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quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Primórdios da Biblioteca Pública

A 27 de Dezembro de 1873, o Governador de Macau, Visconde de S. Januário, aprovava, pela Portaria n° 92 - publicada no "Boletim da Província de Macau e Timor" n° 52 (imagem acima), os Estatutos de uma sociedade designada por Biblioteca Macaense, instituição que tinha por objectivo "proporcionar instrucção e recreio aos seus associados por meio da leitura de livros nacionaes e estrangeiros". A associação era formada por vinte sócios proprietários-fundadores, sendo o número de subscritores sem limite. Cada sócio pagava mensalmente uma pataca para os fundos da associação, sendo esta administrada por uma comissão directiva constituída por algumas das mais importantes personalidades de Macau: P. Nolasco da Silva Júnior (Presidente), Domingos C. Pacheco (Tesoureiro), Nicásio Simões (Secretário), A. Bastos Júnior (Vogal) e Câncio Jorge (Vogal). 
O jornal "Gazeta de Macau e Timor" n° 15, de 30.12.1873 escrevia a este propósito que era de "elogiar o empenho dos bons e patrioticos macaenses, que respeitam a sua terra e desejam vela florecer e prosperar (...) applaudindo a creação de uma bibliotheca para o uso da população macaense". Durou uma década.
Assim, em 1883, o jornal "O Correio de Macau" era referenciado pelo "Echo Macaense", n° 58, de 24.05.1883, por ter publicado um "excellente artigo" a sugerir a criação ao governo de uma biblioteca pública: "Com quanto não tenhamos a esperança de que o governo tome a iniciativa n'esta obra civilizadora, nem incorra nas despezas da fundação e conservação d'uma bibliotheca, é de crêr que talvez não negue um subsidio a qualquer instituição particular d'este genero".
Sem esperança na capacidade do governo, parecia que a solução estaria nas mãos da sociedade. A propósito, refira-se que desde 1844 o Clube União possuía já alguns armários, mandados fazer para guardar os livros que iriam formar o acervo da futura biblioteca pública de Macau. Outro exemplo... O Grémio Militar, criado em 1870, tinha previsto no artigo 3º dos estatutos: "O fim da sociedade é adquirir livros nacionais e estrangeiros de assuntos militares, navais, históricos, científicos e quaisquer outros de utilidade; bem como de proporcionar aos sócios, a leitura de jornais, jogos d'armas e de todos os demais permitidos por lei: tudo para instrução e recreio dos mesmos sócios".
O jornal "O Independente", vol. IX, n° 406, de 16.07.1887, publicava um extenso artigo intitulado "Bibliotheca Publica": "Durante o governo do sr. Thomaz de Souza Roza chamamos a attenção de s. exa. para a necessidade de se fundar em Macau uma biblio-theca publica, principalmente destinada a auxiliar o exercicio das diversas profissões scientificas que aqui se exercem. Esta ideia foi bem acolhida, e chegou a re-solver-se, segundo nos constou, que se consultassem os chefes das repartições publicas acerca da escolha dos livros mais convenientes aos seus misteres; mas não se avançou um só passo mais, cremos que por causa das graves questões em que o governo provincial começou a vêr-se envolvido, e que absorviam a sua attenção. (...) "A melhor garantia que o Estado pode assegurar-se, a respeito d'um conveniente estudo da applicação por parte d'aquelles funccionarios que não podem bem desempenhar os seus deveres sem se entregarem a maduras locubrações, consiste pois na fundação d'uma bibliotheca selecta, que é cara para o bolsinho particular, mas que não demanda sacrificios aos cofres d'uma provincia". 
Em Lisboa, a 27 de Julho de 1893, o Rei D. Carlos fazia saber que as Cortes Gerais haviam decretado a Carta de Lei que reorganizava a Instrução Secundária na cidade de Macau. 
No Art°. 12 podia ler-se: "Junto ao lyceu nacional de Macau serão creados um gabinete de physica e chimica e historia natural, e uma bibliotheca, que terá o nome de 'bibliotheca nacional de Macau'. (...) O governador da província, depois de ouvir o conselho escolar, formulará o regulamento para o funccionamento da bibliotheca, por forma que possa ser frequentada, não só pelos alumnos, mas tambem pelo publico".
