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segunda-feira, 27 de julho de 2015

Memórias de Carlos Alberto Carvalho

O testemunho inédito de CAC começa assim...
Vivi em Macau desde Novembro de 1953 até ao dia 9 de Julho de 1960, altura em que embarquei no Tak-Sin, no Porto Exterior, a caminho de Hong-Kong. Foi a primeira escala de uma viagem de 59 dias a caminho de Lisboa.
Reprodução do cartão de aluno de Carlos A. Carvalho no D. Bosco
Estudei no Colégio D. Bosco, onde fui aluno de 1953 a 1959, tendo saído de lá como o melhor aluno que passou pelo Colégio. É lógico que depois houve muitos mais melhores do que eu. Na minha altura, íamos fazer os exames à Escola Central, perto do Jardim Infantil. Era na rua onde estava o Hospital Militar e fazia um ângulo de 90º com a Av. Horta e Costa. Estudei também no Liceu da Praia Grande.
O meu irmão mais velho foi um dos fundadores da Casa de Macau, em Lisboa, Foi o primeiro aluno continental a merecer uma bolsa de estudos do Liceu de Macau, para a Universidade de Coimbra.
Fui para Macau com 6 anos e meio e regressei a Portugal com 13 anos. O meu pai era militar e já se encontrava lá. Fui num navio de cabotagem, pequeníssimo - o Lúrio - que estava preparado para a costa de Moçambique. Entrei no Colégio D. Bosco em Dezembro de 1953... Regressei a Macau passados 39 anos, em 1999. No primeiro dia fui dar uma volta pela cidade e, apesar das mudanças, eu conhecia tudo, porque o esqueleto da cidade está lá. A casa onde vivi, ainda existe, na Estrada da Areia Preta, 27, em frente onde era o depósito da Coca-Cola.
Reprodução da entrevista publicada no JTM em Abril de 2010
Jornal Tribuna de Macau: Nasceu em 1947 e em 1953 vai para Macau. Tinha apenas seis anos...
Carlos Carvalho- Nasci no dia 10 de Maio de 1947, na freguesia da Sé, concelho de Lamego, distrito de Viseu. Embarquei em Lisboa, no navio “Império”, com destino a Moçambique. Embarquei na companhia de minha mãe, e meus três irmãos de então. Passámos por Funchal, S. Tomé, Luanda e Cidade do Cabo, antes de chegarmos a Lourenço Marques, tendo ficado em casa do meu avô materno, que na altura estava casado em segundas núpcias e vivia no Bairro da Matola. Atravessámos duas fortes tempestades - uma, ao largo da costa do Senegal, e outra, na junção dos Oceanos Atlântico e Indico, à vista do conhecido cabo da Boa Esperança, no sul da África do Sul. Depois da espera de um mês, por um navio que nos levasse a Macau, acabámos por embarcar no navio “Lúrio”, que fazia cabotagem na costa de Moçambique - uma espécie de casca de noz dos tempos modernos. A bordo iam muitas famílias de militares que já se encontravam em Macau há algum tempo. Atravessámos o Oceano Índico, em direcção a Singapura, onde chegámos depois de termos passado por uma grande tempestade das monções e o navio se ter avariado gravemente. Diziam, na altura, que estivemos para ser lançados ao mar, o que felizmente não aconteceu. Porque se tratava de um navio muito pequeno, acabámos por chegar a Macau, tendo o navio atracado no Porto Interior em Novembro de 1953. Cheguei a Macau com cerca de seis anos e meio, portanto.
-Porque foi para Macau?
-Em Macau encontrava-se o meu pai, que era militar e prestava serviço no então quartel da Porta do Cerco, junto à fronteira com a China.
-Viveu em Macau até aos 13 anos. O que recorda desses tempos?
-Recordo o frenesim da juventude, dos cinemas, das festas chinesas e militares e dos fins-de-semana que os Salesianos ofereciam aos adolescentes de Macau, com brincadeiras, jogos, um lanche - pão com marmelada - e uma sessão de cinema.
