Páginas

domingo, 2 de novembro de 2014

Ignorância e preconceito nas "Coisas da China"

Para o Henrique Lages Ribeiro. Para Pierre Ryckmans, in memoriam.
Conta-se que em vários momentos da História em que numa lógica Ocidental seria «natural» a China retomar a administração do território de Macau, nunca o quis fazer. O último desses momentos - e eu estava lá - foi no tempo da Revolução Cultural, quando, na sequência de uma situação delicada para as duas comunidades, se decidiu que as forças de segurança tivessem uma presença discreta. O policiamento da cidade e a protecção de pessoas e bens, foram assumidos nesse breve período pelas associações cívicas chinesas. E nada, nem ninguém, foi molestado, como jamais esquecerei.
Iguais a nós próprios, voltámos rapidamente a afagar a reconfortante ilusão da nossa presença ser uma necessidade incontornável para a China. O momento anterior foi quando o Exército de Libertação Popular, comandado por Lin Piao (o general que nunca perdeu uma batalha), expulsou o exército de Chiang Kai-Chek do Sul da China e parou às portas de Macau. Fala-se mesmo de uma mensagem de Mao a ordenar ao general invencível que não entrasse na cidade.
Anos antes, na Segunda Guerra Mundial, também o exército japonês, que tomara Hong Kong e flagelava cruelmente a região, não ocupou Macau, na altura aparentemente protegida pela neutralidade de Portugal na Guerra. Foi um período terrível, em que se manifestou uma solidariedade exemplar dos portugueses com os chineses, especialmente os refugiados. História que continua a ser completamente ignorada em Portugal, mas que a China não esquece.
Em todas essas ocasiões de ameaça dramática, terá havido mesmo por isso quem lembrasse a ideia antiga de um destino milagroso a proteger a Cidade do Nome de Deus...
E foi ainda, talvez, por essa memória de um fim sempre adiado que foi atribuído ao Governo de Portugal no 25 de Abril aquilo que, afinal, terá sido apenas o previsível propósito de alguns oficiais de uma corrente bem caracterizada do MFA em Macau: a entrega imediata da administração do Território à China. Mas nem nessas circunstâncias a situação de Macau se alterou. Na realidade, Macau nunca fora uma colónia e a China, antiga, sábia e vasta, acertou com Portugal que a questão de Macau, «herança da História», fosse resolvida com tempo, sensatez e sem drama.

A palavra-chave na filosofia chinesa é "harmonia". Harmonia na sociedade (Confúcio), harmonia dos homens com o Cosmos (Lao Tsé). Por isso o horror dos Chineses às convulsões sociais. (Na invasão mongol, séc. XII) morreu um terço da população, 25 milhões; na invasão manchú, um sexto.) Por isso o horror do povo e a fobia do poder político chinês à possibilidade de repetição de algo tão contra-cultura como foi, no passado mais recente, a tragédia, ainda tão viva, da Revolução Cultural (o episódio de Tiananman deve ser visto a esta luz). O que legitima e manterá o apoio da imensa maioria da população ao poder do PCC é a preservação da paz social, a prosperidade, a unidade e a integridade do território. Tudo isto está inscrito na história, na cultura e na civilização chinesas. Como ensinou Confúcio: «Se o soberano governa bem, mantém a fidelidade do povo».
A China é uma cultura pragmática. Em 1997, no gabinete que eu ocupava no palácio do governo na Praia Grande, um jovem doutorado numa das grandes universidades americanas, filho de uma das personalidades chinesas mais respeitadas e influentes no Território, com representação na Assembleia Nacional Popular em Pequim, transmitiu-me o que me pareceu ser uma seguramente bem informada convicção: "Se não houvesse a questão de Hong Kong, muito provavelmente a administração portuguesa prolongar-se-ia em Macau». E a China não teria dificuldade em encontrar algumas boas razões para isso. Na diversidade de peripécias e contextos históricos vividos por portugueses e chineses nesses tão longos 500 anos, na dimensão de poder dos dois Estados em presença, no jogo do interesse mútuo, regional ou imperial, que, efectivamente, em vários períodos, se verificou, e mesmo nas particularidades de modos de ser dos dois povos (como gostamos de invocar), foram muitos e diversos, naturalmente, os factores que foram determinando e explicam a continuidade, aparentemente intrigante ou mesmo milagrosa, da experiência singular que é Macau.
Mas há, todavia, em todos esses momentos, uma realidade subjacente à pluralidade de todas as razões que, em última instância, a determinou. Realidade que a distância cultural que nos separa da China leva a que tenhamos dificuldade em reconhecer. Essa realidade, de uma ordem de conhecimento que, lamentavelmente, continua ausente das intervenções de muitos analistas e, digamos, da apreciação da consciência comum, é a cultura. (Alguns desses analistas, aliás, exibem hoje a mesma ignorância e preconceito que manifestaram no passado, mas agora com sinal contrário.) 

