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sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

O "velho" ano novo chinês: 2ª parte

"No último dia do ano, no 30.º do derradeiro mês lunar, as inscrições vermelhas apostas nos muros fronteiros às casas e nos umbrais das portas (…) são arrancadas, desprezadas e destruídas, depois de haverem cumprido com sucesso a missão de que eram encarregadas, e substituídas por outros dizeres semelhantes.
Ao romper do novo ano, o Deus da Cozinha – Tsao Wang – dedicado companheiro que não guarda rancores, entre estrondosos foguetes regressa, mais uma vez, disposto, com a sua presença, a conceder uma indicação de bom augúrio, uma promessa de amparo. À sua chegada, aumenta o número de fogos a queimar, a alegria intensifica-se, a festa atinge proporções de uma batalha: é preciso amedrontar e afugentar os maus espíritos, que, desleais e pérfidos, quisessem aproveitar-se do descuido geral para se implantar na casa e influenciar, perniciosamente, o destino e sorte da família, durante o decorrer do ano que desponta. Todos os cuidados são poucos; e, para salvaguarda maior, os cautos chineses preparam-se com astúcia e habilidade e colocam guerreiros armados à entrada das portas. Dois bravos generais, que remontam às idades passadas e usufruem um prestígio enriquecido pelo mérito demonstrado em séculos sucessivos, desde os Tangs, impedem o ingresso dos espíritos intrusos e malévolos. (…)
Os celebrados ninhos de andorinhas, as deliciosas barbatanas de tubarão, os ovos de 100 anos, dezenas e dezenas de iguarias famosas e requintadas, servem-se em família, no meio de intermináveis partidas de mah-jong, bulhentas, onde o matraquear das cartas de bambu batidas na mesa faz como que parte do jogo e, até altas horas da noite, – predilecto passatempo –, serve de ocupação aos Celestes, que, encantados e absorvidos, nem se apercebem do correr das horas… Urge que fiquem saldadas as dívidas ao encerrar do ano; desculpas não são de admitir. Com o Ano Novo, vida nova. Todo aquele que tem uma existência difícil busca, ansioso, o meio de livrar-se de embaraços e, em último recurso, realiza um empréstimo, possivelmente em condições ruinosas, para saldar a antiga dívida. É uma questão de honra que tem de ser resolvida. Se a infelicidade teima em perseguir o indivíduo, se as contas não podem ser prestadas, a fuga impõe-se como solução.
No entanto, o regozijo público é a lei que vigora: desgostos e mágoas devem ser abandonados para dar lugar ao ruído, ao prazer, à alegria. E, de facto, os caprichos luminosos dos fogos de artifício rasgando, esplêndidos, o firmamento sereno, em voos alucinados, as explosões repetidas dos mais violentos petardos a relembrar a cada instante a data festiva que se comemora, os sons extravagantes e estrondosos das orquestras improvisadas, expandindo-se com estampido nas ruas, – todo este bizarro e atraente conjunto tem o condão de formar uma atmosfera característica, singular, que consegue imprimir, no espírito de todos os que a presenciaram, uma recordação duradoura e rara, dificilmente extinguível.”
Final do excerto que seleccionei a propósito das celebrações do novo ano lunar. Da autoria de Luís Esteves Fernandes, faz parte do livro “China de ontem, China de sempre” (1948). LEF foi um diplomata português. Em Pequim foi Encarregado de Negócios na década de 1920-30; entre 1940 e 1945 foi enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário de 2ª classe no Japão. A sua carreira abrange os períodos de 1920 a 1961. No livro "De Pequim a Washington: memórias de um diplomata português", escrito entre 1964 e 1966 e editado em 2007 fica-se a conhecer mais sobre a sua vida.

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