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quarta-feira, 18 de março de 2015

"Vendilhões": Fotografias de Carlos Alberto dos Santos Nunes (1ª parte)

Em 1996 o ICM editou duas colecções de postais (24 no total) a que deu o título "Vendilhões de Macau". São postais feitos a partir de fotografias de Carlos Alberto dos Santos Nunes. Inclui os vendedores ambulantes de: fruta, chá, louça, legumes, peixe, livros, fósforos, roupa, comida, guloseimas, etc...
Desde tempos imemoriais que nas cidades chinesas se instituiu o hábito de os negociantes levarem às residências dos particulares as mercadorias que lhes são mais necessárias e tal costume devia ter sido motivado pelo facto de ser inibida às mulheres a frequência das lojas, por ser considerada um procedimento altamente escandaloso a sua ausência do lar. Daí a praga de vendilhões ambulantes que, a fim de conseguirem angariar a indispensável malgazinha de arroz para o seu quotidiano sustento e o da sua família se vêem obrigados a valerem-se de todos os meios destinados a atrair o interesse do público para as suas mercadorias. 
Criou-se, então, um sistema tradicional de reclamo com o intuito de vencer a resistência do comprador, sistema este cuja evolução se foi aperfeiçoando com o tempo e integrando-se no progresso urbanístico de cada cidade de forma a constituir um elemento imprescindível da vida social chinesa. Assim, uns exploram todas as possibilidades das suas cordas vocais para que as suas estentóreas vozes possam atingir com sucesso os mais recônditos recantos das casas; outros usam de engenhosos instrumentos sonoros, como as charmelas de palhetas reforçadas (...).
Em Macau, como em todas as cidades da China, não faltam vendilhões ambulantes, devendo mesmo existir alguns milhares e, assim, logo pela manhã, os pacatos burgueses são sacudidos para fora das suas mornas camas, pela vibrante gritaria dos garotos dos jornais que, com invejável fôlego, disparam, em rápida sucessão, os títulos das notícias, dos acontecimentos mundiais, excedendo-se cada um na forma de impressionar melhor o público e causando-lhe tal sensação que o sucesso da venda é alcançado num instante. (...)
Nisto, surgia a voz do I-T´ái e como a clientela chinesa o interessava pouco, apregoava em português, merenda! merenda! (...) o bom do I-T´ái entrava em casa e pousava no chão da entrada, os seus dois enormes cestos, envernizados a castanho. Enquanto encostava a pinga, ou seja, a vara de que se servia para os transportar aos ombros, I-T´ái ia dispondo à sua volta os diversos ternos e enunciando, em voz fanhosa e cantada, todo o seu conteúdo. Eram natas; bolinhos de chocolate; bolos-meninos; bolos estrelas; pãezinhos recheados; coqueiras; tijelinhas do conde; chilicotes de massa de coco; em folhados; ou de rábano e envoltos em folhas de bananeira; pastelinhos diversos; muchis cobertos de pó de feijão torrado; mamas-de-freiras; barquinhos de coco revestidos com cabelos de noiva; diversas variedades de bebincas; e, nas proximidades do Natal, não faltavam aluares, pinhões, fartes, coscorões, empadinhas, etc. Nos últimos ternos estavam guardados os pães de casa, uns simples, outros com recheio de carne picada, e um suculento recipiente de madeira cheio de indigestos seák-tchók, ou sejam, os afamados apa-bicos, nome por que são conhecidos localmente. (...)
Assim, é à esquina das travessas, ponto estratégico de alta importància, porque é daí que se pode acorrer às chamadas dos fregueses de várias vias adjacentes, que se encontram diversas cozinhas ambulantes, onde se servem as tchü-iôk-tchôk e as pák-kuó-tchôk, maravilhosas canjas de porco e de ginco, que se ingerem acompanhadas das indispensáveis iâu-tchâ´kuâi (fruturas). (...)
À medida que o dia vai avançando, vão-se animando as ruas da cidade com uma infinidade de pregões. São os vendilhões de frutas que gritam, uns t´im-lâu-tch´áng-a, iâu tchèng t´im-lâu-tch´ áng mái-a (laranjas doces, há laranjas autenticamente doces à venda) outros; tch´iu-tchâu-kâm, tai-kó tch´iu-tchâu mât-kâm-á (tangerinas de Tch´iu-Tchâu, grandes tangerinas de Tch´iu-Tchâu, doces como o mel); outros (...).
No Verão, logo depois do meio-dia, lá aparecem os homens dos süt-kou (sorvetes), com os seus baldes, um com um cilindro de folha-de-flandres onde se conserva o sorvete, cilindro que é isolado do contacto da madeira do balde por uma camada de bocados de gelo misturados com salitre; outro, com água e copinhos de vidro para servir avulsamente os transeuntes sequiosos e atormentados pelo calor.
Não há muitos anos que a população não chinesa aguardava pacientemente a noite, pois era só nessa ocasião que aparecia o A-Loi, sem dúvida o melhor preparador dos sorvetes de chocolate, de café e de manga, antes de ser moda em Macau o servirem-se nos restaurantes. (continua)
in "Chinesices" de Luis Gonzaga Gomes

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