Estavam criadas novamente as condições para a criação de uma biblioteca pública em Macau, pelo menos na lei, porque na prática não era bem assim.
Em 1894 do orçamento total para o Liceu, apenas 100$000 reis anuais estavam destinados à biblioteca, um valor que não chegava sequer para comprar, durante um exercício, as obras consideradas essenciais para uma biblioteca. Num dos jornais locais, O Independente, podia ler-se: "Com aquella quantia tão limitada, não é facil calcular o numero de annos que seria necessario para começar a fazer-se sentir a existencia, embora modesta, de um estabelecimento cujas vantagens são tão apreciaveis. Ora nós desejavamos que a bibliotheca publica de Macau se constituisse por forma a poder ser aproveitada já por nós e nossos filhos, em vez de o ser pelos filhos e mais descendentes dos nossos netos." 

"Regni Chinensis Descriptio" (Batávia, 1639).
A mais antiga obra impressa existente no acervo documental da Biblioteca Nacional, secção do Leal Senado.
O "Echo Macaense" também fez duras críticas à penúria existente no território quanto à leitura pública, considerando Macau, apesar de ser a mais antiga possessão europeia na China, "mais retrograda do que as suas irmãs modernissimas, Hong Kong, Shanghae, e Tientsin, com respeito a uma das instituições mais civilisadoras, auxiliar indispensável do progresso intellectual de um povo, a qual é a bibliotheca publica, destinada para o uso popular". 
O Liceu Nacional de Macau viria a ser inaugurado no dia 28 de Setembro de 1894 e a Biblioteca Nacional de Macau, que lhe era anexa, viria a abrir as suas portas, algum tempo depois. Após a Sessão do Conselho Escolar de 29 de Setembro de 1895, o Governador Horta e Costa nomeou uma comissão de professores para redigir o Regulamento da Biblioteca Nacional de Macau. Mas as coisas não começaram nada bem. O próprio Liceu começou por funcionar numa sala decrépita de um decrépito edifício onde havia funcionado o Convento de Santo Agostinho, tendo sido nomeado seu guarda o Sr. Damião Maximiano Rodrigues.
Em 1897 o jornal "Echo Macaense", de 14 de Fevereiro, reproduzia uma carta de um cidadão: "infelizmente, em Macau, passaram-se longos annos sem o governo pensar em proporcionar meios adequados para a cultura e recreio intellectual da communidade. (...) A Bibliotheca Publica de Macau deve ser mantida a todo o custo [apesar de a] verba annual votada pelo governo [ser] insuficiente. A bibliotheca concorrerá poderosa-mente para a instrucção e emancipação intellectual dos habitantes..." 
Em 1898, com a criação da sub-comissão encarregada de formular o projecto dos festejos destinados a comemorar, em Macau, o IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, presidida por António Joaquim Basto e também composta por Arthur Tamagnini Barbosa, Manuel José da Conceição Borges, A. Talone da Costa e Silva, Augusto César de Abreu Nunes, Lu-Cau e Pedro Nolasco da Silva, esta apenas acordou em propor ao Governo que se criasse uma biblioteca pública, sob a denominação de Biblioteca Vasco da Gama. Dizia ainda esta sub-comissão que as três pequenas bibliotecas existentes em Macau -Biblioteca Nacional anexa ao Liceu, a do Clube União e a do Grémio Militar não serviam os verdadeiros interesses da população do Território, pelo que deveriam fundir-se numa só ("O Porvir", n° 13, 12.02.1898).
Curiosamente na vizinha Hong-Kong, já havia a Biblioteca Lusitana, fundada por Luciano de Carvalho e João Caetano da Cunha, a funcionar no Clube Lusitano.N'"O Reporter", de 04.04.1899, escreve-se que "a respeito da bibliotheca vem a proposito mostrar quanto podem o exemplo e a cultura intellectual do meio em que se vive (...) pois a comunidade portugueza de Hongkong tem à sua disposição uma excellente bibliotheca de bons livros enthesourados no Club Lusitano, que é o ponto de reunião habitual das pessoas mais distinctas da mesma communidade" 
Em Macau, a Biblioteca Nacional havia de continuar por mais 30 anos a acompanhar o Liceu, nas suas decrépitas instalações ("o velho pardieiro" segundo a imprensa da época) e crónica falta de verbas.
