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segunda-feira, 19 de maio de 2014

Xavier Roquete, Marta Merop e Santa Casa

O que hoje se conhece por Travessa do Roquete começou por se chamar Rua do Roquete. Vai do Largo do Senado, ao lado do edifício da Santa Casa, até à Sé. Francisco Xavier Roquete nasceu em Lisboa e era piloto da praça de Macau. Morreu em Calcutá (ca. 1826) e deixou à Santa Casa uma herança de 62.220 patacas, o maior legado de sempre. O testamento é de 1812.
Macau foi durante os primeiros três séculos da sua existência uma terra democrática por excelência. E - ó ironia das coisas - foi com o advento do liberalismo, que esse regime democrático se afundou para não mais se erguer. Durante três quartos de século (1553-1623) não houve aqui governador; e quando este apareceu era um simples Peng-Táu, ou seja comandante militar.
O Senado, eleito anualmente, era o órgão da administração. A S. Casa da Misericórdia, mais velha que o Senado uns 15 anos, não recebeu, antes deu lições democráticas a este. As eleições eram inteiramente livres e à mesa eleita é que estava confiada a assistência pública.
A Misericórdia existia em todo o espaço português, quer metropolitano, quer ultramarino. A de Lisboa, fundada pela rainha D. Leonor sob a inspiração do bispo Contreiras, tinha o seu regulamento, que foi o modelo de todos os outros.
Macau possuía um regulamento próprio; mas quando em 1626 os irmãos examinaram os compromissos das Misericórdias da Lisboa e de Goa, acharam que o seu era «muito diminuto, confuso e indigesto» e então resolveram reformá-lo. Em Janeiro de 1627, foram eleitos 12 adjuntos que com os outros irmãos resolveram adoptar o de Goa, mas com ligeira modificação, conforme «a qualidade e usança da terra». Hoje diríamos, «conforme os condicionalismos da terra».
Quais eram esses condicionalismos? A vida económica e financeira dependia única e exclusivamente do comércio, de tal forma que, segundo o dizer pitoresco dum bispo desta diocese, «tudo em Macau comerciava, inclusive os mortos, pois os legados pios eram ordinariamente deixados com a condição de andaram a risco de mar.
Que quer dizer risco de mar? As instituições públicas, quer civis quer religiosas, e os indivíduos particulares empregavam o seu dinheiro no comércio marítimo com lucros bastante compensadores. Estes eram tão elevados que muita gente contraía empréstimos com 20 e 25% de juro para colocar esse dinheiro a risco. Ora este risco era muito real, pois o naufrágio duma nau de prata ou o seu apresamento pelos holandeses, um assalto de piratas a um barco, uma viagem desastrosa significava a ruína de muitos, reduzindo os ricos à miséria.
Os chefes de família andavam embarcados, deixando as suas casas abandonadas por 6 a 8 meses cada ano. Quando o barco se perdia, entrava nesses lares a viuvez e a orfandade com todo o seu cortejo de misérias físicas e morais. Estes condicionalismos chamaram desde o início a atenção da democracia macaense por meio do seu democrático Senado. Foi este, que, nos direitos da cidade, consignou percentagem para a Misericórdia, o Convento de S. Clara e Ordens Religiosas. Fundaram-se os cofres dos Pobres, do Senado, do Cabido, etc., para acudir a esses casos desesperados. Muita gente deixava legados à S. Casa para com os juros socorrer os pobres e os órfãos, para dotes de casamento de raparigas pobres e ainda para missas, festas, funerais, cera e azeite para a lâmpada do SSmo. etc. Povo essencialmente religioso, providenciava não só às necessidades materiais, mas também às espirituais da comunidade.
Foi para isso que a Misericórdia instituiu os seus fundos, segundo escreveu o nosso saudoso amigo Dr. José Caetano Soares: «Quer dizer, a idea de criar fundos de previdência a que os moradores pudessem recorrer por meio de empréstimos, era não só reconhecida, como até apoiada por todos, e desde que o Senado, órgão principal da administração assim dava o exemplo, lógico seria, que proceder análogo fôsse também adoptado na Misericórdia, tanto mais que cedo os recursos acusaram relativo desafôgo, devido em parte à percentagem anualmente consignada nos direitos da cidade, mas na maior parte, a legados e outas doações particulares.