-Em que escola estudou?
-Entrei no Colégio D. Bosco, dos Salesianos Portugueses, em Dezembro de 1953 e frequentei ali as aulas até à 5ª. classe, nas férias grandes de 1959. Era um Colégio virado para o internamento de chineses e outras raças minoritárias, tendo como alunos externos, os filhos da alta sociedade de Macau e dos Portugueses, que na sua maioria, cumpriam uma comissão de serviço militar em Macau. Temos o caso de muitos militares, que sendo solteiros, casaram com chinesas ou macaenses.
Na minha altura, íamos fazer os exames à Escola Central, perto do Jardim Infantil. Era na rua onde estava o Hospital Militar e fazia um ângulo de 90º com a Av. Horta e Costa.
Os professores eram óptimos, na sua maioria padres de Portugal, mas também Italianos e Espanhóis. Tive a sorte de poder contactar com as autoridades de então, porque, sendo português e bom aluno, era escolhido para almoçar ou cumprimentar o Sr. Governador ou autoridades militares, e ainda o Sr. Dr. Pedro Lobo, um amigo do Colégio, em todos os momentos. Em 1959/1960, depois de haver feito o exame de admissão ao Liceu, frequentei o 1º. ano, na Praia Grande, no local onde hoje se encontra o Banco da China, salvo erro. Tive como Reitor, o Sr. Dr. Cabral, e como Director de turma o Sr. Dr. Conceição, que viria a ser, mais tarde, Reitor do Liceu. Também aqui tive óptimos professores. Em especial, lembro a Dra. Ana Maria Amaro, professora de Ciências.
-Que mudanças notou na passagem do D. Bosco para o Liceu?
-No Colégio D.Bosco também éramos acompanhados por vários professores. Tínhamos as disciplinas normais para uma escola primária, mas já havia o ensino de Inglês e Chinês (Cantonês). Para além disso, era muito requisitado para o Teatro ou para representar o Colégio em apresentação de cumprimentos às entidades oficiais, especialmente Sr. Governador e Dr. Pedro Lobo.
Quando fui para o Liceu, na Praia Grande, senti uma diferença grande. Responsabilizavam-nos mais e estávamos numa casa muito grande. Lembro-me da Secretaria, logo à entrada, do lado direito, e que a minha turma do 1º. ano ficava no 1º. andar, por cima da Reitoria. As disciplinas que mais me agradaram foram o Português, e as Ciências Naturais, em que a Professora Dra. Ana Maria Amaro explicava as matérias com desenhos que ela fazia no quadro, a giz, e para os quais tinha um jeito fantástico.
-O edifício do liceu na Praia Grande tinha acabado de ser inaugurado (Outubro de 1958). Era um edifício imponente. Recorda-se do ginásio, do estrado do professor na Sala de aula?
-O Ginásio era espectacular. Lembro-me dos espaldares, nas paredes do mesmo, onde fazíamos ginástica para correcção da coluna. O palco era imponente. Faziam-se ali algumas festas e actos públicos.
O estrado dos professores, na sala de aula, era exactamente igual ao das salas de aulas no Colégio D. Bosco . O quadro era ao longo da largura da sala, só não apanhando a traseira da secretária do professor. Este tinha privilegiada a atenção dos alunos para as suas explicações das matérias. Os alunos, nas salas, estavam divididos em sexo feminino à frente e sexo masculino atrás.
-Recorda-se das suas brincadeiras de criança em Macau?
