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sábado, 5 de outubro de 2013

"Alma Nacional": 1910



A revista republicana Alma Nacional surgiu em Fevereiro de 1910, sob a direcção de António José de Almeida. Teve 34 números e foi editada semanalmente até 29 de Setembro de 1910 uma semana antes da implantação da República. Propunha-se ser a “crónica severa, e ao mesmo tempo agitada, da nossa vida e a precursora da pátria nova; (…) uma revista patriótica e um órgão de solidariedade universal, (…) arma de combate contra a monarquia, elemento de educação para o povo e instrumento de propaganda nacional, (…) Não será uma obra truculenta, mas um grito de indignação e de revolta (…) será a revista de todos, da plebe, dos trabalhadores, dos oprimidos de hoje (…) «urge uma nova religião e um novo altar, um credo e uma fé republicana, um grande credo humanista que possa secularizar o cristianismo. Assim, o partido republicano tem de abalar o arcaboiço da sociedade velha…destruir o regime, deitar abaixo a monarquia, o Portugal brigantino, afastar o entulho monárquico (...)"
A escassos dias da implantação da República em Portugal, que ocorreu no dia 5 de Outubro de 1910, Macau teve um protagonismo absolutamente inusitado numa revista lisboeta que reunia a nata da oposição ao regime monárquico e que não escondia a simpatia pela maçonaria e pela carbonária. Fundada e dirigida por António José de Almeida, médico especializado em doenças tropicais e deputado republicano no parlamento monárquico, a Revista “Alma Nacional” foi publicada a primeira vez no dia 10 de Fevereiro de 1910 [o último número, o 34, saiu a 29 de Setembro de 1910], aparecendo semanalmente às quintas feiras, cuja distribuição abrangia também as Colónias, a Espanha e o Brasil, estando igualmente previstas “duas edições especiais, uma em inglês e outra em francês”. Entre os seus colaboradores regulares contavam-se Guerra Junqueiro, Basílio Teles, Teófilo Braga, Miguel Bombarda, Leão Azedo, António Aurélio da Costa Ferreira, Tomás da Fonseca, Raúl Proença ou Aquilino Ribeiro , então exilado em Paris e acusado de regicida. E qual era o programa ideológico da “Alma Nacional”? A resposta é dada por António José de Almeida: “ O que a ‘Alma Nacional’ sobretudo vai ser é um jornal humano. De orientação revolucionária, revolução para ela não quer dizer morticínio, destruição. A vida do homem é uma coisa sagrada que só em combate leal, e ainda assim bem lamentavelmente, pelo atraso em que nos achamos, se pode tirar. Arrancá-la à vítima domada e vencida é crime ou alucinação. E a revolução, necessidade dolorosa da época retardada em que vamos, só é respeitável se for clemente”, sem esquecer que “Portugal é um organismo intoxicado. Conservá-lo no meio em que está, é matá-lo. Aplicar-lhe uma mudança de ares é salvá-lo. É preciso sanear a atmosfera, removendo o entulho monárquico e o guano clerical, que estão a fermentar”.
Rua Silva Mendes junto à Casa Memorial de Sun Iat Sen: dois 'adeptos' da república
 
Neste turbulento Portugal pré-republicano, Macau era, por todos os motivos, verdadeiramente uma questão longínqua, metafísica mesmo. Aqui e além irrompiam pequenas notícias ilustrativas da dura realidade de uma governação cujo conceito estratégico tinha sido ferido de morte na Conferência de Berlim. A revista “Alma Nacional” associa-se ao jornal “O Século” para lamentar “o estado miserável dos três barcos de guerra que foram mandados seguir para Macau quando surgiu o conflito com a China. O ‘Vasco da Gama’ nada pode, porque não navega; O ‘Dona Amélia’ nada faz, porque está na doca; a ‘Pátria’, essa dá provas das suas belas condições náuticas e combatentes … fabricando tuberculosos na exiguidade insalubre dos seus alojamentos”.