Ora, se quanto à Misericórdia, o sistema, mesmo em princípio não deixava, já então, de ser reputado extremamente perigoso, na prática, dada a maneira como durante algum tempo ia ser aplicado, com honestidade e cautela dignas do maior elogio, grande soma de benefícios trouxe de facto à Instituição, que nos fins do século XV possuía já em giro para cima de 50.000,(tael, unidade de peso equivalente a 37,5 gr. de prata fina, ou seja na moeda local de hoje, $1,55). Verdade é, que à dedicação e escrúpulo com que os assuntos da Misericórdia eram assim tratados, não podia ser estranha a cuidadosa escolha de ordinário feita nas eleições das Mesas, constituí das quase sempre pela gente mais abastada e presididas em geral por individualidades de categoria, no lugar de Provedor, sendo frequentes os Capitães Gerais e os Bispos.
É deste conjunto de circunstâncias em extremo favoráveis, que grande desenvolvimento advem naturalmente aos serviços, a abranger em dentro em pouco: assistência a doentes dos 2 sexos no «Hospital dos Pobres», protecção a infância na «Casa dos Expostos», asilo para lázaros, assistência domiciliária com dinheiro e géneros aos velhos e desvalidos, recolhimento para órfãos e desamparadas, além de tantos actos e funções meramente de culto, o que era seguramente menos importante. Ainda à influência e auxílio da Misericórdia ficou a terra a dever o fisico da cidade, contratado pelo senado, mas ao dispor de quem desde logo ia ser pôsto o hospital e a competente farmácia».
Ljungsted, no seu Historical Sketch pp. 40-41, escreve acerca da S. Casa:
«Dona Leonor, esposa do rei D. João II, fundou em Lisboa em 1458 uma Irmandade de misericórdia, conhecida pelo nome de «Confraria de Nossa Senhora da Misericórdia». O alicerce da Santa Casa da Misericórdia, em Macau, foi lançado em 1596, e o seu primeiro provedor foi Melchior Carneiro, governador do Bispado de Macau. Auxiliar os indivíduos cujos meios de subsistência eram mui pequenos e insuficientes para manter uma família numerosa, socorrer os doentes pobres de certa respeitabilidade e aqueles que com relutância sairiam à rua para pedir esmola, sustentar órfãos e enjeitados-- tais são os sagrados deveres que esta digna sociedade professa cumprir. Em todos os paises onde os portugueses se estabelecem, logo que eles têm uma igreja, pensam em formar instituições iguais àquela de que falamos.
Em 1617 foram formuladas novas regras para a sua administração e em 1649 foram elas confirmadas por D. João IV, que tomou a Santa Casa da Misericórdia sob a sua imediata protecção. Em conformidade com o compromisso de 1627, os membros colectivos nomeiam eleitores, os quais escolhem um provedor, um secretário e tesoureiro, com dez vogais para formar uma Mesa de treze. Os indivíduos assim escolhidos têm liberdade de regeitar o cargo ou de aceitar as suas respectivas funções pelo tempo de um ano, que ter mina a 3 de Julho. O provedor, com o apoio da maioria da Mesa, toma certas resoluções; mas em alguns casos, tais como a eleição de novos membros, precisa-se da reunião da assembleia geral. Há cerca de 15 anos só os portugueses ou os seus descendentes podiam ser admitidos; mas desde 1821, seguiu-se o sistema contrário.
A Mesa reune-se duas vezes cada semana numa sala espaçosa, não longe da sua igreja dedicada a Nossa Senhora da Misericórdia. Os membros desta irmandade não estão obrigados a contribuir para a formação de fundos produtivos; eles tratam apenas da administração. Certos artigos volumosos do comércio são sujeitos ao pagamento de um imposto aduaneiro adicional de 1%, sendo metade deste rendimento recebida pelo tesoureiro no fim do ano; a outra metade vai, como dissemos, para o mosteiro de Santa Clara. Em 1833 esse rendimento subiu a 3.806 taéis; além disso, a Mesa administra todas as somas que são deixadas (à Santa Casa) para fins bem definidos por escrito por pessoas vivas ou defuntas. Executar conscienciosamente a vontade do testador ou doador é um dever inviolável de todos os homens honestos, mas é ainda uma vantagem para uma associação caritativa. Porém há queixas amargas dum comportamento contrário:--«O provedor dissipa e esbanja o dinheiro deixado pelos testadores em benefício das suas almas, e os legatários são privados dos seus bens».
