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domingo, 1 de julho de 2018

Macau e Hong Kong

“Muita gente que mora em Macau e vai uma vez por outra a Hong Kong, traz de lá a impressão de que, ao pé de Macau, aquilo é que é a cidade! Pois também nós uma vez por outra vamos a Hong Kong e voltamos de lá sempre com a impressão de que aquilo, para lá se viver, não presta. É Hong Kong melhor do que Macau, ou é Macau melhor do que Hong Kong?
Melhor e pior são termos relativos. Quem põe como principal fim do seu viver ganhar dinheiro, sentirá que vive melhor em Hong Kong do que em Macau; quem põe no seu viver em mais estima gozar saúde, sentirá que em Macau passa melhor. Quem se dá bem no meio de grande movimento, de bulício, de ruído, gostará mais da vida de Hong Kong; quem prefere viver em tranquilidade, gostará mais da vida de Macau.
Tomando a grandeza como ponto de comparação, é evidente que Macau está muito abaixo de Hong Kong; mas, no caso, o ponto é mal tomado, porque nunca uma cidade foi considerada melhor do que outra simplesmente por ser maior. As cidades, como os homens, não se medem aos palmos; como nem os burros por terem grandes orelhas dão na feira mais dinheiro.
Ora, em nosso entender, a superioridade de Hong Kong sobre Macau, tirando o seu comércio e partes que com ele se relacionam, consiste principalmente em ter maiores orelhas. Macau é uma cidade velha, mas, apesar disso, ou mesmo por isso, é, sob o ponto de vista estético, muito superior a Hong Kong. Não só a natureza dotou Macau de maiores belezas, como também aqui a mão do homem as executou melhores. E se esta afirmação a alguém parecer menos verdadeira, lembre-se esse alguém de que a grandeza não é essencial predicado da beleza. As coisas grandes, as muito maiores do que aquelas que estamos habituados a ver, podem produzir em nós admiração. A admiração, porém, não é necessariamente uma vibração estética.

Hong Kong tem grandes construções, grandes prédios; Macau tem construções que não passam de modestas. Mas onde há mais variedade, mais elegância, mais pitoresco: nas construções de Hong Kong ou nas de Macau? Há nestas. O conjunto das de Hong Kong tem um ar pesado, abafador; sente-se a gente, lá nas ruas, olhando para aqueles enormes blocos, como que pequeno, como que bicho rastejante, como que formiga de um vasto formigueiro.
Ora a ideia, a impressão (se não é facto), de sermos ou parecermos mais pequenos do que somos, incomoda. Aqui em Macau, pelas ruas, sentimos que somos o que somos – ‘filhos de algo’. Não nos apoucam os prédios: somos o que somos e, por vezes, quando estamos cheios de nós mesmos até nos parece que somos maiores alguma coisa. Há justa proporção entre nós e a cidade; em Hong Kong, não há: há desproporção, o que em estética é erro grande. A fábula da rã e do boi em Hong Kong não poderia ter-se dado; enquanto que aqui em Macau, incha a gente quanto quer.
Não há beleza sem variedade. Ora, lá, se aquilo não é tudo monotonia, bem o parece. A variedade que haja, é abafada, sufocada pela dominante impressão de ser tudo aquilo uma mole enorme que pesa sobre nós enormemente. Não há sons ali; há um ruído só, um ruído contínuo, extenso, imenso. A voz humana não é voz humana: é uma parte indistinta desse ruído grande, confuso, importuno, constante. Não se ouve ninguém a cantar, um cão a ladrar, um gato a miar!
Quão diferente de Macau! Aqui, de dia, é a natureza a rir; de noite, se não dormimos, há sempre, para nos entreter, um cão que ladrando nos diz que alguém passa, concertos felinos nos telhados, um galo que dá a meia-noite, outro que saúda a alvorada, um grilo que canta na cozinha, a natureza, enfim, em plena actividade. (…) Ora isto enche a alma! Faz-nos bem este contacto com a natureza: ouvir no inverno ao longe o mar bramando, ou, quando não, na praia a espreguiçar-se; ouvir, sem o sentir, debaixo da manta, o vento da invernada, ou, no verão, o zéfiro a acariciar o arvoredo; ouvir a chuva a potes a fustigar a natureza, e a nós não, debaixo do lençol! Onde é que em Hong Kong há isto? – À noite, quando o ruído cai, fica tudo lá um cemitério; e, se é em hotel que ficamos, em quarto numerado como se já nome não tivesse o morador, e somos dados à fantasia, sentimo-nos à meia-luz se não dormimos ou se acordamos, no inverno, regelados, no verão, como que em câmara funerária a apodrecer!…
Porto Interior in Revista Colonial, Agosto 1913
Tem Hong Kong mil navios; altas chaminés que vomitam negro fumo; autos, eléctricos, locomotivas; hotéis, armazéns, oficinas, bancos grandiosos – o progresso, enfim, que a Europa e a América criam. Mas é isto, é o progresso a felicidade? – ‘It appears to me doubtful if we Europeans are a whit happier for progress’ – parece que a felicidade humana nada ganha com o progresso (E. H. Parker, China, her History, etc.), ‘it has certainly not had cheerful results so far for the Chinese’ – e que aos chineses o progresso não tem feito bem algum.
Não somos nós tão pessimistas. Algum bem o progresso faz à gente. Mas há-de andar com a moral e com a estética combinado. A sós, é a materialidade que depressa conduz ao retrocesso, à miséria, à dor, ao desespero, ao nada. O silvo do progresso arrepia-nos as carnes: há-de ouvir-se também ao lado o arrulho de uma rôla. Podem golpes de Bolsa ousados dar-nos milhares de libras, um milhão: mas cuidado, vive mais feliz o pobre que é honrado, do que o rico que é ladrão. O progresso é um vinho apetitoso, mas quer-se tomado em medida.
É a mocidade, geralmente, por ter menor experiência, quem se ilude mais. Ferve-lhe o sangue e gosta do bulício. É ela quem mais culto presta, por isso, à leviandade para a qual o progresso com força a arrasta; mas é também ela, se de sãos princípios de moral e de estética não anda couraçada, quem por fim, pesadíssimos tributos paga em dores, em desenganos.
Estamos em Macau mais com a natureza. Confortos do progresso não os temos tantos; mas nadamos em ar oxigenado. Dinheiro, queremos dizer milhões, não temos como em Hong Kong; mas dinheiro, muito dinheiro, milhões, dá-nos isso felicidade, a verdadeira felicidade? – Não nos dê Deus a miséria aborrecida, mas livre-nos de opulência que não seja de saber e de virtude.”
Artigo da autoria de Manuel da Silva Mendes publicado no jornal “O Macaense” 7.12.1919

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