Torre Prestamista em Macau

Como tão expressivamente escreveu Goethe, «Não me desloco a lugar nenhum fora do meu País que não seja para descobrir as particularidades de cada cultura e chegar através delas ao universal humano que existe espalhado pela Terra inteira», e, mais de dois mil anos antes, surpreendentemente ensinara Confúcio, «A natureza dos homens é a mesma. São os seus hábitos que os separam», há só uma Humanidade (por isso os mesmos grandes valores e aspirações, uma história de grandezas e misérias bem distribuídas pelo mundo todo), mas uma pluralidade de culturas (e, claro, a individualidade de cada ser humano, sempre a multiplicar-se, como sublinhou, contra o senso comum, Lévi-Strauss). Banalidades, afinal, que hoje ninguém realmente instruído contesta, mas que geralmente não se praticam na apreciação e no relacionamento com o «outro" (distante ou próximo, «diferente» ou «igual), individuo ou realidade cultural. Isto é, sabe-se, mas não se age de acordo com o que se sabe. E todavia, como disse Todorov, o melhor do encontro com o «outro» (isto é, da descoberta dele na sua verdadeira identidade) é o olhar crítico que voltamos para nós próprios depois de iluminados pela visão do «outro». Bloqueado pela ignorância e pelo preconceito, ou pela simples ausência da virtude tão cristã da compaixão («põe-te no meu lugar», "se estivesses no meu lugar...", diz a sabedoria popular), esse jogo especular identitário, que devia traduzir-se numa dialéctica de reconhecimento e autoiluminação (também neste registo dar é receber), torna-se, pelo contrário, frequentemente, numa dialéctica de ocultação, de efeitos pessoais culturais e sociais autodevastadores, que nas situações extremas conduz ao obscurantismo. Obscurantismo cujo mal, como bem se pode compreender, é ao próprio que o exerce, indivíduo ou cultura, que mais profunda e prolongadamente fere.
No que se refere à China, dada a referida distância cultural a que se encontra de nós, essa redução do outro à nossa própria identidade tem uma dimensão e efeitos mais dramáticos. E a China, como Nixon e Kissinger então perceberam e praticaram com o êxito que se conhece, mais do que uma cultura diferente, é mesmo outra civilização. Foi isso mesmo que senti e fui depois descobrindo deslumbrado quando, há 50 anos, depois duma viagem inumanamente vertiginosa, acordei em Macau aos sons aparentemente dissonantes emitidos por um rádio próximo. Era, afinal, música, música admirável, como depois aprendi a apreciar. Percebi, então, que chegara a outro mundo, diferente, mas também estranhamente familiar, teria já vivido nele? Macau, cidade mágica e mítica que hoje me habita entre a memória e a imaginação. A tal realidade subjacente à diversidade de todos os factores explicativos que, nos vários momentos históricos determinou (e continua a determinar) a tão longa continuidade da presença portuguesa em Macau, na China, é, pois, enfim, de ordem cultural e está ligada, concretamente, à importância singular da História na civilização chinesa, ao sentimento e à relação singulares do povo chinês com a sua história. Ao contrário da ignorância da História, da indiferença pelo passado histórico, distante ou mesmo próximo, que entre nós se verifica (que também o ensino que temos tido se empenhou em promover), na China a história está sempre viva. Por isso as figuras do passado são uma referência recorrente. Sem o conhecimento desse passado e dessa relação dos Chineses com a sua história, nada se entenderá da China, nada é possível pensar, dizer, escrever com acerto sobre nenhum domínio da realidade chinesa, da economia e da política, às ambições nacionais, do que aconteceu e virá.