Aceitam-se riscos de mar sem prudência, e por uma criminosa cumplicidade na cobrança perdem-se tanto o capital como os juros. Uma irmandade que quiser esforçar-se para se ilibar destas acusações, deve cumprir a sua obra de sustentar crianças e órfãos; de salvar da morte, em troca de insignificâncias dadas aos desgraçados pais, as crianças chinas; de auxiliar os pobres, que forem membros respeitáveis da comunidade, com socorros periódicos em dinheiro ou arroz, bem como com medicamentos nos casos de doença».
As crianças enjeitadas confiadas às Canossianas
Em 1876, a Sta. Casa confiou os Expostos às Filhas de Caridade Canossianas, que tomaram conta deles, a princípio no próprio edifício dos Expostos e, mais tarde, no Asilo da Sta. Infância, em Sto. António.
Os termos do acordo, redigido pela superiora, foram os seguintes: 1º Que a contribuição anual da Santa Casa não será menor de 750 patacas anuais, só para sustento e vestuário. Qualquer despesa extra ficará a cargo da Sta. Casa.
2.º Que a Comissão Administrativa se obriga a receber de volta as enjeitadas, se por qualquer eventualidade as religiosas canossianas se retirarem de Macau, ou quando as enjeitadas, uma vez chegadas a idade de se emanciparem, quizerem voltar à Santa Casa, ou se esta Administração faltar ao pagamento devido da anual contribuição.
3.º Que a contribuição não será diminuída, no caso de alguma morrer ou ser colocada a servir.
4.º Com a dita contribuição obriga-se esta congregação a sustentar não menos de 20 enjeitadas, deixando toda a faculdade de substituir outras, que sejam, porém, de bons costumes.
5.º Em caso de doença o custo dos medicamentos será à custa da Santa Casa e se o mal for contagioso será permitido enviá-la ao Hospital da Misericórdia.
6.º A congregação obriga-se a dar educação gratuita às enjeitadas, segundo a condição delas, isto é, instrução catequística, estudo simplesmente elementar, trabalhos de agulha e manuais. Julga-se inútil pôr aqui que as enjeitadas... devem vir providas das coisas necessárias para uso próprio».
A 8-9-1876, os expostos da S. Casa da Misericórdia foram transferidos para a Casa de Beneficência das Irmãs Canossianas.
Travessa do Roquete no século 21
Uma grande benfeitora da S. Casa e dos Conventos
Marta Merop é a protagonista dum romance de Austin Coates, intitulado «City of Broken Promises»--«A Cidade das Promessas Quebradas», ou seja, Macau.
Na introdução desse romance, que pretende ser histórico, lê-se: "Tendo por teatro a antiga colónia portuguesa de Macau na costa da China do Sul, durante o período áureo da Companhia das Índias Orientais e do comércio do chá, City of Broken Promises conta a história duma das mais famosas mulheres nos anais de Macau. Chinesa de nascimento, abandonada nos degraus duma igreja poucos dias depois de vir ao mundo, Marta Merop foi vendida para a prostituição na idade de treze anos. Analfabeta, sem nada de seu, e obrigada pelas rígidas convenções dos tempos a permanecer perpetuamente emparedada em casa do seu dono, tornou-se a mulher mais rica da costa da China e a maior benfeitora pública de Macau. Como ela conseguiu isto, é o que nos conta esta autêntica novela dos primórdios do comércio ocidental com a China em que nenhuma mulher europeia podia entrar na China e em que a Companhia das Índias Orientais proibia aos seus empregados casar com mulheres indígenas. Nas condições ambivalentes de Macau multi-racial, Austin Coates reconstrói vividamente os anos cruciantes da vida de Marta, de 1780 a 1795, durante os quais ela foi a amante dum oficial da Companhia das Índias Orientais de descendência anglo-holandesa, Thomas Kuyek van Merop, filho do primeiro presidente da Companhia Lloyd e primo de Jeremias Bentham".
