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sábado, 4 de janeiro de 2014

Macau nas Cortes Constituintes de 1821

O magno trabalho das Cortes Constituintes de 1821, sob a presidência de Manuel Fernandes Tomás, reunidas no Palácio das Necessidades desde 24 de Janeiro de 1821 até 4 de Novembro de 1822, foi o de dar sentido a uma respeitável nação com uma velha história, servida por uma anacrónica organização senhorial e uma deficitária máquina produtiva. Numa das épocas mais sombrias da nossa história colectiva, pouco mais de meio século após o grande terramoto de 1755, com o País saqueado e martirizado pelas três invasões francesas [Junot, em 1807; Soult, em 1809; Massena, em 1810, com a Família Real no Brasil desde 1807 e a (in)gerência inglesa de William Beresford, o País, dizia, encontrou forças para reerguer-se e reorganizar-se, enfim, retomar a soberania sobre si próprio na condução do seu destino. Um turbilhão de problemas, com perdas duríssimas em vidas e património, a juntar às dissensões internas com os mártires da pátria, como ficou conhecido o processo de Gomes Freire de Andrade e mais doze notáveis.
Nessa específica conjuntura se instalou o debate sobre a hipotética alienação de parcelas do império e sobre a soberania e a filosofia política da unidade e integralidade territorial. Macau esteve involuntariamente presente nos debates.
Recorde-se a fisionomia de Portugal em 1821: “A Nação Portuguesa é a união de todos os Portugueses de ambos os hemisférios. O seu território forma o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e compreende: I- Na Europa: o reino de Portugal, que se compõe das províncias do Minho, Trás-os-Montes, Beira, Estremadura, Alentejo e reino do Algarve, e das Ilhas Adjacentes, Madeira, Porto Santo e Açores ; II- Na América: o reino do Brasil, que se compõe das províncias do Pará e Rio Negro, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Sergipe, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, S. Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás, Mato Grosso e das Ilhas de Fernando de Noronha, Trindade e das mais que são adjacentes aquele reino; III- Na África Ocidental, Bissau e Cacheu; na Costa de Mina, o forte de S. João Baptista de Ajudá, Angola, Benguela e suas dependências, Cabinda e Molembo, as Ilhas de Cabo Verde, as de S. Tomé e Príncipe e suas dependências; na Costa Oriental, Moçambique, Rio de Sena, Sofala, Inhambane, Quelimane e as Ilhas de Cabo Delgado ; IV- Na Ásia: Salsete, Bardez, Goa, Damão, Diu e os estabelecimentos de Macau e das Ilhas de Solor e Timor”. Finalmente referia-se  que “a Nação não renuncia o direito que tenha a qualquer porção de território não compreendida no presente artigo”.
O deputado Manuel Borges Carneiro, esclarecido legislador e teórico do liberalismo, na sessão de 27 de Julho das Cortes Constituintes de 1821, coloca este desafio aos seus confrades: “Temos pois que se deve estabelecer na Constituição pelas razões, que acaba de apontar o ilustre Preopinante, que às Cortes pertence o alienar parte do território. Tenho porém uma reflexão a fazer, e vem a ser que nem só no caso de necessidade mas também no caso de utilidade. Eu não considero só o caso de necessidade como por exemplo uma guerra, mas trato também do caso de uma utilidade evidente. Suponhamos por exemplo que por convenção, ou tratado que se julga mais útil, que nós abandonemos a nossa ilha do Príncipe ou Macau, que havia um tratado que julgara isto muito útil, fazer uma permutação e, em consequência disto abandonar o que acabei de dizer para receber uma porção mais conveniente. Porque razão não podemos alienar no estado de conveniência e utilidade parte do nosso território ?”.
A discussão tomou conta das bancadas, com os deputados Anes de Carvalho, Manuel António Carvalho, Ferreira Borges, Bispo de Beja, Serpa Machado, Soares Franco, Castelo Branco e Xavier Monteiro a esgrimirem argumentos contraditórios com grande veemência. O deputado Castelo Branco, refuta a tese de Borges Carneiro, centrando-se na defesa dos direitos dos cidadãos: “eu não poderei jamais suportar, que se dê a uma Nação a ideia de que é lícito, de que é possível dividir uma parte do seu território, isto é deixar em desespero essa parte de cidadãos, porque a alienação dessa parte leva consigo uma porção de concidadãos”. Contudo, não fecha de todo a porta: “se as nossas desgraçadas circunstâncias nos levarem para o futuro a esse desgraçado fim, então o Governo, então a Assembleia Legislativa da Nação decidirá o que se deve fazer neste caso. Entretanto não vamos consignar na nossa Constituição um princípio de tal natureza”.
