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sexta-feira, 18 de maio de 2018

Apontamentos d'uma viagem de Lisboa á China e da China a Lisboa

Quem quiser saber como era Macau em meados do século 19 e não se contentar com as descrições breves e superficiais dos relatos de viajantes da época, tem de ler "Apontamentos d'uma viagem de Lisboa à China e da China a Lisboa" da autoria de Carlos José Caldeira (1811-1882) que na introdução ao livro editado em 1852 e 1853 (em 2 volumes*) escreve:
"Ainda que é muito pouco comum entre nós Portuguezes o gosto de viajar eu desde a minha mocidade nutri o desejo de ver o mundo de sahir da minha pátria é do estreito circulo da cidade e do paiz em que nasci. Tarde porém poude realisar o pensamento constante da minha vida. Contando 40 anos parti de Lisboa em Julho de 1850 na carreira para a China dos vapores inglezes da Companhia Oriental e Peninsular e em 50 dias cheguei a Macao tendo visitado Cadiz e Gibraltar atravessado ò Mediterrâneo visto Malta e Alexandria subido o Nilo através sado o deserto do Egypto embarcado em Suez e descido pelo Mar Vermelho tocado em Adem na Arábia e em Ceylão navegado pelo estreito de Malaca visto Pinão o Singapura e finalmente aportado a Hong kong e retrocedido para Macao. Nesta cidade me demorei 16 mezes durante os quaes visitei seus arredores a cidade chineza de Cantão e vários portos da costa dá China até Shangai na distância de umas 300 legoas para o norte de Macao. Daqui regressei para o Reino na corveta D João I no fim do anno de 1851 e voltei por Singapura ô estreito de Malaca desembarquei na cidade deste nome tão celebre na historia da Asia portugueza revi as costas da Taprobana naveguei ao longo das do Malabar visitei Goa segui para Moçambique dobrei o Cabo da Boa Esperança aportei a Benguella e a Loanda no reino d Angolla vi no archipelago dos Açores o Fayal e S. Miguel e particularmente nesta ultima ilha examinei varias das muitas cousas curiosas que contém e finalmente em 18 de Agosto de 1852 terminei esta longa e variada viagem revendo a minha bella pátria e cidade natal ao cabo de dois anos. Resolvo-me a publicar os Apontamentos desta Viagem por me parecer que serei nisso util a alguns dos meus concidadãos que desejarem saber das circumstancias della e ter algum conhecimento do estado actual dos logares que percorri teem por titulo Apontamentos d'uma Viagem de Usboa á China e da China a Lisboa.
Deter me hei particularmente sobre as nossas Possessões ainda tão importantes e sobre as quaes idéas bem inexactas e mesmo absurdas correm entre muita gente. Fallarei das cousas e das pessoas que são tudo no Ultramar onde em grande parte as instituições e leis pouco ou nenhum vigor tem onde quasi tudo é arbítrio onde o espirito da maldade e da rapina muitas vezes campêa impune dependendo geralmente do bom ou máo caracter das authoridades e pessoas influentes o bem estar ou a desgraça dos povos. Direi a verdade tal qual a entendo e por ella arrostarei ódios e malquerenças."
Lisboa 24 de Agosto de 1852 é a data em que
Carlos José Caldeira escreve estas linhas depois de dois anos de viagem pelo mundo. Desse tempo, 16 meses foram passados em Macau e para tão longa estadia muito deve ter contado o facto de ele ser primo de D. Jerónimo José da Mata, Bispo de Macau de 1845 a 1862.
Nesta obra relata tudo com bastante pormenor. Na época, Hong Kong acabara de ser 'criado' por via da derrota chinesa face aos ingleses na segunda guerra do ópio e a vida económica do território macaense começava a definhar...
Veja-se por exemplo, o testemunho sobre o 'funeral' do governador Ferreira do Amaral (assassinado em Agosto de 1849):
(...) Abriu-se o féretro, porque dele correra algum líquido, o que dera muito que falar e temer aos supersticiosos chinas. Limpou-se o crânio e os ossos dos restos de cartilagens: eu tive nas mãos esse crânio nu, e dos golpes da barbaridade e da traição lhe vi os vestígios indeléveis, como o deveriam sempre ser em ânimos portugueses!
No dia 2 de Janeiro de 1851, às cinco horas da tarde, foi o ataúde conduzido aos ombros de seis marinheiros, e às pontas do pano mortuário que o cobria, pegaram o encarregado de Negócios de França na China, o cônsul dos Estados Unidos da América, e quatro funcionários superiores do Estabelecimento. Procedia o ataúde um destacamento do batalhão naval e outro da marinhagem das guarnições dos navios de guerra surtos no porto, e compunham o préstito fúnebre o Corpo Municipal, com o seu pendão em funeral, as autoridades civis e militares, a oficialidade da marinha e do batalhão provisório, o corpo diplomáticos e consular aqui residente, seus funcionários, numeroso séquito dos moradores de Macau e de portugueses e estrangeiros. Fechava este respeitável e pomposo acompanhamento o batalhão de linha, com o seu tenente-coronel comandante à frente.  À porta da igreja de S. Francisco achava-se o presidente do Conselho, o bispo diocesano, rodeado de todo o seu clero, e acompanhando os restos mortais à destinada capela, ali lhes foi cantado o competente Memento."

