se impedir que estes desempenhassem uma influência relevante nas políticas portuguesas, o que implicaria que estas fossem conduzidas o mais autonomamente possível pelas autoridades nomeadas por Lisboa. Demasiadas vezes, considerava Calvet, a administração portuguesa tinha-se vergado aos vexames orquestrados pelos mandarins chineses dos distritos vizinhos sempre que algum administrador mais enérgico tentava pôr termo aos seus privilégios.
Em Junho de 1948, com menos de dois anos de posto, Calvet permitia-se já delinear uma série de directrizes com vista à “consolidação portuguesa em Macau” e a uma “aproximação luso-cantonense”: intensificar contactos directos entre autoridades portuguesas e cantonenses, mas com uma “intermediação” o mais reduzida possível da elite macaense; tratar as autoridades cantonenses com a maior “lealdade e franqueza”, atendendo à sua educação sofisticada; e ter presente que, apesar de alguns pontos de convergência, os interesses de Portugal e outras potências ocidentais na China, nomeadamente a Grã-Bretanha, estavam longe de se equivaler. Este último ponto merece ser salientado, dada a estreiteza dos laços que subsistiam entre Lisboa e Londres. No seu registo desassombrado, Calvet argumentava que, independentemente da colaboração que pudesse existir entre Macau e Hong Kong, Portugal nada tinha a ganhar em se associar demasiadamente à “velha aliada” naquele contexto. Enquanto o seu interesse fundamental na China praticamente se reduzia à retenção de Macau, a Grã-Bretanha jogava muito na manutenção de Hong Kong, dos privilégios comerciais que fora arrancando à China no último século, e até na obtenção de novas concessões, como a abertura dos portos do Yangtzé à navegação estrangeira. Numa altura em que a derrota do Kuomintang estava ainda por se consumar, Calvet acreditava que Portugal não deveria descurar um possível apoio da potência ocidental que estava em melhores condições de influenciar o curso da política chinesa – os EUA.
O momento em que possivelmente a personalidade de Calvet mais sobressaiu neste contexto foi quando Portugal teve de se posicionar relativamente ao reconhecimento da República Popular da China, proclamada por Mao Tsé-tung a 10 de Outubro de 1949. A possibilidade de uma vitória comunista na guerra civil chinesa vinha-se desenhando há algum tempo, não obstante Calvet ter permanecido céptico quanto à perspectiva de uma derrocada tão fulminante das forças nacionalistas como aquela que veio efectivamente a suceder. Escrevendo em Agosto, e já com o Norte e o vale do Yangtzé sob domínio comunista, não dava ainda por inevitável a hipótese de um regime “vermelho” se estabelecer duradouramente na China – o mais provável seria que Mao e os seus correligionários se mostrassem incapazes de realizar a ocupação militar de um país tão vasto, estabelecer uma administração eficiente e enfrentar o caos económico. Essa situação daria azo a que certos constrangimentos emergissem para frustrar as ambições dos comunistas quanto a uma unidade da China sob a sua égide – o desejo de autonomia das regiões; o “primitivismo dos meios de comunicação”; e “o poder extraordinário de resistência passiva do povo chinês, a sua aversão nata a sistemas bem definidos ou a teorias políticas baseadas na lógica de certos princípios”. Mais a mais, as atitudes de hostilidade já patenteadas pelos comunistas em relação aos ocidentais em cidades como Xangai iria provavelmente levar à constituição de uma frente anti-comunista; um impasse seguir-se-ia e, eventualmente, um novo período de caos e intervenção estrangeira.
Tal cenário retiraria provavelmente pressão sobre Macau, cuja defesa, sublinhava Calvet, teria de radicar essencialmente não em meios militares mas na diplomacia – como sempre acontecera, de resto. O apelo à aliança inglesa, ou a uma intervenção norte-americana, só seriam de considerar num caso extremo, e mesmo assim seria improvável que ambos se dispusessem a arriscar uma escalada num conflito com a China para defender um enclave colonial de reputação dúbia. Mas outras acções mais pacíficas poderiam eventualmente ser exploradas, nomeadamente a procura de um modus vivendi com as elites cantonenses que, em seu entender, iriam provavelmente tentar mitigar as tendências mais radicais dos líderes comunistas, fazendo-lhes ver, por exemplo, o perigo de alienar os chineses “ultramarinos”, cujas remessas constituíam uma das principais fontes de divisas estrangeiras na China. Pacientemente, Calvet ia acumulando factos que aconselhavam à adopção de uma atitude flexível, de forma a que Portugal fosse mantendo várias opções em aberto. “A nossa pequena e atribulada Colónia assistiu já à queda de duas dinastias chinesas: a dos Mings e a dos Manchús”, escrevia ele em Agosto de 1949. “Confio em Deus que a ruína do Kuomintang não lhe será fatal”.

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