Páginas

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

O Anno Novo China... em 1851

No nº 13 do Boletim do Governo da Província de Macao, Timor e Solor publicado a 15 de Fevereiro de 1851 (um "sabbado") é publicado - na "Parte Não Official" - um artigo sobre o ano novo chinês. Um relato feito no português que se usava em meados do século XIX e que aqui se reproduz na íntegra.
"O dia primeiro de Fevereiro da era christã foi neste anno o primeiro dia do anno novo china, do qual só agora começam a contar o reinado do actual imperador, que na língua mandarina se diz Hien-Fong, e no dialecto de Cantão Ham-Fon.
É do estilo dos Chinas continuarem a datar seus escriptos em referencia ao anno do reinado do ultimo Imperador até ao fim daquelle em que fallece, como se vê do Edicto imperial transcripto noutra parte desta Folha.
A aproximação e principio do anno novo é para os Chinas a mais solemne e importante epocha. Há a obrigação então de ajustar as contas; de pagar todas as dívidas; desempenhar as hypothecas ou penhores, etc. e o credor inexoravel não deixa a caza do seu devedor remisso, até ao momento de bater a meia noite, que termina o anno velho: momento mágico, e o mais delicioso para os tristes devedores; pois nelle se opera uma transformação completa.
Das mais assíduas e dezabridas exigencias; das mais renhidas disputas; do mais violento ódio e ameaças - passam os authores e pacientes destas scenas às mais cordiaes zumbaias e congratulações.
O devedor conta então com um alivio ou folga, que se estende muitas vezes até ao seguinte novo anno, succedendo tãobem frequentemente fazerem-se grandes abatimentos nestas dividas: em summa elle sente-se transportado de repente a uma nova situação nos seus meios de viver.
Não há povo algum na terra onde haja tanta confiança mútua, e facilidade de venderem a crédito, ou de fazerem fornecimentos, e obras a pagar a longos prazos, e mesmo empréstimos de dinheiro, quazi sempre sob palavra, ou simples escipto particular.
Estas disposições tãobem as extendem aos estrangeiros, mas infelizmente muitos destes as têm diminuido, por abuzos repetidos de boa fé.
Voltando porém a fallar do anno novo, diremos que o primeiro dia delle é de jejum geral para todos os Chinas, e o unico que elles tem tãobem geral de guarda ou suspensão de trabalhos corporaes, e de toda a qualidade de serviços.
Todas as lojas ou boticas se fecham; não há tranzacções algumas, e só os absolutamente miseráveis se entregam a algum serviço ou venda para grangearem o sustento.
Todas as embarcações recolhem aos portos a descançarem mais ou menos dias, embandeiradas, e tocando suas bategas.
A Macao concorreram este anno mais que nos precedentes, e dozentas ou mais ancoradas apinhadamente no rio, e todas com os seus lampiões no gosto china (da forma de balões, d euma espécie de gaze gomada e, transparente e diversamente pintada, que contem a luz), produziam um lindo effeito na noite de 31 de Janeiro e seguintes, e tãobem na mesma noite igual illuminação, e muita diversidade de lanternas de variados feitios e ornatos e lustres, esclareciam todas as boticas do Bazar, mui curioso de se vizitar nestas occasiões.
À meia noite estrondoza bulha de panxões, conhecidos em Portugal pelo nome de estallos da China, annunciava a entrada no novo anno.
Os Chinas gastam estes panxões em profusão nas suas festas e correspondem aos foguetes do ar na nossa Pátria.
Todos os Chinas no primeiro dia do anno aparecem com os melhores fatos que teem, ou que compram para estes dias, durante os quaes se vizitam, banqueteam, e jogam; prolongando por mais ou menos tempo estas férias e regallos, segundo as possibilidades de cada um, chegando os mais ricos a fazellas durar de quinze a trinta dias.
Entre os Chinas de Macao se passou esta notavel epocha, com a maior quietação, tanto no mar como na terra.
No Bazar reinou a melhor ordem: patrulhas dobradas o percorreram constantemente nestes dias, e nem um só roubo ou perturbação teve logar, couza bem admirável entre os Chinas nestas ocasiões, em que delliberadamente concorrem os ladrões de terra e mar, aos Bazares para roubarem quanto podem. 
Tão louvavel e raro socego e segurança foi devido ao bom serviço dos nosso soldados, dirigido pelas acertadas providencias do Procurador desta Cidade o Sr. Lourenço Marques, ao qual os Chinas manifestam o maior affecto e gratidão, gozando entre elles de grande veneração por estes benefícios, e pela recta e inteiramente gratuita justiça que lhes administra.
Na verdade a Cidade de Macao muito está devendo ao seu digno Procurador, pela maneira com que desempenha as importantes funcções do seu cargo, fazendo amar e preferir pelos Chinas, tão sequiosos da justiça que não têm entre os seus, a administração pública deste Estabelecimento."

Sem comentários:

Enviar um comentário