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terça-feira, 29 de setembro de 2020

A China e os Chins: Recordações de Viagem, 1888

"A China e os chins: recordações de viagem". 
Da autoria de Henrique C. R. Lisboa. 
Obra illustrada com um mappa e 44 gravuras. 
Montevideo, Typographia a Vapor de A. Gomes
Edição: 1888
Ca. 400 páginas
O diplomata Henrique Carlos Ribeiro Lisboa (1849-1920), secretário da missão especial que o Império do Brasil enviou à China em 1880, fez um registo detalhado das suas impressões de viagem. Para o autor "A China e os Chins" são apresentados como uma nação e um povo respeitáveis, com quem se poderia aprender e estabelecer proveitosas parcerias comerciais e políticas.
Foi no contexto de abertura da China às nações ocidentais que o governo imperial do Brasil enviou sua primeira missão diplomática à China com o objectivo de obter um Tratado de Amizade, Comércio e Navegação. Embora assinado, o tratado não foi ratificado pelo Congresso brasileiro, senão algum tempo mais tarde, com modificações no texto original.

Macau surge no capítulo V - pp. 95 a 114:
Hostilidades chinesas – Os fieis aliados de Portugal – Macau salva pelos mandarins – Jugo chinês – Um governador mártir – Expulsão do rabicho – Uma tranca em porta arrombada – Disputa de soberania – Argumentos chineses e portugueses – Opinião do visconde de Santarém – A praia – Modas passadas – Cupido em Macau – Ingleses descamisados – Calçadas e calçadinhas – Comércio decadente – Negligência governamental – Judeu ou trovador – O jogo em Macau – Plebeus e patrícios – Mônaco na China – O fan-tan e a roleta – Pesca de dólares – Relíquias na arquitetura – Os barracões – Gruta de Camões – Reflexões interrompidas – Cheiros e cheiros – Sagacidade canina – Pés pequenos – Ciúmes de um príncipe – Solicitude paternal – Os lírios dourados e o espartilho – Um pouco de estética – Processo de mutilação – Explicação gráfica.


Excerto:
A Cidade do Nome de Deus não há outra mais Leal ocupa a parte sul da pequena península que termina a ilha de Hiang-Chang. Nove morros a dominam do lado do mar, erguendo-se em quatro deles outras tantas fortalezas armadas de antiga artilharia. O bairro onde se albergam os 4.000 europeus que vivem em Macau acha-se situado na parte leste da cidade e apresenta um alegre aspecto, com suas construções pintadas de vivas e variadas cores, seus seculares conventos e igrejas e seu belo passeio a beira-mar, que recordou-me a Promenade des Anglais de Nice ou a praia de Botafogo. A “Praia” é o nome desse passeio onde, à tarde, saem a respirar a suave brisa do mar morenas europeias ou amarelas mestiças, trajando vistosas saias que procuram imitar as modas um pouco atrasadas de Paris. 

Carros antiquados, cadeirinhas e pedestres cruzam-se constantemente em uma e outra direção, parando de vez em quando para permitir alguns cumprimentos ou confidências de amor, arte a que se dedicam assiduamente os mancebos de Macau, por não encontrarem, talvez, outra ocupação. Não se pode, porém, negar que empreguem grande engenho para ostentar uma toilette sempre cuidada. Nada mais interessante do que esses moços de fisionomia chinesa e cabelo naturalmente lustroso, trajando elegantes fraques, com os pequenos e bem formados pés apertados em brilhantes botinas e o pescoço encerrado em altos e duros colarinhos rodeados de coloridas gravatas. 
É Macau a única cidade da China em que se mantém a pretensão dos trajes europeus, ainda que adulterados pelo gosto e a distância e pela especulação do comércio, que encontra aí cômodo mercado para os artigos passados de moda. Em outras partes, os residentes estrangeiros adaptam o seu traje à comodidade de movimentos ou às condições do clima; Macau, porém, conserva aquela originalidade, que não deixou de produzir-me grata impressão, ainda que certa estranheza, depois que os meus olhos se tinham habituado, na minha longa viagem desde o istmo de Suez, a só ver como exceção a comprida sobrecasaca e o chapéu de copa. (...)
Proibidas as casas de jogo pela legislação do império, obtém Portugal uma importante renda desses estabelecimentos, que transformam a sua colônia em um verdadeiro Mônaco chinês. Aí acodem de Cantão e das cidades da costa, até Xangai, os devotos da sorte: chins, pela maior parte, e europeus alguns. Existem em Macau estabelecimentos para todas as bolsas e condições sociais; desde a espelunca onde, à noite, numa atmosfera impregnada da fumaça do ópio e tabaco ou das emanações da aguardente de arroz, do whiskey e outras importações civilizadoras, a ralé da população arrisca ruidosamente aos dados as sujas sapecas ganhas a custo do trabalho diário, até o elegante edifício onde mandarins e negociantes endinheirados pagam, gostosos, as emoções do jogo pelo sacrifício de avultadas quantias. 
Nota-se, entretanto, uma sensível diferença ao comparar-se estes estabelecimentos aristocráticos da China com as mais afamadas bancas europeias. O público que frequenta uns e outras ressente-se do diverso temperamento das raças e dos hábitos de educação que as distinguem. Nunca perdem os jogadores chineses dessa classe a sua gravidade habitual e a calma e decência a que são obrigados pelos ritos os que na China formam ou pretendem formar parte da sua aristocracia de posição ou dinheiro. 
Ao ter ocasião de presenciar essa atitude, recordei-me com sentimento das tristes cenas a que tinha assistido em Mônaco, nas horas febris em que, à roda das mesas de trinta e quarenta ou de roleta, esquecem os jogadores de todas as conveniências sociais, transformando-se em feras, ávidas, não de sangue, mas sim de ouro, que lhes faz desprezar até os mais sagrados sentimentos que caracterizam as sociedades cultas. Aí desaparecem as considerações que impõem as diferenças de posição, idade ou sexo; tudo se confunde numa única preocupação: o ganho. As damas de mais alto coturno não atendem à desordem do vestuário, nem se lembram os galantes dos salões aristocráticos daquelas atenções e cortesias que costumam fazer o encanto das suas relações como o sexo frágil. Só domina aí um pensamento: o de transferir o dinheiro do próximo para a própria algibeira e, à exceção de alguns turistas curiosos, raros são os que frequentam Mônaco com outro propósito senão o de auferir lucros, destinados à satisfação das paixões desordenadas da vida elegante nas capitais europeias. 
Nos infernos da China predomina outro sentimento menos repugnante, senão mais louvável, que é o da simples satisfação de um vício que cada um está disposto a pagar na medida de sua fortuna. 
De presença sempre correta e com plácido sorriso nos lábios, contrastam os frequentadores do fan-tan de Macau com os habitués da roleta ocidental, pela serenidade e amabilidade com que jogam e ganham ou perdem somas importantes, agradecendo ou lastimando a sorte, não pelos benefícios ou prejuízos pecuniários que lhes resultam, senão pelo contentamento ou pela decepção que obtêm. É certamente esse o vício na sua expressão mais genuína; mas, ninguém duvidará que as suas consequências são menos deploráveis do que as que registram as estatísticas de numerosos suicídios e outros crimes incubados nas casas de jogo europeias. (...)

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