Páginas

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

“Da Cidade Antiga à Arquitectura Recente”: 1ª parte

Excertos de “Macau – Da Cidade Antiga à Arquitectura Recente”, artigo publicado na revista “Arquitectura Portuguesa”, Lisboa, 1987-88. Da autoria de José Manuel Fernandes, catedrático de História da Arquitectura e do Urbanismo da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa
“Macau possui no seu tecido urbano, ainda hoje bem visível uma estrutura urbana provecta, de origem quinhentista, tão consolidada como preciosa, que traduz bem este tipo de malha urbana, que referimos e que se procurou caracterizar como o da ‘Cidade de Matriz Portuguesa da Expansão Marítima’, ou o ‘Modelo da Cidade Lusa no Mundo’ – malha orgânica, regrada, estruturante e orientadora, mas de feição adaptativa e irregular, que, implantada em Macau, é de tipo análogo à que no Recife se procurou reerguer após os meados de Seiscentos. Essa estrutura constitui como que um longo ‘cordão’, disposto no sentido sudoeste-nordeste, articulando as duas colinas principais e fortificadas (a da Barra–Penha à do Monte), enquadrada por elas, e tendo de permeio a curvilínea baía da Praia Grande, as silhuetas dos dois Nam Van Lakes souberam reinventar e visualmente preservar).”
“Descendo, sentimos que a norte as ruas vão ‘escorregando’ para esse lado chinês (é a Rua do Quebra-Costas, por exemplo, que lá nos pode levar), enquanto para sul são o colonial Hotel Bela Vista, actual consulado português, e a romanticamente arborizada Avenida da Praia Grande que nos atraem a atenção. Decidimo-nos pelo meio, seguindo esse cordão umbilical que, entre vários nomes, denuncia o jeito que tem para ser rua direita, e desembocamos no Largo de Li-Lau, encantadora mistura de árvores, pórticos de arruinadas casas chinesas e pequenos almoços de chá e torradas ao ar livre e refrescante da manhã. Caminhando pela Rua Padre António, chega-se ao quarteirão formado pela Igreja de São Lourenço, onde uma primeira bifurcação importante nos fará optar ou pela Rua da Alfândega (resíduo toponímico da antiga área de desembarque e inspecção das mercadorias, quando a linha de costa ali chegava?), ou pela rua que, passando a Imprensa Nacional, derivava por sua vez para São Domingos e para a Sé…
Entre as ruas de Inácio Baptista e de S. José, em frente à entrada para a igreja do Seminário, uma velha casa de dois pisos (…) – hoje provavelmente demolida – evoca claramente o solar urbano de raiz portuguesa – com o pormenor precioso dos vãos superiores possuírem ainda as lâminas feitas de conchas marinhas (que na Índia se chamam ‘karepas’, substâncias translúcidas que substituem o vidro nos caixilhos – e atestam a provável influência da arquitectura goesa nesta minúscula península) (…) o grandioso – embora desfigurado – conjunto arquitectónico do velho Colégio Jesuíta, cujo espaço conventual (…) integra igreja, zonas escolares, jardins e claustros (…) é ainda o maior conjunto de arquitectura religiosa existente em Macau, cuja centralidade e extensão em relação à malha urbana da cidade antiga atesta a importância tida noutros tempos.
Pelas ruelas à nossa direita vão-se adivinhando as árvores da Avenida da Praia Grande, quando de repente iniciamos a subida da Calçada do Teatro (um romântico edifício que titula, bem a propósito, ‘de D. Pedro V’ e chegamos à Igreja de Santo Agostinho. A maior parte dos templos cristãos de Macau são como este: impecavelmente limpo, pintado e cuidado, se por um lado atesta na fachada os vestígios da sua fundação quinhentista ou seiscentista, por outro foi amplamente remodelado com gostos ecléticos (e com uma originalidade aparentemente muito ‘oriental’) desde Setecentos…

Agora, descendo pela Calçada do Tronco Velho, é no Largo do Leal Senado que desembocamos; ou, voltando à Rua Central, e atravessando o ‘corte’ moderno introduzido pela Rua-Avenida Almeida Ribeiro, atingiremos a Sé (a mais descaracterizada de todas as igrejas macaenses). Continuando por aqui, chegaremos ao ponto extremo nascente da baía (com a antiga linha de costa), onde se implantam os ‘restos’ da instalação franciscana que, como é da praxe, está o mais afastada possível dos Jesuítas e do bulício urbano (hoje rodeada por um gracioso jardim – e vem à memória idêntico destino, do edifício franciscano no Funchal) (…).
O Largo do Leal Senado é, talvez, actualmente o espaço urbano com mais carácter e vivência, de entre todos os pertencentes à ‘cidade velha’. Tradicionalmente constituía o pólo civil e administrativo da urbe, por oposição à zona atrás referida (São Lourenço/Colégio/Agostinhos) e à que se lhe segue, no percurso que escolhemos (São Domingos e São Paulo), ambas com eminente sentido religioso.
A Misericórdia e a Câmara, até 1999 designada por ‘Leal Senado’, actual ‘Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais’, são os seus dois elementos arquitectónicos principais, que dão o sentido funcional à praça, situada além disso no âmago da estrutura linear que descrevemos, o que aumenta ainda mais o seu significado. Os edifícios de acompanhamento, com características arcadas em três pisos, pintados em cores vivas, evocam indiscutivelmente o prédio do município de Margão, no território goês: essa analogia não será possivelmente obra do acaso, mas sim das relações entre Obras Públicas, serviço do Estado português, e seus autores, no quadro dos contactos Goa – Macau na transição do século XIX para o XX.
Outra força deste largo provém de ter sido ‘rasgado’ pela nova avenida rectilínea e modernizante que foi a Almeida Ribeiro, e que o transformou num espaço aberto, de ligação entre o porto interior e os novos aterros da Praia Grande. (…) há que concluir o périplo iniciado; e regressando ao Leal Senado, já se vislumbra ao fundo a silhueta da Igreja de São Domingos, que abre para a rua do mesmo nome (outro núcleo comercial fervilhante) e para a Rua de São Paulo, que leva às famosas ruínas. (…)
A seca escadaria que leva às ruínas, desinteressante e cheia de ‘hóóós!’ de turistas japoneses, era dantes ladeada por casinhas, com esquinas e beirais, como as gravuras oitocentistas de Chinnery deixam entrever; (…) Desenhos antigos reconstituem também as bolbosas torres que se erguiam para trás da portentosa fachada de dragões e caravelas (fruto de uma mistura artífice nipo-portuguesa que as idas quinhentistas ao país do Sol Nascente propiciaram), a qual é ainda hoje imagem longínqua que torna reconhecível o centro da cidade, para quem vem pelo mar…”

Sem comentários:

Enviar um comentário