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sábado, 11 de outubro de 2014

Memória sobre Macao: José Guimarães e Freitas (1828)


Nascido na segunda metade de setecentos em Minas Gerais, no Brasil, coronel de artilharia e procurador da cidade mineira, servidor militar em Angola, mais tarde no ocaso da sua vida governador de Coimbra, José de Aquino Guimarães e Freitas viria a publicar aquele que se mostra cronologicamente o mais antigo trabalho singular de história de Macau.
Tendo visitado e cumprido funções militares no enclave português do Sul da China nas primeiras décadas do século XIX, por volta de 1820 a 1825, Freitas associou ao interesse curioso e científico sobre o território uma frequência admirada, entre elogio político e conservadorismo social, pela forte «autoridade» exercida em Macau pelo poderoso ouvidor e conselheiro Miguel de Arriaga Brum da Silveira. Intitulada Memória sobre Macao, estampada em Coimbra pelos prestigiados prelos da Real Imprensa da Universidade, em 1828, a obra de José de Aquino oferece ao longo de noventa e quatro rápidas páginas um estudo organizado de acordo com os modelos da iluminada erudição epocal e da sua experiência pessoal, militar e políticas no enclave macaense.
Trabalhando na sua especialidade de artilharia no batalhão português de Macau sob as ordens do Brigadeiro Dionísio de Melo Sampaio, José de Aquino Guimarães e Freitas apenas cumpriria uma tarefa prestigiante no território quando, em 1822, foi nomeado pelo governador e Leal Senado para representar em Lisboa a cidade na cerimónia de felicitações pelo regresso do Brasil de D. João VI.Desconhecem-se a sua vida e actividades nas diferentes colónias portuguesas em que exerceu funções militares, mas é possível que José de Aquino tenha feito parte desse muito pouco estudado grupo de soldados portugueses que, hostil à independência do Brasil, foi sendo distribuído por outros espaços coloniais mantendo forte desconfiança pelos rumos do liberalismo em Portugal.
A sua estreita frequência dos ideários conservadores do ouvidor Miguel de Arriaga, paradigma do absolutismo do Antigo Regime em Macau, autoriza a adiantar estas perspectivas. Mais importante é destacar a prioridade da Memória sobre Macao, enquanto primeira grande tentativa de redigir uma história do território macaense. Normalmente, como se sabe, os manuais e guias da história de Macau consagram o trabalho do sueco Anders Ljungstedt, Um Esboço Histórico dos Estabelecimentos dos Portugueses e da Igreja Católica Romana e das Missões na China, estampado em 1836, como o mais antigo trabalho autónomo de história de Macau. Publicado inicialmente em inglês, este estudo aparece traduzido em português pelo periódico Echo Macaense, entre 1 de Agosto de 1893 e 13 de Dezembro de 1896, mas oferecendo aos leitores apenas a primeira parte do livro. A seguir, em 1909, esta versão parcial da obra de Ljungstedt foi incluída numa nova publicação dedicada à divulgação de trabalhos respeitantes à história de Macau, editados pela Imprensa Nacional.
Mais tarde ainda, a Direcção dos Serviços Diplomáticos, Geográficos e da Marinha do Ministério das Colónias veio a publicar esta colectânea através de prelos lisboetas, em 1921. Uma divulgação praticamente oficial que fez com que a obra de Ljungstedt dominasse a fundação de uma historiografia macaense ao longo de quase setenta anos até ao aparecimento do referencial Macau Histórico de Montalto de Jesus. Não são, todavia, assim as lições incontornáveis da cronologia. Anterior ao Esboço de Ljungsted publicou-se esta Memória de José de Aquino Guimarães e Freitas. Naturalmente, com desigual sucesso e muito menos impacto intelectual. A investigação do seu pequeno livro talvez ajude a explicar o quase completo esquecimento em que caiu o primeiro ensaio de história de Macau.A abrir a obra, como era normativo, esclarecem-se as ordens da geografia e da topografia. Determinada no primeiro capítulo a posição geográfica e resolvido com brevidade no capítulo seguinte o tema evidente da extensão do território — “uma escassa légua de comprimento, sobre meia, ainda mais escassa, em a sua maior largura” —, a memória disserta com mais interesse e observação acerca da natureza do solo. O texto capitular esclarece que Macau se implanta em “terreno próximo do mar e minimamente arenoso”, sendo a “terra vegetal em as eminências quase nula e a que encerra os sítios planos não tem mais de três pés de espessura”, notando-se ainda ser “acamada numa base argilosa que terá quando muito de 12 a 15 pés de profundidade”. Utilizando uma estratégia de curiosidade pessoal recorrente em todo o volume impresso, aponta-se ainda nesta secção existirem “alguns jardins achegados às moradas dos habitantes cristãos, mas todos acanhados”, com a notada excepção da “quinta do conselheiro Manuel Pereira”.
