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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O dom dom de Macau não é macaísta?

Quando se pede a alguém de Macau, geralmente pessoa de idade, que cante ou recite velhos cantares ou versos de Macau, é quase certo ouvir-se a seguinte quadra no crioulo macaísta:
Dom dom dom dom
Sium capitám,
Cô espada na cinta
Cô rota na mám.
Foi das primeiras que ouvi quando cheguei a Macau, cantada com a música dum antigo naná ou canção de embalar, no qual se incluíam outras quadras ainda bem conhecidas, como:
Ade pidíchua (pato pede chuva)
Sapo pidí vento.
Nhonhonha bunita (meninas bonitas)
Pidí casamento.
Uma coisa que, no entanto, sempre estranhei, desde que comecei a fazer estudos sobre o crioulo de Macau, foi que a primeira destas quadras, aparentemente popular e bem macaísta, com a alusão aos senhores capitães (sium capitám) que andariam pela cidade exibindo perante as meninas casadoiras a sua elegância, de espada à cinta e rota (chibatinha) na mão, não fosse incluída num Cancioneiro Musical Crioulo - Cantilenas macaístas - publicado por J. F. Marques Pereira em Ta-Ssi-Yang-Kuo (II, 703).
Desse Cancioneiro consta uma longa série de quadras, entre as quais a acima citada, que Marques Pereira obteve, conforme suas próprias palavras, "directamente da boca de pessoa sem educação literária", o que lhes confere genuinidade, pelos fins do século passado ou princípios deste. Mas o certo é que não inclui o conhecido e popular dom dom.
Recentemente, tive o prazer de falar em Lisboa com o Sr. Dr. Leopoldo Danilo Barreiros que muito se interessa pelos assuntos de Macau e, de modo especial, pelo português do Oriente, tendo coligido e publicado na revista "Renascimento" (Macau, 1943-45), pois que ao tempo aqui vivia, um bom número de textos em crioulo. Entre eles o referido naná, que já não coincidia exactamente com o de Marques Pereira, e que incluía desta vez a quadra em questão. Mas, compreensivelmente, numa versão mais moderna:
Dom, dom, dom, dom
Sinhô capitão
Espada na cinta
Rota na mão.
Dessa conversa em Lisboa resultou este artigo, pois que o Dr. Danilo Barreiros me deu, a respeito da quadra "de Macau", uma informação muito curiosa e que me parece merecer divulgação: segundo um brasileiro que foi há anos professor de música de seu filho, o senhor capitão cantava-se também no Brasil, apenas com ligeiras diferenças. Até a música era semelhante! A confirmar esta informação, facultou-me gentilmente a fotocópia dum documento que possui - a primeira página do jornal infantil brasileiro "Pernalonga" (n° 8, Novembro de 1961), que apresenta o desenho do famoso coelho de Walt Disney com a sua cenoura numa bolsa à cinta, cavalgando um cavalo de pau, e tendo ao lado uma quadra:
Bão, balalão!
Senhor capitão!
Cenoura na cinta!
E rédeas na mão! 
É evidente que os termos cenoura e rédeas são adaptações ao desenho e talvez a uma correspondente história para crianças. Todavia a quadra de Macau é imediatamente reconhecível. Tentando investigar um pouco mais a curiosa coincidência (e digo um pouco mais porque não tenho, de momento, dados para ir muito além), perguntei em carta a pessoa de minha família, há muitos anos radicada no Rio de Janeiro, se acaso ouvira cantar no Brasil algo de semelhante. Respondeu-me imediatamente a pessoa solicitada que se canta aí popularmente a quadra em questão em duas cantigas diferentes, cuja pronúncia não será a da escrita, mas a brasileira:
1 - Bão balalão,
Senhor capitão!
Espada na cinta,
Ginete na mão.
Em terras distantes
Morreu seu irmão
Cozido e assado
No seu caldeirão. 
2 - Bão balalão
Senhor capitão!
Espada na cinta,
Ginete na mão. 
Aí vai a senhora abadessa
Sentada na sua cadeira,
Capitão não estava em casa,
Atiremos com ela no chão! (1)
Reparando nestas duas cantigas, vemos que a primeira, ao interesse da quadra semelhante à de Macau apenas acrescenta o que parece ser uma reminiscência da história da carochinha: Cozido e assado / No seu caldeirão. A segunda, com os versos Aí vai a senhora abadessa / Sentada na sua cadeira, dá ideia de que remonta à época em que as pessoas abastadas se faziam transportar de "cadeirinha". Esta referência, conjugada com o ginete do Senhor capitão, sendo ginete o nome antigo do "bastão dos capitães", segundo o Dicionário de Morais e Silva, leva-nos a atribuir à quadra uma relativa antiguidade. A aceitar-se esta suposição, poderá inferir-se que a cantiga terá sido criada ou importada pelo Brasil por alturas do século passado.
Quanto à quadra "de Macau", tudo são também hipóteses, mas parece que não devia ser cantada ainda na data da publicação do referido Cancioneiro Musical Crioulo, pois que não foi citada por Marques Pereira, o que situa a sua criação ou importação na primeira década do século actual.
Como explicar a coincidência de duas quadras em terras tão distantes como o Brasil e Macau? Não sendo provável que a cantiga transitasse do Brasil a Macau nem vice-versa, só poderemos supor, creio, que irradiou de Portugal nas duas direcções opostas. Seria interessante saber se teria sido ou é cantada ainda noutros territórios de língua portuguesa.
De qualquer modo, julgo poder afirmar-se com segurança que a quadra de Macau não é criação do povo macaense. Mas, como tantas vezes tem acontecido, este povo, ao "adoptá-la", deu-lhe um cunho de paternidade local, não só pela pronúncia do crioulo em que passou a cantá-la (sium 'senhor', capitám, mám), como pelos termos aqui introduzidos, dom dom e rota.
Dom-dom, no papiá cristão de Malaca, significa 'levar ao colo' (um bebé, por exemplo) e em Macau foi usado no naná, em vez do bão balalão do Brasil, certamente no sentido de 'embalar'. A rota, espécie de cana fina ou junco, chamada em Portugal junco da índia, mas sendo a palavra de origem malaia (rotan) e muito divulgada no português do Oriente, seria em Macau o pingalim ou chibatinha dos oficiais portugueses, (2) substituindo o termo ginete . menos compreensível da quadra original. Esta parece ser uma prova de como, apesar do conhecido espírito criativo brasileiro, o de Macau foi neste ponto mais longe, adaptando e macaizando, aliás como em tantos outros casos, um elemento folclórico vindo do exterior.
Notas:
(1) As cantigas brasileiras apresentam também pequenas variantes, mas não são significativas, como Bom balalão e Bam balalão, sinete por ginete, senhora madeira por senhora abadessa e atirarmos com ela no chão em vez de atiremos.
(2) A espada e a chibata ou pequeno bastão terão sido usados em tempos mais antigos por todos os cavalheiros portugueses de Macau, "tanto reinóis como seus descendentes", "como emblema de prestígio que não podiam dispensar" (Ana Maria Amaro, Filhos da terra, Macau 1988, p. 80). Isso mesmo se confirma no desenho de Um estrangeiro (português) do séc. XVlll, em Ou-Mun Kei Lèok, trad. de Luís G. Gomes, Macau 1950, p. 133. Contudo, na data da introdução da quadra em Macau, já a referência à espada, à cinta e à rota na mão seria aplicável, suponho, apenas aos oficiais do exército português.
Graciete Batalha in Revista Cultura, nº 7/8, Macau, 1988

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