Três dias depois, na sessão de 30 de Julho, Borges Carneiro, aperfeiçoa a sua proposta: “Deve legislar-se na Constituição, que o território da Nação Portuguesa pode ser alienado pelas Cortes, concorrendo para isto duas terças partes dos Deputados, e senão diga-se: que aproveitou, que os Espanhóis tivessem declarado que o seu território era inalienável, se eles há pouco cederam as Floridas? De que servirá também que nós declaremos na Constituição, que o território português é inalienável, se houver um caso de necessidade, ou de utilidade, e exija que isto se possa verificar? Suponhamos nós, que era possível contratar com Espanha, a que ela nos desse a Galiza, e nós perdêssemos Macau? Porque razão o Governo não havia entrar nestes tratados, submete-los à discussão das Cortes, e estas, vendo que eram justos e úteis, sancioná-los então?”.
Esta tese não vingou, como bem sabemos. No limite, a ideia de Borges Carneiro até nem era destituída de senso: a Galiza era um território estrategicamente importante e apetecível para Portugal e Macau como estava perto das Filipinas, poderia integrar o conglomerado colonial espanhol no extremo oriente. Mas, ninguém se lembrou da palavra que teria a China, através do vice-rei de Cantão. De resto, o conhecimento de Macau era escasso, desactualizado e imperfeito. Na sessão de 14 de Agosto, o deputado Ferreira da Costa perguntava-se: “ignoro se somos senhores de alguma parte do território de Macau, mas consta-me que nós pagamos ali um fôro de cem mil reis por ano ao Imperador da China”. A fraca visibilidade política de Macau era imputada aos filhos da terra, como notava o deputado Vilela, “em Portugal há filhos de Macau, na universidade conheci alguns”, que estavam voluntariamente arredados do centro das decisões políticas.
Tudo isto foi, aparentemente, ignorado em Macau onde o jornal “A Abelha da China” vai fazendo eco dos trabalhos das Cortes ao mesmo tempo que amplifica as angústias do Leal Senado, “penetrado de um sincero patriotismo”, que decide fazer o primeiro referendo à população, em 13 de Novembro de 1822, para saber, entre outras coisas, “qual deve ser o plano da educação para ambos os sexos, mais acomodada às actuais circunstâncias do país, e quais os meios mais suaves e seguros, de que possa lançar mão o Governo para o pôr em execução e conservá-lo”. Tudo isto para “expor a Sua Magestade e ao Soberano Congresso”.
A instabilidade governativa parecia criar raízes em Macau, incluindo o frustrado assomo absolutista do Ouvidor Arriaga. O Senado, o Conselho Governativo, os Governadores e o bispo Francisco Chacim  foram obrigados a entenderem-se a bem da sobrevivência do Território. Como o ódio velho não cansa, o professor régio José Miranda e Lima, será demitido do cargo de professor de gramática latina, treze anos depois, em 1836, “pelos seus reconhecidos sentimentos de desafeição ao Meu Legítimo Governo e à Carta Constitucional da Monarquia”, como se pode ler no decreto assinado pela Rainha.
Começava outra grande discussão, se Macau deveria ter, por direito próprio, um deputado nas Cortes. O deputado Vasconcelos sintetizou a tese afirmativa deste modo: “já se concedeu à Ilha de S. Tomé e Príncipe um deputado, elas não são de tanta importância como Macau. Em Macau temos fortalezas, temos portos, temos grandes estabelecimentos. Portanto deve dar um deputado, e de modo nenhum unir-se a Goa, porque pode muito bem ser que deputados de Goa nunca fossem a Macau”. Apesar das reservas expressas pelo deputado Fernandes Tomás, “mas pergunto, está Macau na razão de vir de lá um deputado? Não está, nem estará”, o certo é Macau lá conseguiu a sua representação parlamentar. Manuel Borges Carneiro, vítima do absolutismo miguelista, acabará os seus dias como preso político no Forte de S. Julião da Barra, em 1833.
Artigo de António Aresta publicado no JTM de 29.5.2013

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