Na edição do dia 30 de Junho há um muito bem humorado recado dirigido aos republicanos chineses: “A China deliberou ter uma constituição. Alguém lhe lembrou que aquilo era comida muito fina para paladares tão grosseiros. Mas a China, alçando o rabicho, berra pela constituição. Está bem arranjada. Se ela for como a nossa, presente generoso que o dador se dignou fazer aos seus súbditos, não lhe há de valer de muito. A carta constitucional portuguesa, cheia de alçapões e sofismas, é na opinião do Conde de Resende, que foi monárquico de gema, um disfarce do absolutismo. A da China será uma maneira de o poder absoluto lá se conservar fresco e de boa saúde. Hoje em dia fica mal a um país o dizer-se que ele é governado pelo absolutismo; e vai daí, muda-se o nome e fica tudo na harmonia do senhor. Pois era melhor que a China se entretivesse de preferência a deitar papagaios de papel. Era menos trabalhoso e dava mais a ilusão de liberdade”. Ignora-se se Sun Yat Sen e os seus camaradas republicanos de Macau teriam tido conhecimento desta observação , que até estava em consonância com as ideias de Camilo Pessanha e de Manuel da Silva Mendes sobre o amanhecer do novo regime.
O Governador de Macau, Capitão Eduardo Marques envia à capital do Reino, a Lisboa, em Agosto de 1910, o director das Obras Públicas, o engenheiro António Miranda Guedes, a fim de acelerar a solução política de alguns problemas estruturais de Macau. António Miranda Guedes era amigo de António José de Almeida, uma amizade forjada na Universidade de Coimbra e cimentada numa estadia de anos que ambos vivenciaram em S. Tomé e Príncipe. Quando soube da sua presença em Lisboa, António José de Almeida, na qualidade de director da “Alma Nacional”, não perdeu o ensejo para realizar uma grande entrevista, na edição de 15 de Setembro, porque “ninguém melhor do que Miranda Guedes podia dar aos leitores da nossa revista a impressão do que pode vir a ser num futuro breve essa esplêndida colónia, se houver um pouco de boa vontade para a arrancar à estagnação em que vegeta”. E por aqui se vê o estado de uma monarquia liberal exangue, que tolera com alguma indiferença que um alto funcionário colonial fosse entrevistado por uma publicação tão hostil à Coroa e defendendo teses fora do protocolo político anteriormente firmado. A perguntas por vezes verrinosamente políticas correspondem respostas de uma inigualável candura ética.
Assim, ao longo de sete densas páginas puderam os leitores perceber melhor os problemas que afligiam Macau. Foi pedagogicamente recordada a eterna condicionante política: “como sabe, agita-se fortemente em volta de Macau a opinião do povo chinês sobre a delimitação do nosso domínio. Quem promove essa agitação, uma célebre sociedade de Cantão, denominada Chi-Chi-Hui ou, pelos seus altos propósitos, Self Government Society, procura na população ilustrada e rica, do distrito de Heung-Shan, campo para a sua propaganda contra nós”. Depois, o projecto de construir a linha de caminho de ferro entre Macau e Cantão alimentou grandes sonhos, rapidamente desfeitos, porque as obras do Porto de Macau se transformaram num paradoxo político. Mas, sem o triângulo de ouro, constituído pelas ilhas de D. João, da Lapa e da Montanha, tudo isso não passou de uma quimera expansionista, absolutamente insustentável no plano militar e na substância dos tratados diplomáticos.