Postal com carimbo de 1886
Em Novembro de 1793, quando da impressionante embaixada inglesa à corte de Quianlong, momento da última oportunidade do Império chinês para a abertura à modernidade que, porventura, lhe teria evitado a decadência dilacerante, teve lugar um curioso diálogo a que o autor da obra de onde o transcrevo chamou «Diálogo Secreto»: Os britânicos preparam-se para seguir para Cantão, uns por mar, outros por terra. Estão longe de sonhar que entretanto se desenrola, através do correio imperial, um diálogo implacável entre os dois pontos extremos da sua travessia chinesa. De Pequim, Qianlong dirigira, no dia 21 de Outubro, um edito ao governador militar de Cantão, bem como a todos os governadores das províncias costeiras: informava-os dos «pedidos inconvenientes» dos bárbaros, que reclamavam «uma pequena ilha onde pudessem residir permanentemente», ou no Zhoushan, ou perto de Cantão. Guo Shixun respondeu no dia 1 de Novembro e apenas doze dias mais tarde, 12 de Novembro, Qianlong anotava a sua resposta a tinta vermelha. Eis esse diálogo, que selou o malogro da embaixada de Macartney: Guo Shixun:
Os ingleses, quando chegam a Macau, têm de arrendar as suas habitações aos portugueses. A sua situação é a de convidados perante um anfitrião. Foi por isso que o enviado (britânico) pediu lhe fosse concedido um lugar onde pudessem colocar as suas mercadorias, que seria o equivalente ao que Macau é para os portugueses.
Qianlong: É ABSOLUTAMENTE IMPOSSÍVEL.
Guo Shixun: Por aqui podemos medir bem toda a cobiça e astúcia dos ingleses.
Qianlong: EXACTAMENTE!
Guo Shixun: A instalação dos portugueses remonta aos Ming, há mais de duzentos anos. Esses bárbaros acabaram por amar aquelas terras e mergulharam na influência benéfica do imperador. Não se diferenciam do resto do Império. Torna-se ainda mais impossível deixar bárbaros ingleses instalarem-se neste litoral por ser próximo de Cantão,
Qianlong: EXACTAMENTE!
Guo Shixun: Aquilo que o enviado inconsideradamente pede não lhe sairá do espírito com facilidade. É necessário, de acordo com as vossas santas instruções, que a defesa costeira seja rigorosa. Os bárbaros ingleses não deverão poder instalar-se na menor parcela do território do Império.
Qianlong: EXECUÇÃO IMEDIATA. Isso DEVE SER INTEIRAMENTE CONTRARIADO.
Aconteceu que esses "bárbaros" se instalaram mesmo na China pela força. O que tenho vindo a sugerir contribuirá também, porventura, para nos aproximar da explicação para o facto, igualmente intrigante (e «milagroso», se o soubermos aproveitar), da China, cujo investimento é disputadíssimo por todos os países europeus, querer investir em Portugal. Para contrariedade, ao que parece, de alguns nossos iluminados cérebros...
Há um provérbio antigo na China que os Chineses gostam de lembrar no convívio com os Portugueses: "Bebemos a água, mas não nos esquecemos de quem abriu o poço". Tive o privilégio e o gosto de acompanhar Umberto Eco numa semana de descoberta de Macau. Impressionado com a realidade física e a experiência de realização humana única que a cidade na sua história e vivências é, Umberto Eco, na conferência de imprensa de despedida, definiu Macau com uma metáfora perfeita: "Macau é uma câmara de descompressão antropológica". Macau, afinal, foi sempre isso. O que Portugal estará hoje a ser para os Chineses na Europa.
Artigo da autoria de Guilherme Valente publicado no QI, do DN a 25.10.2014

Sem comentários:

Enviar um comentário