E ainda o relato sobre a tomada de posse do governador Francisco António Gonçalves Cardoso em Fevereiro de 1851 para
suceder ao Conselheiro Capitão-de-Mar-e-Guerra Pedro Alexandrino da Cunha, que falecera em Macau a 6 de julho de 1850, após apenas 37 dias como Governador:
Em todas as fortalezas poucas peças estavam em estado de fazer fogo e não continuado; no já quasi desmoronado forte de Mohá (feito haveria pouco mais de um anno) n´um dos canhões principais, dirigido sobre a Porta do Cerco, no ouvido faziam as lagartixas seu sossegado ninho; as poucas munições estavam fechadas num caixão do qual se perdera a chave havia tempos, etc, etc, etc… Sirva isto só de dar idêa de todas outras misérias. E, no entanto que faziam os governadores de fortalezas, e o major de engenheiros, todos com denominações alti-sonantes, e bons soldos gratificações?. Tratavam das suas hortas, ou passavam vida airada e folgasã… O major de engenheiros, mandado de Portugal pelo Egipto com avultada despesa, recebia mensalmente em Macau 116 patacas»
Sobre os templos chineses, Caldeira escreve:
“Entre as construcções chinezas em Macau só são para notar quatro principais pogodes, um em cada uma das aldeas de Moha e Patane, outro no caminho de Patane para a porta do Cêrco, e o quarto perto da fortaleza da Barra; os dous ultimos são de bonita architecyuira no estylo chinez, e muito bem situados, principalmente o da Barra, que tem differentes nichos ou cappelas em amphitheatro, por entre grandes penedos e frondosas arvores, que o fazem muito pittoresco. Os chinas escolhem com muito tacto e gosto os locaes dos seus pagodes, construindo-os de ordinario por entre penedias e arvoredos, e em sítios romanticos; são muito amadores das arvores, e sendo grandes e bellas as conservam pelo meio dos muros e edifícios, ou affeiçoando estes de modo que não tenham de as derrubar."
Carlos José Caldeira foi ainda responsável pelo Boletim do Governo de Macau durante cerca de um ano.
Numa biografia da época fica-se a saber um pouco mais sobre a vida e obra desde escritor, político e jornalista:




«Carlos José Caldeira, antigo aluno da Academia Real de Marinha cujo curso concluiu com muita distincção obtendo todos os prémios. Frequentou igualmente com aproveitamento e approvação plena os estudos da aula do commercio, etc. Nasceu em 1811, sendo filho do desembargador Jose Vicente Caldeira do Casal Ribeiro. Apontamentos de uma viagem de Lisboa á China, e da China a Lisboa. Tomo I. Lisboa, na Typ. de G. M. Martins 1852. 8.º gr. De 421 pag. - tomo II. Ibi, na Typ. de Castro & Irmão 1853. 8.º gr. De 330 pag., com alguns mappas no mesmo formato, que servem de appendice. Esta obra mereceu a aceitação e acolhimento do publico. Anteriormente, e achando-se ainda na China, o auctor publicara um como specimen ou amostra, com o titulo: apontamentos de uma viagem de Portugal á China atravez do Egypto em 1850, e descripção da gruta de Camões em Macao. Macao: China, Typ. Albion de Ino: Smith 1851. 8.º de 75 pag. Tambem redigiu durante um anno o boletim official de Macao que forma um volume de 181 pag.; e depois da sua volta para este reino tem sido collaborador de varios periodicos litterarios, taes como a Revista Peninsular, Illustração Luso-Brasileira, Archivo Pittoresco, Correio da Europa, etc., nos quaes se acham numerosos artigos seus. Foi editor da terceira e ultima edição da Memoria a Iberia, por D. Sinibaldo Mas, e lhe addicionou varias notas no sentido da mesma memoria. No proprio sentido, isto é, propalando as conveniencias da união iberica, escreveu tambem alguns artigos no jornal político O Progresso.»
No Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. II, Lisboa, 1990:
"Carlos José Caldeira [Lisboa, 1811 - Lisboa, 1882]
Escritor, político e jornalista. Formou-se pela Academia Real de Marinha e frequentou a Aula do Comércio. Foi um iberista convicto, tendo traduzido, anotado e publicado a terceira e última edição da obra A Ibéria de Sinibaldo de Mas, que produziu à época grande controvérsia e que propagava os ideais da União Ibérica. Dentro do mesmo espírito escreveu alguns artigos no jornal O Progresso. No funcionalismo público chegou a inspector-geral das Alfândegas e foi o primeiro chefe da Repartição de Estatística criada no Ministério das Obras Públicas. Tal facto deveu-se provavelmente aos profundos conhecimentos de economia que demonstrou nos artigos publicados, sob o pseudónimo de Veritas, em vários periódicos, entre os quais: Arquivo Pitoresco, Arquivo Universal, Correio da Europa, Diário de Notícias, Ilustração Luso Brasileira, Jornal do Comércio e Revista Peninsular. Já depois dos 40 anos encetou uma viagem pelos pontos descobertos ou conquistados pelos Portugueses no Mundo, que o levou pelo Mediterrâneo e mar Vermelho até à China, tendo regressado por Moçambique e cabo da Boa Esperança. Deste percurso resultaram diversos trabalhos literários que ilustram o estilo reformador e empreendedor do seu autor. Foi ainda redactor do Boletim Oficial de Macau durante um ano. (...)
*Nota: em 1997 a parte relativa a Macau destes dois volumes foi reeditada sob o título "Macau em 1850: crónica de viagem."

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