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sábado, 12 de julho de 2014

Hung Heng: uma loja que vende côcos há mais de um século

São nove e meia da manhã quando avançamos pela rua da Tercena, conhecida em chinês pela rua da Fruta, para visitar a loja Côcos Hung Heng, conforme combinado com o senhor Lei, no dia anterior. Uma loja com 142 anos manteve-se até hoje, apesar de todo o comércio da rua ter desaparecido e de sofrer uma renovação após a termos visitado anteriormente. Nesse primeiro contacto fala-nos de ser este um negócio de família, que começou em 1869, sendo o casal Lei, a quarta geração, que desde 1987 toma conta desta loja. O negócio dos gelados atrai muitos jovens, sobretudo de Hong Kong que vêm com o conhecimento transmitido pelos amigos e desviando-se dos circuitos normais dos turistas, aqui se deslocam para provar o saboroso sorvete de coco. De facto, o sabor do coco era intenso e muito agradável mas, a nossa conversa com o senhor Lei, após olharmos para os livros de uma estante, voltou-se para a porcelana. É o tema preferido do senhor Lei e pela quantidade e qualidade dos livros, percebe-se ser um entendido na matéria. Com os olhos a brilhar, aponta para o andar de cima dizendo-nos que ainda tem muitos mais livros. Enquanto a conversa decorre, a sua esposa atende os muitos clientes que ao fim de semana, em grupos, aqui chegam e rapidamente o estoque esgota na arca frigorífica. O dia está a acabar e é hora de fechar. Por isso, combinamos para o dia seguinte assistir ao trabalho com os cocos.
Enquanto com uma máquina eléctrica, a fazer rodar uma lâmina dentada a sair entre tábuas numa pequena banca, vai abrindo ao meio os cocos, que se apresentam como bolas castanhas, o sr. Lei fala-nos sobre a história da loja. Diz-nos que há cem anos, a loja comprava na Malásia os cocos e especiarias e vendia-os para a China Continental. Nesse tempo, o bazar onde a rua da Tercena se encontrava era a zona comercial por excelência.
O negócio era próspero, vendiam-se por dia centenas de cocos e na loja trabalhavam mais de 10 pessoas. O avô tinha-lhe referido que naquele tempo não se dedicavam ao comércio de retalho, mas apenas à importação e exportação. Situação que se manteve até ao início da guerra do Pacífico (1937-45), quando o negócio durante três anos e oito meses sofreu muitos reveses. Pagava-se antecipadamente os produtos e por vezes estes não chegavam, outras vezes exportava-se, mas depois não se recebia.
O trabalho de partir os cocos está feito e começa a retirar o mais possível o miolo branco do interior, que está agarrado à castanha casca grossa exterior. Com o miolo branco do interior, se este estiver maduro, o mais duro, transforma-o em granulado e se ainda estiver mole, coloca-o na máquina de espremer de onde extrai o sumo. Distraindo-se com a conversa, por longos momentos esquece-se do trabalho que está a fazer.
“Em 1949, com o estabelecimento da República Popular da China, esperávamos que o negócio de novo voltasse ao que era. Mas muitas lojas, como os grandes armazéns que vendiam tecidos tiveram que encerrar e as outras lojas de negócios mais pequenos, foram fechando uma a uma. Tivemos que nos adaptar e agora pode ver na rua que, com uma longa história, apenas existe a nossa loja, das muitas que havia naquele tempo. Como é que ainda conseguimos estar abertos? Não é porque tenhamos dinheiro para cobrir os prejuízos mas, porque ajustámos o negócio ao tempo e às necessidades”, explica.Aqui o senhor Lei usa o exemplo do que ocorre nos dias de hoje: “Os gelados, que agora vendemos, começaram a ser feitos no tempo dos meus pais em 1963. Tudo começou devido à quantidade de cocos que tínhamos em armazém e que não conseguíamos vender. Para não se estragarem, os meus pais começaram a vender o leite de coco, assim como a ralar a popa do coco. Quanto aos gelados de coco tiveram a ajuda de um amigo, que há longo tempo fazia e vendia os sorvetes na rua, e que lhes ensinou a técnica. Actualmente são estes gelados que ficaram como a marca da loja, algo que nunca imaginámos”.
Numa máquina, o senhor Lei rala o miolo duro do coco, enquanto noutra coloca a espremer o miolo mais mole, daí saindo um líquido espesso. Parece que tudo está cronometrado já que, quando o fio do sumo acaba de pingar, chega um empregado de um restaurante tailandês que o vem buscar para os cozinhados. É uma prática diária, já que serve muitos clientes da restauração (restaurantes, hotéis e lojas de bolos) com sumo de coco e coco ralado. Com o cliente servido e após este se ter ido embora, aponta para a parede do fundo mostrando-nos uma tabuleta em madeira de cor preta, com os carateres em folha de ouro. Era o original reclame da loja, que já tem 142 anos.
“Nestes últimos 10 anos, as transformações em Macau são enormes mas, como podem ver, esta zona pouco ou nada evoluiu, continuando como que adormecida. Ainda bem, já que por aqui vivemos com tranquilidade e sem grandes reboliços, como os que se encontram noutras partes de Macau. Na rua de S. Paulo é impossível por lá andar”, indicou o senhor Lei.
O trabalho de uma manhã está a terminar. Mais ou menos quatro a seis litros de sumo de coco recolhido para fazer os gelados, que não necessitam de nada mais para ter um sabor fresco e intenso. Por isso é que estes gelados são do agrado de tantos turistas que fazem um desvio da rota turística para aqui virem saborear uma tal guloseima.
“Continuamos a importar os cocos da Malásia, porque segundo a nossa experiência são os que têm melhor sabor. Também passámos a fazer sorvetes com outros sabores como taro, manga (apenas feitos sazonalmente, no período em que estas frutas aparecem) e chocolate”.
Nisto pára uma motorizada à frente da loja e, pela maneira como fala com o senhor Lei, são amigos de longa data. Pede dois copos de gelados, dizendo que toda a noite os dois filhos o aborreceram pois queriam gelados. O sr. Lei entrega-lhe quatro copos de gelado, cobrando apenas dois, e recomenda para guardar o resto no frigorífico. Depois, virando-se para nós, conta que era um seu antigo vizinho e, quando ainda criança, era ele que chorava à noite para os pais lhe darem um gelado; agora são os seus filhos.
“Nos dias que correm, ninguém quer saber destes pequenos negócios mas, nunca se sabe o que nos reserva o amanhã. Já não trabalhamos por dinheiro, mas por prazer e o que nos interessa é continuar este negócio, que sempre foi da família. Os nossos filhos já não estão interessados em o continuar, mas enquanto nós existirmos, este será o nosso trabalho”, assegurou.
Artigo da autoria de José Simões Morais publicado no JTM de 30-8-2011

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