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domingo, 21 de outubro de 2018

Relações de Portugal com a China anteriores ao estabelecimento de Macau: 2ª parte

Segunda Fase - Os conflitos e a tratada ilícita (1522-1550)
Como se viu, Fernão Peres de Andrade demonstrou qualidades que muito contribuiram para a boa imagem dos portugueses, para o início auspicioso da embaixada de Tomé Pires, e para favorecer os nossos interesses comerciais na China. Mas para a viagem seguinte a terras chinesas foi autorizado por D. Manuel a seguir, como capitão da armada, seu irmão Simão de Andrade. Como escreve Armando Cortesão, «contrastando singularmente com seu irmão, Simão de Andrade não só tinha pouco tacto como era vaidoso, caprichoso e violento. [ ... ] A sua nomeação [ ... ] foi um daqueles pequenos mas fatídicos acidentes que por vezes ocorrem no decurso da história e que neste caso se tornou na causa principal do desastroso fim da Embaixada de Tomé Pires e de todas as desgraças que os portugueses sofreram na China durante mais de trinta anos». Ao chegar à China, Simão de Andrade cometeu uma série de actos que desfizeram a boa imagem que conseguíramos, ao violar frontalmente as suas leis e costumes.
A construção de um forte, a criação de uma forca, a compra e rapto de crianças, génese da triste suspeita de antropofagia infantil que aparece nas fontes chinesas e vem reflectida nas portuguesas. Tomé Pires e a sua comitiva receberam finalmente em Nanquim ordem de seguir para Pequim, e lá aguardar a chegada do Imperador e as audiências solenes. É nessa altura que se desencadeiam acontecimentos imprevisíveis e nefastos, que acrescentados ao mau ambiente deixado por Simão de Andrade no litoral determinariam o triste fim da Embaixada. O primeiro desses acontecimentos foi a discrepância entre a tradução da carta de D. Manuel, pelos intérpretes de Cantão, e o texto efectivo da mesma, conhecido em Pequim; o segundo. a morte repentina do Imperador, que demonstrara boa vontade em relação aos portugueses, ocorrida em Abril de 1521, pouco após o regresso a Pequim; o terceiro, a presença na capital de um embaixador do Rajá de Bintang, filho do rei de Malaca que os portugueses tinham derrotado, queixando-se e pedindo auxílio ao soberano chinês, seu suserano. Tomé Pires e a sua comitiva foram mandados regressar a Cantão, onde, passado mais algum tempo de deterioração das relações, ficaram presos, Tomé Pires terá morrido na prisão em 1524, e terá deixado em terras da China uma filha, Inês de Leiria, que Fernão Mendes Pinto diz ter encontrado. A morte do Imperador e o desacato no litoral levaram Pequim, em 1522, a determinar o fecho dos portos ao comércio com o exterior, e a expulsão dos portugueses, Mas continuaram a tentar os contactos, agora ilegais, para levar a cabo o riquíssimo trato, A violência, os confrontos navais, as mortes, eram inevitáveis. Foi o que aconteceu em numerosos episódios; bastará referir um deles, A armada de Martim Afonso de Melo envolveu-se em duro combate com forças chinesas, em 1522, durante o qual muitos portugueses perderam a vida e outros ficaram presos. A sentença de morte foi confirmada pelo Imperador, e executados 23 portugueses a 23 de Setembro de 1523. Tal é descrito num documento da época, em que a frieza do estilo não esconde a dureza dos castigos. Tinha-se atingido o ponto mais baixo e mais negro, nas relações de Portugal com o Império do Meio.
A partir de finais da segunda década do século, embora mantendo-se fechados os portos e em vigor as ordens de expulsão dos portugueses, começam a desenhar-se tréguas na violência e a virem à superfície novas convergências de interesses, pois para ambas as partes o trato tinha os maiores aliciantes. Com a passagem dos anos foram crescendo estes contactos à margem das directivas oficiais, cada vez mais esquecidas. Os portugueses apelidados de piratas e a eles não poucas vezes associados, iam alimentando um crescente comércio ilícito que tinha o apoio nas classes que dele beneficiavam. Através destas iam conseguindo a tolerância, quando não a convencia, das próprias autoridades locais. Em 1547 Zhu Ruan foi nomeado Vice-Rei das duas províncias de Fujian e Zhejiang, e deu mostras de ser de forte ânimo no rigoroso cumprimento das proibições em vigor quanto ao comércio com os estrangeiros. Conseguiu assim criar as mais fortes inimizades em todos os sectores da população que beneficiava daquele comércio.
No ano seguinte deu-se um acontecimento que ficaria conhecido pelo «episódio dos dois juncos», bem demonstrativo de que a fase do conflito e do comércio ilícito entre portugueses e chineses estava a chegar ao seu termo. Já se viu como o Vice-Rei Zhu Ruan ganhara a maior impopularidade ao querer impor com rigor as proibições do comércio com os estrangeiros.
Em 1548 a frota de Diogo Pereira dirigiu-se à China. Determinou que as mercadorias que levava fossem transportadas em dois juncos chineses. Depois de alguns recontros violentos que determinaram a sua partida, deixou no entanto ficar os juncos, comandados por Fernão Borges e Lançarote Pereira, acompanhados de trinta portugueses e mais gente, na expectativa de ainda fazerem algum negócio. As forças navais chinesas não perderam tempo em apresá-los, matando alguns dos nossos e fazendo prisioneiros outros. Mas os tempos eram diferentes, e em vez de vir de Pequim a confirmação de sentenças, como acontecera trinta anos antes, foi despachado um Comissário Imperial para investigar o caso. Considerou que os portugueses não eram culpados dos crimes de que os acusavam, mas apenas pacíficos mercadores. Lê-se num documento da época: «E asi nos foi por estes mandarins mandado dar mui bem carne e galinhas e farinha de arroz e de todas as outras cousas em abastança assim como pediamos. Entretanto que fosse o recado a el Rei, quebraram todas as prisões em que os mandarins que nos tomaram nos puseram, e lagos eles foram presos» O Vice-Rei Zhu Huan suicidou-se, e outros oficiais foram executados. Terminava o período do conflito e do comércio ilegal, estava criado o ambiente, e as condições de parte a parte, para o surgimento de Macau. (continua)

João de Deus Ramos in IDN - Revista Nação e Defesa Ano XV; Nº 53 Janeiro-Março 1990

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