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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

O Natal macaense

O facto de Portugal e Macau se localizarem no hemisfério norte origina a partilha das mesmas estações do ano ainda que com significativas diferenças. É assim que por terras do Oriente o Natal também é frio, mas raramente com temperaturas tão baixas como em terras atlânticas. Serve a introdução para “situar” a época natalícia num território em que a maioria da população não é, nem nunca foi, católica. Um facto que a toponímica local parece desmentir mas é a mais pura das verdades. Mas voltemos às tradições natalícias dos católicos em Macau.
Desde o início do século XX e até cerca da década de 1970 era assim o mês de Dezembro em Macau na comunidade dita católica, portuguesa e macaense. O primeiro domingo era dedicado à primeira comunhão (na Sé Catedral) e logo a seguir iniciavam-se os preparativos para o Natal, uma época muito celebrada por portugueses e macaenses e cujo ponto alto culminava com a Missa do Galo. Até ao Dia de Reis visitavam-se amigos e familiares e logo depois surgiria o Ano Novo Chinês, o Carnaval, etc.. A cidade vivia ao sabor dos eventos do calendário das duas comunidades… Só a partir da década de 1980 com a massificação/globalização do fenómeno do natal enquanto acto consumista as festividades passaram, a ser visíveis nas ruas. Antes, era mais uma celebração religiosa que impunha recato e era vivida no seio das famílias ou no interior das igrejas.
Década 1990
Mas como era o Natal em Macau? “Essa vilazinha de presépio”, nas palavras de Ondina Braga…
A centenária Aida de Jesus recorda que “jantava sempre com a família. Ia à Missa do Galo e, na volta, havia a ceia. Antes, todas as casas de macaenses tinham o presépio ‘arrumado’. À volta de uma mesa muito comprida sentavam-se também cunhados, genros, sobrinhos e primos”. Aida lembra-se ainda que era habitual a queima de panchões à janela, efectuada pela maior parte das famílias católicas, durante a ceia após a Missa do Galo.
De acordo com Leonel Barros (1924-2011) “a quadra festiva do Natal era assinalada, como de costume, com a tradicional Missa do Galo nas igrejas, exposição de presépio e a presença de árvores de Natal nas escolas e instituições de caridade. As igrejas paroquiais de Macau e as restantes enchiam-se de fiéis, na noite de 24, para a tradicional Missa do Galo, umas cantadas e outras rezadas. As missas eram acompanhadas de cânticos próprios da quadra. (…) As congregações marianas concentravam-se na Igreja de São Domingos, onde assistiam à missa, que era acompanhada de cânticos. Nesta igreja, como nas restantes, havia uma grande afluência de fiéis à mesa da Comunhão e à cerimónia de ‘beijar o Menino Jesus’. Em várias escolas, oficiais e particulares, faziam-se festas de Natal, com distribuição de prendas aos seus alunos. Na escola infantil D. José da Costa Nunes havia também uma festa. As crianças desta escola levavam a efeito um engraçado programa de variedades, com cantorias e danças, todas vestidas com trajes regionais, e outros entretenimentos infantis de boa disposição e alegria”.
Contemporâneo de Leonel, Henrique de Senna Fernandes (1923-2010) viveu em Macau a maior parte da sua vida. Em 1983 recordou assim esta festividade. “Dezembro era um mês festivo. O primeiro domingo era dedicado à Primeira Comunhão, uma cerimónia tocante na Sé Catedral, onde se ajoelhavam, nervosos, dezenas de novos comungantes de ambos os sexos, de todas as paróquias da cidade. Havia, então, festa pela tarde fora, correndo-se dum lado para o outro para satisfazer todos os convites, não fossem os pais dos comungantes ficarem ofendidos. Logo a seguir, vinham os preparativos para o Natal, as donas de casa atarefadas na cozinha, na confecção do aluar, dos coscorões, empadas e fartes, os costumados doces da época. Encomendavam-se o peru e outras carnes de Hong Kong e, em casa do meu Avô materno, não podia faltar o empadão gelatinado de peças de caça, o famoso ‘game-pie’ da Lane Crawford. Encomendavam-se também à loja de Omar Moosa, mais conhecido por Kassam, figura prestigiosa e mais destacada da larga comunidade moura de Macau, loja esta sita, primeiro, na Rua Central e, mais tarde, na Avenida Almeida Ribeiro do galo’ desse tempo, o jantar de Natal, o deslumbramento dos brinquedos, a mesa repleta de iguarias, onde se comia à tripa forra, a alacridade e as gargalhadas dos familiares, ainda se repercutem na minha saudade. Os dias seguintes até os Reis, com quebra no dia do Ano Bom, eram dedicados aos amigos e conhecidos. Ia-se de casa em casa, apenas para um cálice de vinho do Porto ou para deixar cartões à entrada. Para isso, organizavam-se, de antemão, listas para que ninguém fosse esquecido”.
Igreja St. António: década 1980
Ceias pantagruélicas: mesa “farta” é uma tradição do macaense
A época do Natal era sinónimo de mesa “farta” mas só depois da Missa do Galo, durante a ceia e nos dias seguintes. Seguindo os preceitos da Igreja não se comia carne até à noite de Natal e a refeição antes desta missa era composta pela sopa de lacassá (aletria) e empada de peixe. Francisco Carvalho e Rêgo escrevia em 1950 que “o Natal foi sempre festejado com grande pompa, não faltando famílias que recebessem, em seus verdadeiros solares, todos os seus amigos, oferecendo-lhes ceias pantagruélicas a que todos assistiam, finda a missa do galo, à qual não faltava um só”. FCR refere-se às primeiras décadas do século XX. Vejamos então que “ceias pantagruélicas” eram essas. De acordo com Luís Machado “é tradição do Macaense ter uma mesa ‘farta’ quando recebe alguém em sua casa e a consoada não foge à regra, mas esta era celebrada com simplicidade, pois de acordo com os dogmas antigos da Igreja Apostólica Romana, nessa época praticava-se a abstinência o que significava a não ingestão de carnes até à ceia de Natal. Por isso ao jantar, antes da Missa do Galo, esta refeição era composta somente de sopa de lacassá (aletria) e empada de peixe. O momento mais alto nas celebrações passou a ser a ceia, depois da missa da meia-noite e o do almoço do dia de Natal, no dia 25 de Dezembro, onde a mesa era então composta de imensas carnes e doces, quebrado que estava o jejum e a abstinência dos dias anteriores. Depois da ceia ou do almoço da família, tinha lugar a distribuição de presentes entre todos. Embora estas práticas estejam profundamente alteradas, ainda restam algumas famílias que mantêm esta forma de celebrar o Natal”.
Só a título de exemplo, recordo alguns dos pratos presentes na ceia de Natal macaense. O “tacho” ou chau chau de peles, espécie de cozido à portuguesa, adaptado localmente, que inclui galinha, pé de porco, costeletas de porco, chouriço, pato salgado, pele de porco, presunto, repolho e couve. Depois, o porco bafassá (porco; açafrão; sal; pimenta; cebola verde e alho); apa-bico (farinha de arroz; banha; carne de porco e hortaliça salgada); chilicotes (farinha de arroz; banha; nabo; presunto e carne de porco)… e Diabo, um prato que é nada mais nada menos que o aproveitar do que sobra de tanta fartura. Normalmente este guisado inclui galinha assada, porco assado, presunto, caril de vaca estufada, batatas, mostarda, ovos, tomates, azeite, malagueta e açafrão. Nas sobremesas destaque para os “cabelos de noiva” (fios de ovos); bolo menino; alua, aluá ou aluar (sobremesa feita de farinha de trigo, coco e amêndoas); ginetes; bicho-bicho (pequenos bolinhos fritos, feitos de farinha de trigo, açúcar, ovos e sal); muchi–muchi (ou muchi coco), que leva coco, farinha de feijão, gergelim e farinha de arrroz; coscorão (o ‘lençol’ do menino de Jesus…) entre outras iguarias da rica gastronomia macaense.
PS: Nesta época, tal como na páscoa, a comunidade macaense faz o chamado “chá gordo”, momento em que a meio da tarde reúnem-se grupos familiares e de amigos para uma refeição e convívio que se prolonga até ao jantar.
Feliz Natal!
Artigo da autoria de JB publicado no JTM de 18.12.2014

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