No jornal "O Progresso", de 12 de Setembro de 1915, podia ler-se, a propósito da Biblioteca, o seguinte: "Temos, pois, em Macau, também, uma biblioteca intitulada publica -Biblioteca Nacional anexa ao Liceu. Mas essa espécie de biblioteca (...) é o mesmo que não existisse. Ninguém a frequenta, nem pode frequentar, porque, além da sua pobresa bibliográfica - umas centenas de livros, sem valor, dentro de mal encaradas estantes - acha-se instalada num acanhado, desconfortável e pouco arejado compartimento do edifício liceal (...) e, finalmente, porque se de premissas se tiram conclusões, tal biblioteca ou espécie de biblioteca, ainda que continue a pavonear-se com a pomposa designação de Biblioteca Nacional, como quem diz. Biblioteca Publica, de facto nem é bem biblioteca, nem é nada publica!..." 
Em 1917 transferiram-se, liceu e biblioteca, para edifício do Hotel Bela Vista. Antes, em 1916, o Governador de Macau deu indicações para serem catalogados em separado os 400 livros que os herdeiros do intérprete e sinólogo, Pedro Nolasco da Silva, haviam oferecido à Repartição do Expediente Sínico, a fim dos mesmos virem a constituir o primeiro núcleo de uma biblioteca designada por Biblioteca Pedro Nolasco. 

Em 1924, nova mudança de instalações, desta feita para o edifício que havia servido de asilo às inválidas, no Tap Seac. (imagem acima)
Em 1922, num artigo publicado no jornal "O Liberal", a 24 de Setembro, Henrique Valdez sugeria o aproveitamento do antigo quartel de artilharia, localizado no Jardim da Flora, para ali se instalar a tão ansiada biblioteca pública e o museu da cidade: "Os investigadores, que procurassem rebuscar nos arquivos elementos para o estudo da história de Macau, encontrariam na biblioteca - se o serviço viesse a ser bem montado - tudo o que existe sobre o assunto, devidamente anotado e catalogado. E os turistas, vendo esse serviço dirigido com proficiencia, teriam mais um motivo para ir lá fóra fazer boa propaganda da Colonia e do grau de cultura dos seus habitantes. É esta propaganda de que Macau necessita, agora que, no estrangeiro, almas cheias de peçonha nos teem levantado a mais temerosa e a mais injusta campanha de descredito. (...) Nos Guias de Macau já não teremos apenas, como agora, a indicação feita ao turista de que deve ver as ruinas de S. Paulo, as casas de fantan ou a fabrica de ópio; indicar-se-á tambem que visite o grande Parque, o Museu e a Biblioteca Publica".
Finalmente, em 1927, o Leal Senado ofereceu duas salas do seu andar nobre para ali acolher condigna e definitivamente a Biblioteca. As obras iniciaram-se, em 1928, sob a direcção técnica do director das Obras Públicas, Eng. Duarte Veiga. Em Fevereiro do ano seguinte ficavam concluídas as obras, segundo o projecto da firma de arquitectos e construtores Remédios & Mylo, tendo sido contratado o empreiteiro Ao Chio para efectuar os trabalhos de acabamento. 
Chegava ao fim uma aventura ímpar mas que tinha valido a pena. A 7 de Maio de 1949, o jornal "Notícias de Macau" transcrevia um artigo publicado no "South China Morning Post" de Hong Kong, onde se elogiava a Biblioteca Pública de Macau: "(...) na Casa do Senado existe uma bela biblioteca (...) que dizem ser a reconstituição, em escala mais pequena, da célebre biblioteca do Convento de Mafra, em Portugal. A coisa mais atraente que se observa na Biblioteca de Macau é a delicada obra de talha que adicciona um aspecto agradável e tranquilo ao mais baixo dos dois andares, nos quais as estantes dos livros estão dispostas em volta de um espaço central".

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