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quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O caso da nau "Santa Catarina"



Em 1558, um único navio mercante português oriundo da Ásia transportava 1.000 peças de porcelana chinesa. Um navio holandês fazendo a mesma viagem 50 anos depois, perido o monopólio do comércio pelos portugueses - já transportava 60.000 peças. Em 1638, um ano de rotas holandesas já rendiam o equivalente cerca de 900.000 peças de porcelana chinesa. Criada em 1602, a Dutch East India Company (Companhia holandesa da Índia Oriental, ou VOC) da  dominava o negócio - que começou por ser de pimenta - desde o Cabo da Boa Esperança até ao Japão com 600 postos de comércio, mais de uma centena de navios e perto de 40 mil empregados.

A Santa Catarina, a nau maior do mundo (do tipo carraca, transporte de mercadorias), trouxe o primeiro grande carregamento de porcelana do Extremo Oriente para a Europa. A embarcação era portuguesa mas o porto de chegada foi Amesterdão. A história leva-nos até aos primeiros anos do século 17...
Santa Catarina era uma enorme nau de 1.400 toneladas, proveniente do porto de Macau, na costa sul da China, rumo a  Goa.
Na alvorada de 25 de Fevereiro de 1603, três navios holandeses sob o comando do Almirante Jakob Van Heemskerk avistaram a nau ancorada na costa leste de Singapura, estreito de Malaca. Depois de algumas horas de combate, os holandeses dominaram a tripulação comandada por Sebastião Serrão que abdicou das mercadorias e do navio, em troca das próprias vidas, 750 no total.
Foi uma captura habilidosa: as mortes foram poucas, os reféns repatriados e a carga não foi danificada. Van Heemskerck levou seu prémio para Bantam a 20 de junho, e partiu depois para Amesterdão sem se aperceber que tinha batido um recorde. O Santa Catarina transportava 1.200 fardos de seda crua (oriunda de Cantão), muitos baús de damascos e bordados, inúmeros sacos de especiarias, almíscar e açúcar, 60 toneladas de porcelana e ainda 70 toneladas de ouro e prata, sendo até hoje considerado um dos maiores saques da história.
Em leilão público, a carga valeu o equivalente a metade do capital da então toda poderosa Dutch East Asia Company - Companhia das Índias Orientais, criada poucos anos antes - e mais do dobro da rival e concorrente, a Companhia Britânica das Índias Orientais (fundada em 1600).
Moeda cunha para a VOC com símbolo da empresa: 1735
A Santa Catarina chamou a atenção não só de Amesterdão mas de toda a Europa não pelo ouro, mas por ter sido o primeiro grande carregamento de porcelana chinesa a chegar à Europa. Para muitos europeus eram mesmo a primeira vez que a viam e logo em larga quantidade.
Portugal declarou a tomada da Santa Catarina como uma apreensão ilegal e processou a Holanda para recuperá-la; a 9 de Setembro de 1604 o Tribunal do Almirantado em Amesterdão proferiu o seu acórdão declarando que o navio e a sua carga constituíam um espólio de guerra legítimo. Não se poderia esperar que os juízes holandeses decidissem contra uma empresa holandesa, ainda para mais, a East India Asia company. A empresa, no entanto, reconheceu a fraqueza dos argumentos levados a tribunal e contratou um jovem estudante de direito para escrever um parecer jurídico.
O estudante era Huig de Groot (Hugo Grócio), ainda não conhecido pela versão latinizada do seu nome, Grotius. Acabaria por escrever um tratado sobre a questão do espólio de guerra, do qual um único capítulo foi publicado em 1609 com o título Mare Liberum (O Mar Livre). A essência do argumento de Groot era que o comércio era um direito e que a restrição desse direito era um casus belli.
Assim nasceu uma doutrina de livre comércio que viria a causar estragos. Os ingleses consideraram a opinião de Groot como uma pura e simples cobertura legal para a pirataria holandesa. Em 1635, o jurista John Selden respondeu a Groot com outro tratado, o Mare Clausum (O Mar Fechado), inaugurando assim a história moderna do direito internacional - mas isso é outra história...
PS: navios da VOC tentariam invadir e conquistar Macau em Junho de 1622, mas isso também é outro história que pode ser pesquisada aqui.

1 comentário:

  1. Em 2022 já devia ser possível ler um texto como este sem indicação da ou das fontes...

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