-Lembro-me perfeitamente. O meu nome é Carlos Alberto. Os meus vizinhos chineses, quando íamos brincar para a esplanada do armazém da Coca-cola, chamavam-me “Sapato”. Experimente ligar rapidamente o Carlos com Alberto. Os jogos que mais me atraíam era o dos berlindes e o do “Talu”. Dos berlindes, ainda hoje tenho uma lata de bolachas cheia com berlindes daquele tempo, policromados, muito bonitos. O Talu era jogado com dois paus, um que batia do outro, mais pequeno e afiado das pontas, como se de lápis se tratasse. Ganhava o que conseguisse bater no pau sem ele cair ao chão, atingindo uma determinada distância em passos. Havia também o jogo dos “Com Chai Chi”, que eram um tipo dos nossos pequenos cartões com jogadores de futebol, só que aqueles tinham as representações dos antigos heróis chineses. Quando ia para a praia de Hac Sa Van, em Coloane, onde o Colégio D. Bosco tinha uma casa, não tínhamos barracas. Ficávamos todos juntos a tomar banho e a brincar, vigiados pelos responsáveis. Um dia, apanhei um grande susto quando fui perseguido por uma cobra de água, no mar. Escapei...
-Como era a cidade nessa época?
-A cidade era muito pequena. Não era a Metrópole que hoje é. Mas tinha uma vida muito activa, por parte dos estudantes, que se juntavam em alguns cafés da cidade - não lembro já os nomes -, e frequentavam as sessões, nos diversos Cinemas da cidade - o Apollo, o Vitória, o Capitólio, o Império, e outros mais. O desporto estava na moda, especialmente o futebol no Campo 28 de Maio, o hóquei em campo, no Tap Seac, em frente ao edifício do antigo liceu, a rádio, com a “guerra” entre os apoiantes de Elvis Presley ou Pat Boone.
Lembro-me que o meu irmão mais velho era um locutor solicitado em Macau, no Rádio Club Vila Verde, porque se encontrava instalado numa casa cedida pelo Dr. Pedro Lobo, que tinha a côr verde. O desporto Escolar era também muito participado pelas diversas escolas de Macau, nas quais sobressaíam o Colégio D.Bosco e o Liceu Nacional Infante D. Henrique.
-Quer contar a história dos seus pais e dos seus irmãos?
-Os meus pais foram um casal simples que tiveram cinco filhos. O meu pai, por ser filho de uma família transmontana com dificuldades na vida, passou pelo contrabando de café e tabaco, em pequeno, por ausência do pai, que se ausentou para o Brasil, donde nunca deu notícias. A minha avó paterna era muito exigente, de tal modo que levou o meu pai a alistar-se no Exército, como voluntário, para fugir à vida difícil que ele e os irmãos atravessaram.
Durante o tempo de Macau, o meu pai foi um 2º. Sargento como tantos. Mas era exigente com os cinco filhos, quer nos estudos, ou no comportamento social. Deslocava-se de bicicleta para os quartéis onde esteve, excepto no Quartel das Portas do Cerco, em que as casas que habitávamos, ficavam anexas na frente do próprio quartel.
Exigiu sempre muito dos filhos. O meu irmão mais velho – Walter de Carvalho - veio a ser o melhor aluno de Macau no tempo em que lá esteve, tendo recebido uma bolsa de estudos para a Universidade de Coimbra, a qual estava destinada aos filhos da terra, como se deve compreender. Ele também foi um dos fundadores da Casa de Macau, em Lisboa.
A minha única irmã casou em Macau com 17 anos, com um Sargento do Quartel de Artilharia de Mong Há. Tenho o meu irmão mais novo que nasceu em Macau em 1955, é professor, e já esteve em Macau durante quatro anos como professor também.
-Lembra-se de onde morava?
-Tive duas residências: a primeira, na Estrada da Areia Preta, nº 27, em frente a um armazém da Coca-cola, que tinha como anexos dois campos de ténis, onde jogavam os elementos da alta sociedade macaense. A segunda, na estrada que ligava ao monumento das Portas do Cerco, em casas que pertenciam ao Estado, e que estavam distribuídas a Oficiais e Sargentos do Exército.
-Regressou a Portugal em 1960. Porquê?
-A Comissão de serviço de uma quantidade enorme de Oficiais e Sargentos foi considerada como exagerada, e entenderam as autoridades fazer regressar à Metrópole as mais de cem famílias.
-Como foi a viagem de regresso?