O capítulo quarto versando a ictiologia de Macau resolve-se em duas linhas, sublinhando que “o mar é prodigiosamente piscoso, e o peixe da melhor qualidade no Inverno como no Estio”. [6] Salta-se, em continuação, para o quase romântico capítulo das fontes aquáticas, lendo-se em três apertadas linhas que, infelizmente, “só duas possui a ilha e ambas colocadas fora dos muros da cidade”, mas, em contraste, “a água é primorosa”.  Desaguando no tema do porto, a memória continua a esclarecer sucintamente que este é
“formado pelo rio que desce de Cantão”, não oferecendo “capacidade para navegação de grande porte”.
Quanto ao clima, o autor confessa singularmente ter encontrado “um dos melhores da Ásia”, conseguindo mesmo testemunhar “uma não ordinária longevidade não só entre os indígenas, senão ainda em o mesquinho número dos portugueses, não obstante os poucos sacrifícios que fazem à sobriedade”. Ocasião para se abrir um oitavo capítulo dedicado às moléstias, diagnosticando que, apesar de não se encontrar “nenhuma endémica”, a cidade viu-se atacada, desde 1820, pela “cholera morbus” que se mostrou “precursor do flagelo moral, que a despenhou na borda do túmulo — a imunda Ochlocracia”. Mais calmamente, o aspecto topográfico organiza um território de “fisionomia pitoresca e aprazível”, ao mesmo tempo que, em matéria de edifícios, celebra o décimo capítulo que “em nenhuma parte do mundo, proporção atendida, há tão grande número de templos e conventos”, pese embora a indignidade do hospital e a regularidade limitada das habitações contrastando com “o luxo das mobílias que em muitas observei, sem invejar, é prodigioso, e não dúbio termómetro da prosperidade do País”.
Seguem-se, como normalmente acontece em estudos deste período oitocentista, os capítulos dedicados à população, estendendo-se das estimativas quantitativas à investigação moral. Esta associação entre considerações éticas e demografia assumia em muitos pensadores e ensaístas europeus do século XIX, na linha do trabalho fundacional de Thomas Malthus, uma dialéctica verdadeiramente causal, assentando a ordem das estruturas populacionais não em factores sócio-demográficos, mas antes nos constrangimentos impostos pelos valores e «estados» civilizacionais agitados pelos novos ventos da industrialização. A população cristã macaense é avaliada em Abril de 1822, dividindo-se pela seguinte dispersão espacial: na freguesia da Sé apontam-se 289 homens maiores de 14 anos, 251 menores, 1342 mulheres e 248 escravos; reunia a freguesia de
S. Lourenço 258 homens maiores de 14 anos, 170 menores, mais 1058 mulheres e 236 escravos; na pequena freguesia de S. António arrolavam-se somente 59 homens maiores, 52 menores, 301 mulheres e 53 escravos. Quanto à população chinesa — significativamente afastada de forma homogénea da categorização anterior de «cristã» — a memória acredita ser já muito superior às 8000 pessoas estimadas no começo do século
XIX, crescendo devido ao “subsequente desenvolvimento do comércio” somado à “indiscreta tolerância que lhes permite a criação de novas casas e arruamentos" (...)
