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domingo, 23 de junho de 2019

Bocarro e a "Descrição da Cidade do Nome de Deus na China"

É uma das descrições de Macau mais antigas e mais ricas. Remonta a 1635 e é da autoria de António Bocarro que a incluiu num relato sobre as possessões portuguesas na Índia. Surgiu sob o título de "Livro das Plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da índia Oriental com as descrições da altura em que estão, etc."

Excerto:
A cidade do nome de Deus está em altura de vinte e dois graus e muito da banda do norte sita na ponta austral duma península, na costa do reino da China, na fralda do mar, na província de Cantão, uma das quinze em que se divide este grande reino do estado de Nanpan; esta ponta da dita península é chamada pelos nossos e pelos naturais Macau; tem a península uma légua de comprido, e no mais largo quatrocentos passos, a cidade fica tendo meia légua de comprimento e onde mais estreita cinquenta passos e onde mais larga trezentos e cinquenta, fica participando de dois mares do levante e poente, digo ponente, é uma das mais nobres cidades do Oriente por seu rico e nobilíssimo trato, para todas as partes, de toda a sorte de riqueza e coisas preciosas em grande abundância, e de mais número de casados e mais ricos que nenhuns que haja neste estado.
Do ano de mil quinhentos e dezoito, em que os portugueses a primeira vez vieram à China com uma embaixada do Sereníssimo Rei Dom Manuel, contrataram em vários portos deste reino e finalmente no porto e Ilha de Sanchoão esta cidade tomou seu primeiro princípio, e onde no ano de mil quinhentos e cinquenta e dois faleceu São Francisco Xavier, segundo apóstolo da índia e padroeiro desta cidade, e no ano de mil quinhentos e cinquenta e cinco se passou o trato à Ilha de Lampacao, e no de mil quinhentos e cinquenta e sete se passou para este porto de Macau, onde com o trato e comércio se foi fazendo uma populosa povoação, e no de mil quinhentos e oitenta e cinco, sendo vice-rei da Índia Dom Francisco Mascarenhas, foi feita cidade por Sua Majestade, com título do nome de Deus, dando-lhe por armas a cruz de Cristo e outras liberdades de que goza com privilégios da cidade de Évora; é porta por onde vejo da Índia para a China por mar o apóstolo São Tome e por onde nestes tempos o Santo Evangelho levado pelos religiosos da Companhia de Jesus entrou nestes reinos e no de Japão e Cochinchina com grande glória sua e aumento de sua Igreja.
Os casados que tem esta cidade são oitocentos e cinquenta portugueses e seus filhos, que são muito mais bem dispostos e robustos, que nenhuns que haja neste Oriente, os quais todos têm uns por outros seis escravos de armas, de que os mais e melhores são cafres e outras nações, com que se considera que assim têm balões que eles remam pequenos em que vão a recrear-se por aquelas ilhas seus amos, poderão também ter manchuas maiores que lhe sirvarão para muitas coisas de sua conservação e serviço de Sua Majestade.
Além deste número de casados portugueses tem mais esta cidade outros tantos casados entre naturais da terra, chinas cristãos que chamam jurubassas de quem são os mais, e outras nações todos xipaios e assim os portugueses como estes, tem suas armas muito boas de espingardas, lanças e outras sortes delas, e raro é o português que não tem um cabide de seis ou doze mosquetes pederneiros e outras tantas lanças porque os fazem dourados que juntamente lhes servem de ornamento das casas.
Tem além disto esta cidade muitos marinheiros e pilotos e mestres portugueses, os mais deles casados no reino, outros solteiros que andam nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macassa, Cochinchina, destes mais de cento e cinquenta, e alguns são de grossos cabedais de mais de cinquenta mil xerafins que por nenhum modo querem passar a Goa por não lançarem mão deles ou as justiças por algum crime, ou os vice-reis para serviço de Sua Majestade, e assim também muitos mercadores solteiros muito ricos em que mulitam as mesmas razões.
Tem mais esta cidade capitão geral que governa as coisas de guerra com cento e cinquenta soldados em que entram dois capitães de Infantaria e outros tantos alferes e sargentos e cabos de esquadra, e um ajudante, um ouvidor, um meirinho que administra Justiça; vence o ouvidor cem mil réis de ordenado contratados na Alfândega de Malaca.
E ministros eclesiásticos têm um bispo que hoje é morto e ainda não está provido, que vence dois mil (réis) de ordenado pagos na Alfândega de Malaca.

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