-Foi óptima. No dia 9 de Julho de 1960, partimos para Hong-Kong, a bordo do “Tak-Sin”, onde se encontrava o navio “Niassa”, que nos trouxe, às mais de cem famílias, de regresso a Lisboa. Sei que demorámos 59 dias exactos na viagem, tendo passado por Mormugão, na India; Nacala, Beira e Lourenço Marques, em Moçambique; cidade do Cabo, na África do Sul; Lobito e Luanda, em Angola; S. Tomé e Funchal, onde assisti à estreia de um grande filme - “A Bíblia”, no cinema João Jardim.
-Depois da saída em 1960 quando é que regressouMacau?
-Regressei a Macau em Março de 1999, 39 anos depois... com um grupo da Casa de Macau, para participar no III Encontro das Comunidades Macaenses. No primeiro dia fui dar uma volta pela cidade e, apesar das mudanças, eu conhecia tudo, porque o esqueleto da cidade está lá. A casa onde vivi, ainda existia, na Estrada da Areia Preta, 27, em frente onde era o Depósito da Coca-Cola. Estivemos em Macau durante 12 dias, sendo a primeira semana de visitas e passeios livres.
-O que acha desse tipo de eventos?
-Acho os Encontros de Macau excelentes para o encontro de gerações passadas e recordação da Terra e dos tempos passados. Depois, permitem que as pessoas possam visitar isoladamente, durante uma parte do tempo, o que mais desejarem. Eu aproveitei para ver os Jardins e Museus de Macau, além de algumas Igrejas, como a Sé e Santo António, que eram as mais frequentadas pelas comunidades portuguesas, incluindo os Macaenses. Depois, não podia faltar a ida às Ruínas de S. Paulo, ao Farol da Guia, e ao Colégio onde estudei e fui muito bem recebido.
-Nesse regresso com que opinião ficou, nomeadamente das marcas portuguesas no Território?
-O único senão foi que, ao deslocar-me ao Serviço de Turismo, no Largo do Leal Senado, à procura de um ex-colega que lá trabalhava, não percebiam o meu português, falando-se ali simplesmente o chinês e inglês. E era um serviço público... Quanto ao resto, penso que Portugal teve o cuidado de deixar marcas no Território.
-De que forma tem acompanhado a evolução do território?
-Tenho em Macau vários amigos, com quem converso periodicamente, que me vão informando da sua forma de viver. Sei que Macau atravessa uma situação muito boa, baseada no turismo e no jogo.
-Está ligado a alguma instituição com vínculo a Macau em Portugal?
-Estou ligado à Casa de Macau. Tenho pena que esta Instituição não tenha uma delegação no Porto.
-Que memórias guarda de Macau?
-Macau foi e é uma cidade que me marcou definitiva e profundamente. Ali ficaram os amigos fiéis e desinteressados, que deixaram saudades, e que estão espalhados por todo o Mundo - Brasil, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Portugal, e na própria Macau.
-Qual é o ‘postal ilustrado’ de Macau?
-Para mim, há três postais de Macau: as Ruínas de S.Paulo, o ‘postal’ principal, o Farol da Guia e o Monumento das Portas do Cerco.
-Numa frase ou numa palavra… o que é para si Macau?
-Uma intensa saudade.
-Saudades?
-Macau ficou-me no coração. Sabe que, passados uns anos, pedi aos meus padres salesianos para me deixarem regressar a Macau? E, no entanto, vivia numa cidade de que gosto imenso - Coimbra. Em 1960, quando regressei ao Continente, o meu pai foi colocado no R.I.12, em Coimbra. Como o meu irmão mais velho estava a estudar na Universidade, foi ouro sobre azul. Porém, o estilo de vida em Coimbra não era o mesmo de Macau, e isso deixou-me muito deprimido durante algum tempo. Foi nessa altura que senti saudades de Macau, da minha vida no Colégio, e dos colegas que havia deixado no Território.
-Hoje já está reformado. Qual foi a sua profissão?
-Fui empregado bancário durante 36 anos e 10 meses, tendo começado no Banco Borges & Irmão. Hoje, estou reformado do BPI.

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