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sexta-feira, 17 de abril de 2015

Memórias de Silene Wong - 2ª parte

Quando estava no 2º ano, a escola promoveu um evento desportivo infantil e eu me inscrevi em várias modalidades. Nas eliminatórias, consegui me classificar para três finais. A competição das finais foi na unidade feminina. Das três competições, eu ganhei dois terceiros lugares e um primeiro lugar. O dia da entrega de prémios foi um dia de festa na escola, além da cerimónia de entrega de prémios e fotos dos ganhadores. As provas incluíam, por exemplo, saltar à corda.
Na cerimónia de entrega dos prémios das competições desportivas no colégio Yuet Wah
Tecnologicamente, Macau pareceu-me menos avançado que o Brasil. Do que me recordo não era fácil aceder a certos electrodomésticos como geladeira e ferro eléctrico. No caso do ferro, usava-se o de carvão vegetal. Complicava um pouco para o meu pai principalmente, pois ele era alfaiate. Às vezes, eu e meus irmãos ajudavam abanando para que a brasa pegasse e aquecesse o ferro. Em relação à geladeira, ou melhor, à falta da mesma, minha mãe tinha que ir ao mercado todos os dias. Julgo que também não se vendia leite fresco nem café em pó. Comprávamos leite condensado e diluíamos em água quente e acrescentávamos em seguida café instantâneo. Pão somente havia o de forma, vendido em fatias.
Televisores poucas famílias possuíam. Meu pai comprou uma pequena com o intuito de facilitar nosso aprendizado na língua chinesa. Era corriqueiro verem pessoas desconhecidas nossas pararem à frente da loja e ficarem assistindo em pé. Isso acontecia em outras casas também. Lembro que assisti ao seriado “Kung Fu” com David Carradine e também a muitos filmes musicais com óperas chinesas. A programação era transmitida de Hong Kong, cidade onde tínhamos de ir de vez em quando para resolver assuntos burocráticos referentes à nossa permanência na colónia portuguesa. Íamos de navio. Adorava a viagem. Penso que demorava algumas horas, não sei ao certo. Havia a opção de uma viagem mais rápida em um barco menor, mas era mais caro. Viajamos uma vez e não gostei. Apreciava o maior, pois ficava o tempo todo olhando para o mar, as espumas e o horizonte...
Prova 'desportiva' no colégio
Sei que nem tudo foram flores nestes dois anos passados em Macau, mas diferentemente de alguns membros da família, a minha adaptação foi fácil. Ía bem na escola, dava-me com os colegas de classe, com os vizinhos e aprendi rapidamente a língua chinesa. Minha rotina resumia basicamente à escola durante a semana, diversão ao final do dia com os vizinhos, ida à missa aos sábados ao final do dia. Aos domingos, quando saíamos, era para visitar algum parque da cidade ou almoçar ou tomar chá em algum restaurante. Sinto falta de alguns pratos chineses. Onde resido actualmente existem muitos restaurantes chineses, especialmente no bairro da Liberdade/SP, mas não é a mesma coisa.
Na Taipa em 1972
Saudades tinha eu dos familiares do Brasil, principalmente do meu avô. Meus pais trocavam cartas e fotos com frequência, notícias iam e vinham, assim as saudades eram amenizadas e encurtava a distância física, já que pensamentos e sentimentos estavam conectados sempre. Próximo de onde residíamos, havia um local (não sei exactamente o que era, talvez um templo budista) onde eram realizados velórios. Eram frequentes os cortejos passarem na frente de casa. Todo mundo parava para ver: o caixão sendo carregado à frente e em seguida os familiares e amigos do falecido. Vestiam branco da cabeça aos pés e lamentando a morte do ente querido. Isso me impressionava.
Jogo já era actividade de lazer comum naqueles tempos. Corriqueiro era ver pessoas jogando mahjong 麻 将, dia e noite. Penso que não é à toa que Macau hoje tem os jogos como uma das principais fontes de receita.
O regresso
O retorno ao Brasil deu-se em Julho de 1973. Poucas lembranças deste período, despedidas rápidas, malas arrumadas e de volta à terra natal. Hora de rever parentes e me readaptar à vida no ocidente. Um pouco de dificuldade na escola, já que o ano lectivo inicia-se em Fevereiro/Março. Ficamos um período morando com meu avô, mas em dois meses nos mudamos para uma casa. E mudamos de escola de novo, mas no final deu tudo certo. Recomendo experiências internacionais, quem tiver oportunidade, faça. A minha foi com pouca idade, mas posso dizer que muito me acrescentou. Herdei provavelmente desta estada a forma de pensar e agir, mais objectiva, directa devido talvez à maneira de expressar que aprendemos usando ideogramas, mais sucinta, e que às vezes entra em choque com o lado prolixo do português para explicar algo. Mas é um exercício e aprendi com o tempo.Tenho 50 anos e um dia ainda espero regressar a Macau!"
Nota: Fica assim completo o testemunho inédito e exclusivo de Silene Wong a quem eu agradeço aqui publicamente. Espero que tenha sido do agrado dos leitores. Logo após a publicação da primeira parte destas memórias, a Silene enviou-me um e-mail e seleccionei um excerto para publicação:
"Parabéns pelo seu trabalho e dedicação com a história de Macau. Óptima fonte de informação e preservação da memória da cidade. Eu é que agradeço a oportunidade e por ter me desafiado a escrever, rememorar uma parte importante da minha vida. Aproveitou informações que trocamos por e-mail e incluiu no relato. Algumas só vieram a partir desta troca. Descobri que havia muito mais lembranças do que imaginava... Hoje sei que fui feliz lá e o quanto a estada em Macau influencia / influenciou quem sou hoje. A vontade de voltar à cidade só aumentou e espero em breve revê-la!"

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