Mas, o director das Obras Públicas vinha com duas incumbências distintas mas complementares. A primeira tinha a ver com o Porto cujo assoreamento constante inviabilizava a sua eficácia comercial. António José de Almeida lança a questão central: “se há tantos anos se fizeram estudos proficientes como você me disse e do que é garantia o nome de Adolfo Loureiro, honra da engenharia portuguesa, no porto de Macau, se depois disso mais que uma vez na realização das respectivas obras se tem falado, porque se não tem elas realizado? Desleixo dos governos ou incompetência da execução?”. A resposta é, no mínimo, surpreendente: “mal se iniciaram essas obras, que eram simples e para as quais havia verbas disponíveis no orçamento da Província, foram suspensas, hoje por um motivo, no dia seguinte por outro e afinal unicamente porque ….eram realizadas por administração directa da Estado”. Como se observa, já eram poderosos os interesses locais, mais de predominância sino-portuguesa do que luso-chinesa. Mais tarde o engenheiro Castel Branco irá propor o sistema de dragagens cujo financiamento só seria possível mediante a concessão do exclusivo dos jogos e do ópio.
A segunda incumbência, claramente no âmbito da economia política, decorre da resposta a esta pergunta de António José de Almeida: “não poderemos nós enveredar pelo são caminho da supressão dessas impuras fontes de receita e aproveitar o movimento comercial do porto como base limpa do regímen financeiro da colónia?”. A resposta do director das Obras Públicas é moralmente eloquente: “impõe-se a remodelação do seu regime financeiro. De baseá-lo na exploração dos vícios deve, precisa e há-de passar-se a baseá-lo na prosperidade do comércio e da indústria”. O juízo moral é contundente: “o vício polui, enxovalha, quem o exerce e até quem o consente, quanto mais quem o explora em seu proveito”. Mas o pragmatismo aconselha alguma prudência porque as rupturas poriam em causa o Território: “não só, porém, a supressão imediata do actual regime do viver de Macau, quando fosse possível, representaria talvez a supressão imediata, a paralisia absoluta do seu comércio e da sua indústria – tal a intensidade, secular e etnográfica, moral e material, da ligação entre eles – como representava, sem dúvida, insuperável obstáculo á realização dos melhoramentos basilares da sua desejada transformação social e económica”. E que mais se seguiria? “o regímen em que lhe falei é de transição. Lançaremos mão dele justamente para com ele acabar. Findo o prazo da concessão dos novos melhoramentos, brotariam novas fontes de receita, nova vida, nova Macau – já não a Mónaco nem a Roma do Oriente – mas um centro de actividade e de trabalho, digno da tradição que a enaltece e do País que a patrocina. É como a revolução, um mal que o meu amigo aconselha e defende, para nele assentar, segundo o seu modo de ver, cheio de fé e de crença, a prosperidade do País, a nova Pátria portuguesa”.
Este programa configurava uma verdadeira revolução em Macau. Sabemos todos o destino da bela utopia que ornava este pensamento unidimensional.
A Revista “Alma Nacional” publicou-se pela última vez no dia 29 de Setembro. No dia 5 de Outubro eclodiu a República e António José de Almeida toma posse como Ministro do Interior. Em Macau, o regime republicano foi proclamado na varanda do Leal Senado, pelo Governador de Macau, Capitão Eduardo Marques, no dia 12 de Outubro, perante uma pequena multidão onde se divisavam Camilo Pessanha, Manuel da Silva Mendes, Álvaro de Melo Machado, António do Nascimento Leitão ou Fernando José Rodrigues. Curiosamente, foi hasteada “a nova bandeira nacional, encarnada e verde, com tralha encarnada”, como se lê na Acta dessa cerimónia histórica. Mas, que bandeira provisória seria essa? Provavelmente um projecto de bandeira nacional na posse de algum republicano maçónico. Só no dia 29 de Outubro é que uma comissão composta por João Chagas, José Palla, Ladislau Parreira, Columbano Bordalo Pinheiro e Abel Botelho apresentou um relatório para a escolha da nova bandeira.  Após a partida do Governador Eduardo Marques em Novembro de 1910, regressou a instabilidade governativa com a interinidade de João Marques Vidal e Álvaro Melo Machado. A República tinha chegado.
Artigo da autoria de António Aresta publicado no JTM de 8.3.2013

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