Apesar de acompanhar esta normativa narrativa da fundação de Macau, perfeitamente estabilizada e oficializada nos primeiros anos do século XIX, o esforço apresentado como de «investigação» pelo nosso autor referencia ainda outras opiniões e inquéritos «locais», mergulhando as origens do estabelecimento português mais longe no tempo, entre 1521-22. No entanto, apesar dos seus esforços e leituras, incluindo uma longa entrevista com o auxílio das “transcendentes luzes do benemérito Conselheiro Arriaga”, a sua obra não havia logrado esclarecer rigorosamente as origens históricas da presença portuguesa em Macau, restando a «fama» da legenda do auxílio português aos mandarins de Cantão contra os ataques de pirataria em meados do século XVI e fixando-se o que José de Aquino considerava a mais importante lição histórica de Macau justificando inteiramente a redacção e impressão da sua memória: “conhecermos e aproveitarmos o que actualmente possuímos”.
Prosseguindo nesta divulgação do «conhecimento» de Macau, o capítulo dezassete da obra trata com excessiva brevidade do Governo do território, praticamente não revisitando a sua história para preferir exornar o papel central do Senado eleito com dois juizes ordinários, três vereadores e um procurador, dirigindo a vida política de Macau com a assistência do ouvidor e a «presidência» do governador e capitão-geral. A memória de José de Aquino exagera mesmo a centralidade e autoridade do papel do governador, discriminando a sua burocracia: “tem um Escrivão, sem voto, com o titulo de Alferes Mór da Cidade, que tambem o é da Fazenda; e bem assim um tesoureiro; aquele inamovível, este temporário”. A administração judicial aparece igualmente sumariada com economia, apenas se sublinhando a acção da magistratura civil e da Junta das Justiças, um orgão mobilizando as principais autoridades políticas de Macau, sobretudo em períodos de crise ou para enfrentar acontecimentos políticos e judiciais complexos". (...)
Coroando a sua memória, o nosso autor ainda nos oferece um vigésimo primeiro capítulo sobre a “Maneira de comerciar em Macau». Trata-se de procurar, nem sempre esclarecidamente, mobilizar algumas vantagens da navegação e comércio macaenses, transformando mesmo as restrições em oportunidades e o controlo imperial sínico em estabilidade.
No interior do enredado sistema alfandegário de Macau, sujeito à estreita vigilância das autoridades chinesas, José de Aquino descobre vantagens em relação ao trato portuário sediado em Cantão, incluindo amplas possibilidades de desenvolvimento de várias formas de contrabando: Aqui, quanto a navios, há uma medição menor, e ficando com numeramento, isto é, alistado no número dos 25, de que tem privilégio a Cidade, não paga das segundas viagens mais do que a terça parte do que pagou pela primeira, e isto enquanto durar o navio, tendo o Proprietário ou Agente o cuidado de tirar o Pautão que, à maneira de Patente, faz passar o Governo Imperial para fazer conhecer o destino da embarcação, supondo sempre a mesma oficialidade, desde o começo do Estabelecimento. E, quanto à carregação, fica na Alfândega e vende o carregador quando, e como lhe faz mais conta, sem a intervenção vexatória de Anista, com grandes vantagens para a permutação, assim pelos menores direitos de despesas que em Cantão, como pela facilidade que hão os Chins de fazer o contrabando e iludir os encarregados das suas Portagens, despachando as mercancias para diferentes Terras do Império, donde a final as introduzem em Macau, em cuja Alfândega não há direitos, nem de entrada, nem de saída. Esta posição privilegiada de Macau que, estendendo-se, afinal, do compromisso político às particularidades da circulação comercial, permite a José de Aquino concluir a sua proposta de uma Companhia capitalista portuguesa para a Ásia enquanto rede associada de enclaves portuários polarizada pelas vantagens do território macaense. (...)
Excertos de um artigo da autoria de Ivo Carneiro de Sousa - "Um autor e uma obra para a memória da presença colonial portuguesa em Macau e no mundo asiático: A “Memória sobre Macao” de José de Aquino Guimarães e Freitas

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