O livro de Coates é um romance empolgante; mas tudo o que diz acerca da sua heroína nada tem de verdadeiro, senão a sua existência. Acresce que ela não era amante, mas legítima esposa de Thomas Merop. Marta declara no seu testamento que casara à face da Igreja com o inglês Merop. Este morreu cedo. Adoecendo gravemente em Macau, embarcou num navio, que o conduziu a Londres, onde faleceu. Sendo riquíssimo, deixou grandes somas de dinheiro às suas duas irmãs e a dois primos e a Mr. Rous, Administrador dos seus negócios em Londres. No seu testamento declara: "A minha querida esposa Marta da Silva deixo a soma de dez mil libras e a minha casa na Rua do Hospital e toda a mobília. Se ela mudar de ideias de passar a vida em Macau e vier para a Europa, deve receber mais três mil libras". Ela não mudou de ideias e passou toda a vida em Macau, onde faleceu na sua casa, na Rua do Hospital, a 8 de Março de 1828, sendo sepultada na capela-mor de Convento de S. Francisco. No seu testamento, lavrado a 3 do mesmo mês, diz: "Declaro que sou moradora e natural desta Cidade do Nome de Deus na China, filha de Pai e Mãe gentios. Item declaro que fui casada com Thomas Merop ora defuncto in facie Ecclesiae, segundo manda a Santa Madre Igreja. Item declaro que deste Matrimonio não tive filho algum». Marta Merop amava a sua terra de Macau, à qual legou toda a sua fortuna e amava também Portugal. Basta dizer que, quando a 18 de Outubro de 1805, se fez em Macau uma subscrição para auxiliar o Governo Português, o governador de Macau contribuiu com 500 patacas ao passo que Marta deu mil.
A S. Casa da Misericórdia quis manifestar o seu perpétuo reconhecimento a esta sua insigne benfeitora, mandando colocar o seu retrato, a corpo inteiro, na sala das sessões.

José Tomás de Aquino, em carta dirigida à Mesa Directora da S. Casa, pedia desculpa quanto à demora dos retratos de Francisco Xavier Roquete, que legou $62.000 a essa instituição e de Marta da Silva Merop; os quais foram executados pelo retratista china Vo Qua, «mas sob o meu contorno e direcção», diz ele. Foi esta senhora uma das mais ricas, senão a mais rica, que teve esta cidade e, sem dúvida, a sua mais generosa benfeitora. Ainda hoje a S. Casa e o Colégio de S. Rosa de Lima continuam a beneficiar da sua generosidade. Bem merecia que o seu nome figurasse numa via pública, como figura o de Francisco Xavier Roquete na «Travessa do Roquete».
Largo do Senado; década 1970. Foto Lei Chiu Vang
Santa Casa em 1915: é ainda visível no topo da fachada o busto de D. Belchior Carneiro. Foto M. Russel
Asilo de órfãs
Ljungstedt escreve: «A irmandade da Misericórdia pensou desde o princípio em instituir um estabelecimento desta espécie, mas não encontrou meios para o tornar durável. Em 1726 fundou-se uma instituição temporária para trinta viúvas e órfãs que foram aí recolhidas e sustentadas; as órfãs eram instruídas para serem mães de família. Uma das órfãs - a mais necessitada - era anualmente escolhida para receber um dote nupcial, que consistia em meio por cento sobre os direitos de importação, que o Leal Senado punha de parte para esse fim. Esse meio por cento subiu a 406 taéis, mas em 1726 chegava apenas a 60 taéis. Desde essa época ficou suspensa a instituição até 1782, quando a irmandade da Misericórdia fez uma proposta para estabelecer um novo asilo de acordo com o Leal Senado, proposta esta que foi aceita. Deu o Senado quatro mil taéis e o nome de Recolhimento de Santa Rosa de Lima.  Este capital aumentado com generosos donativos e legados, é dado a juros a risco de mar. Conforme o produto desses juros regulava-se o número de meninas, que podiam ser admitidas. Nenhuma era admitida sem o consentimento o bispo que é quem nomeava um capelão (pois há um capela na casa), um inspector, e uma mulher de boa reputação para regente da comunidade. Uma mestra ensina a religião, ler, escrever e obras de agulha. As meninas cujos pais podem pagar pelo sustento, alojamento etc., são também admitidas quando há lugares vagos e o bispo não faz objecções. As órfãs ai educadas podem, com o seu consentimento, aceitar o lugar de mestras em qualquer família, bem como propostas de casamento (quando se apresenta uma proposta conveniente). Em tal caso era concedido um dote, mas a quantia desse dote dependia das receitas e da boa vontade do bispo.»
Nota: texto datado de 1974 da autoria do padre Manuel Teixeira
Antigo asilo órfãos Santa Infância

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