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terça-feira, 1 de setembro de 2015

Camilo Pessanha e Fernando Pessoa em 1915

Camilo Pessanha com a afilhada Ângela Gracias, em Macau, a 6 de Setembro de 1915, véspera da sua última partida para Portugal. Postal editado pelo IPOR em 1990.
É uma fotografia com 100 anos... Em 1915 foi também o ano em que Fernando Pessoa escreveu esta carta para C. Pessanha:
Ex.mo Senhor Dr. Camilo Pessanha, Macau
Há anos que os poemas de V. Exa. são muito conhecidos, e invariavelmente admirados, por toda Lisboa. É para lamentar — e todos lamentam — que eles não estejam, pelo menos em parte, publicados. Se estivessem inteiramente escondidos da publicidade, nas laudas ocultas dos seus cadernos, esta abstinência da publicidade seria, da parte de V. Exa., lamentável mas explicável. O que se dá, porém, não se explica; visto que, sendo de todos mais ou menos conhecidos esses poemas, eles não se encontram acessíveis a um público maior e mais permanente na forma normal da letra redonda.
É sobre este assunto que assumo a liberdade de escrever a V. Exa. Decerto que V. Exa. de mim não se recorda. Duas vezes apenas falámos, no “Suíço”, e fui apresentado a V. Exa. pelo general Henrique Rosa. Logo da primeira vez que nos vimos, fez-me V. Exa. a honra, e deu-me o prazer, de me recitar alguns poemas seus. Guardo dessa hora espiritualizada uma religiosa recordação. Obtive, depois, pelo Carlos Amaro, cópias de alguns desses poemas. Hoje, sei-os de cor, aqueles cujas cópias tenho, e eles são para mim fonte continua de exaltação estética.
Não escrevo estas coisas a V. Exa. para seu mero agrado, adulando. Elas são a expressão sincera do modo como sinto as composições a que me reporto. Nem sequer cito este prazer, que os seus poemas me deram, com o restrito fim de apoiar em frases que possivelmente sensibilizem o pedido que venho fazer. A ordem dos factos é outra: é porque muito admiro esses poemas, e porque muito lamento o seu actual carácter de inéditos (quando, aliás, correm, estropiados, de boca em boca nos cafés) a que ouso endereçar a V. Exa. esta carta, com o pedido que contém.
Sou um dos directores da revista trimestral de literatura “Orpheu”. Não sei se V. Exa. a conhece; é provável que a não conheça. Terá talvez lido, casualmente, alguma das referências desagradáveis que a imprensa portuguesa nos tem feito. Se assim é, é possível que essa notícia o tenha impressionado mal a nosso respeito, se bem que eu faça a V. Exa. a justiça de acreditar que pouco deve orientar-se, salvo em sentido contrário, pela opinião dos meros jornalistas. Resta explicar o que é “Orpheu”. É uma revista, da qual saíram já dois números; é a única revista literária a valer que tem aparecido em Portugal, desde a “Revista de Portugal”, que foi dirigida por Eça de Queirós. A nossa revista acolhe tudo quanto representa a arte avançada; assim é que temos publicado poemas e prosas que vão do ultra-simbolismo até ao futurismo. Falar do nível que ela tem mantido será talvez inábil, e possivelmente desgracioso. Mas o facto é que ela tem sabido irritar e enfurecer, o que, como V. Exa. muito bem sabe, a mera banalidade nunca consegue que aconteça. Os dois números não só se têm vendido, como se esgotaram, o primeiro deles no espaço inacreditável de três semanas. Isto alguma coisa prova — atentas as condições artisticamente negativas do nosso meio — a favor do interesse que conseguimos despertar. E serve ao mesmo tempo de explicação para o facto de não remeter a V. Exa. os dois números dessa revista. Caso seja possível arranjá-los, enviá-los-emos sem demora.
O meu pedido — tenho, reparo agora, tardado a chegar a ele — é que V. Exa. permitisse a inserção, em lugar de honra do terceiro número, de alguns dos seus admiráveis poemas. Em geral publicamos em cada número bastante colaboração de cada autor, de modo que, apesar de a revista ter 80 páginas, os colaboradores de cada número não têm passado de 7 (8). Isto é para indicar que sobremaneira estimaríamos que nos concedesse a honra de publicar umas dez a vinte páginas de sua colaboração. Entre os poemas que era empenho nosso inserir contam-se os seguintes: “Violoncelos”, “Tatuagens”, “O Estilita” (só conheço, deste, o segundo soneto), “Castelo de Óbidos”, “O Tambor”, “Nocturno”, “Passeio no Jardim”, “Ao longe os barcos de flores”, “O meu coração desce...”, “ Passou o Outono já”, “Floriram por engano as rosas bravas...”, “O Fonógrafo”. Ao soneto que considero o maior de todos os seus, e é sem dúvida um dos maiores que tenho lido — “Regresso ao Lar” — , não me refiro, visto que o seu assunto, infelizmente, inibe (e creio ser essa a vontade de V. Exa.) que ele se publique.
Podia V. Exa. fazer-nos o favor que pedimos? Nós não pedimos só por nós, mas por todos quantos amam a arte em Portugal; não serão muitos, mas, talvez por isso mesmo, merecem mais carinhosa atenção dos poetas. Se fosse possível enviar-nos mais colaboração do que esta que indiquei, dobrado seria o favor, e sobradamente honradas as páginas da nossa revista.
Como correm por aqui várias versões, mesmo escritas, dos seus poemas, pedíamos que — caso quisesse anuir ao nosso pedido, no que julgamos que não terá dúvida — ou nos enviasse cópia exacta deles, ou — caso isso o incomodasse — nos indicasse a quem, aqui, nos devamos dirigir para obter essas cópias.
Como nos parece que estamos abusando do tempo e da paciência de V. Exa., e como esta carta segue registada, basta-nos, para resposta, um postal — ainda que uma carta registada, contendo as cópias ou a indicação pedida, fosse preferível — , ou, caso V. Exa. não queira dar-se ao incómodo de nos enviar esse postal, basta (cremos não abusar combinando assim) que V. Exa. não nos responda negativamente para nos considerarmos autorizados. Nesse caso guiar-nos-emos pelas cópias que nos parecerem mais conformes à constante psíquica do seu pensamento poético. O preferível, porém, era que V. Exa. nos enviasse as cópias dos poemas.
Confessando-me, pelo “Orpheu”, desde já altamente grato e honrado com o envio dos seus poemas, subscrevo-me, com o maior respeito e admiração.

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