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domingo, 6 de agosto de 2017

Aconteceu em Mong Há

Foi há muitos, muitos anos…
Um dia, ao fim da tarde, um bul-bul de dorso verde azeitona, manchado de amarelo, fugiu de uma das gaiolas de bambu de hastilhas finas, onde o seu dono acabara de prender um lindo bebedouro em porcelana pintada. A ave voou para um dos ramos da maior árvore do Largo do Arvoredo, em Mong-Há, e ficou a balouçar-se assustada, errando à toa, sem saber para onde ir, ignorante dos caminhos da liberdade. Saltava, de ramo em ramo, entontecida, alheia ao desespero do seu velho dono, que a adquirira por bom preço e a via agora aparecer e desaparecer entre a folhagem verde escura da árvore de gondom (1).
Um rapaz azougado da aldeia, que assistira à cena, subiu lesto à árvore para apanhar o pássaro fugitivo. Porém, quando agarrou a ave, o tronco onde se apoiava cedeu ao seu peso e, desamparadamente, veio despenhar-se, de muito alto, sobre o velho banco de pedra onde os anciãos se reuniam a jogar cheong kei (2).
A queda foi fatal. Nenhum remédio foi eficaz para o curar. Foi chamado o mais famoso médico tradicional da aldeia, que achou a cura impossível. Veio a man-héong-pó. Veio o bonzo de Tou, famoso pelas suas artes mágicas curativas, que morava para as bandas de San Kiu. Tudo em vão. O rapaz morreu nos seus verdes anos, desastrosamente, sem ter cumprido a sua missão na terra. Para mais, era mau filho; não cumpria os seus deveres para com a sua velha mãe, obrigando-a a trabalhar arduamente para o sustentar, enquanto passava os dias a divagar pela cidade, jogando dados e cartas de pau (3), sem nada fazer de útil.
A partir de então, aquela árvore passou a ser temida. Na sua densa ramagem passara a habitar uma alma faminta, um espírito errado, um kwâi. Os aldeões de Mong-Há evitaram, desde aí, passar, de noite, pelo Largo do Arvoredo fronteiro ao Kun Iâm Ku Miu, onde se encontrava aquela árvore malissombrada, a mais frondosa do terreiro.
Contavam-se várias histórias…
Á-Fai, um aguadeiro da aldeia, que residia perto do chi tei (4) do Kun Iâm Ku Miu, possuía, para o transporte da água que vendia aos moradores da cidade, uma pequena zorra de madeira, onde levava os môk tong (5) cheios do precioso líquido. De noite, este pesado carro ficava na rua, diante da sua casa. O kwâi da árvore fronteira divertia-se, então, a deslocá-lo, por vezes para enormes distâncias, as quais, no dia seguinte, o aguadeiro tinha de percorrer, antes de iniciar a sua faina. E isto porque um dia Á-Fai troçara dos aldeões que acreditavam naquele kwâi que residia na grande árvore, a mais velha de Mong-Há.
De outra vez, o lou lei pak (6) da aldeia, homem já muito idoso, ao passar a desoras pelo Largo do Arvoredo, viu alguns garotos a trepar e a brincar perigosamente empoleirados nos ramos da famigerada árvore. Receoso de alguma queda desastrosa, incentivou-os, mandando-os para casa. Eram horas de dormir. Não eram horas de brincar! Como resposta, foi agredido por uma saraivada de pedras. É que aqueles garotos eram kwâis que vinham brincar com o outro que ali residia há muitos anos.
Não só os chineses, porém, eram alvo das diabruras daquela pobre alma penada. Um dia, um militar português, seguindo, de noite, em direcção à chácara da família Senna Fernandes, quando subia a chamada ladeira de San Tei num jerinxá manual, ao aproximar-se do Largo do Arvoredo, foi quase arremessado ao chão, porque o jerinxá parou bruscamente. O cule sentiu, de repente, que não podia avançar, porque o peso do seu carrinho de um só lugar aumentara inexplicavelmente, ultrapassando a capacidade de tracção dos seus braços. O militar, irritado, pensando ser manha do condutor, deu-lhe um pontapé, com certa violência. Imediatamente recebeu uma forte bofetada dada por mão invisível. É que se tratava do kwâi que vivia na árvore mofina e que se apoiara no jerinxá, fazendo-o assim parar mercê do peso adicional. A bofetada dada pelo kwâi foi de tal ordem que o militar ficou em estupor e com a boca torta (7).
Com a abertura da Avenida Coronel Mesquita o grande largo do Kun Iâm Ku Miu foi amputado e, com ele, as suas velhas árvores, entre as quais a malissombrada, que ninguém ousara, até ali, abater.
Árvore com leng… árvore respeitável. Mas também árvore onde morava um kwâi.
Vieram os bonzos. Queimaram-se papéis. Fizeram-se orações para que os deuses não se ofendessem com as transformações impostas à aldeia. E houve, ainda, quem se lembrasse do rapaz que, há muito, muito tempo, por causa de um bul-bul, passara a viver no imaginário colectivo da população pacífica de Mong-Há.
Artigo da autoria de Ana Maria Amaro in Revista Macau, Julho 1996
(1) Nome de Macau dado às árvores-de-pagode (árvores do género Ficus, cujos frutos têm a forma de pequenas esferas).
(2) Xadrez chinês.
(3) Dominó chinês. 
(4) Pequeno altar exterior dedicado a Tou Tei, o Espírito do Solo. 
(5) Baldes chineses de transporte de água, feitos em madeira.
(6) Guarda-nocturno e marcador de períodos horários.
(7) Forma local de referir acidentes vasculares cerebrais

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