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sábado, 28 de setembro de 2013

Rua do Cerco


Nota: O título deste post engana. E são vários os motivos para isso. Primeiro porque a referida rua há muito que deixou de existir. Segundo porque o texto - uma fantástica recolha documental publicada no final da década de 1970 - fala essencialmente da  Porta (do Cerco) e não da rua. Deixo-vos com as palavras de Monsenhor Manuel Teixeira. Bom fim de semana!
Começava ao lado do Arco da Porta do Cerco e seguia paralela ao Istmo de Ferreira do Amaral, devendo ir a terminar, segundo o Cadastro de 1925, na Estrada da Areia Preta. A primeira parte desta via pública está hoje dentro do Aquartelamento da Porta do Cerco, do qual faz parte, e a segunda parte tem hoje o nome de Estrada dos Cavaleiros. Deixou, pois, de existir o nome de Rua do Cerco.
António Feliciano Marques Pereira, em As Alfândegas Chinesas de Macau, p. 24 e segs., informa que a primitiva Porta foi cons­truída em 1573: «Muitos escravos dos portugueses de Macau fugiam a seus donos e iam praticar roubos nas povoações da ilha de Hian Chan (Heung-Shan, hoje Chong-Shan). Este facto deu motivo, em 1573, à construção da muralha e barreira do istmo, a que os nos­sos ficavam chamando «Porta do Cerco» e os chinas «Kuan-Chap». Construída a «Porta do Cerco», foi acordado com os mandarins de Hian-Chan que ela se pudesse abrir somente dois dias em cada lua, que nesses dias os chinas fizessem mercado para os portugueses irem fornecer-se dos géneros que precisassem, que aos chinas fosse proibido entrar no estabelecimento e aos portugueses e mais es­trangeiros sair ao território chinês, e que a dita porta fosse guarda­da por soldados e um oficial chinês. Passados anos, e já depois existir o Senado, estabeleceu-se o mercado semanal, e o procurador recebia dos mandarins uma lista que designava os chinas a quem era permitido vir à cidade, continuando, porém, a ser proibido a todos habitar nela. Os que se encontravam sem licença, ou não mencionados na referida lista, eram presos à ordem do procurador como vagabundos. Afinal a Porta do Cerco passou a abrir-se todos os dias, o mercado internou-se e fixou-se: pouco a pouco, o zelo dos pro­curadores enfraqueceu, a brilhante e industriosa actividade chinesa insinuou-se, fez-se benquista, e foi construindo e multiplicando casas, lojas e oficinas».
A asserção de Marques Pereira de que a Porta do Cerco foi construída em 1573 tem sido seguida por todos os historiadores: mas o Ou Mun Kei-Leok (Monografia de Macau), a pág. 37, diz que foi no ano seguinte: «Os cumes de Chi’in-Sán enfrentam os cu­mes das colinas de Macau pelo lado sul e do mar. O norte do istmo é atravessado por um dique de areia de 10 lei (5,Km.36) de comprimento e 5 a 6 braços (21,m48) de largura. Na extremidade do istmo surge um monte que se desenvolve enroscando-se e forman­do como que o cálice de uma flor de loto. Este monte é conhecido por Lin-Fá-San (Monte de Loto). O istmo adoptou portanto o nome do monte. No 2.° ano do reinado de Man-Lek (1574) construiu-se uma barreira a meio do istmo e os guardas incumbidos de a abrir e fe­char edificaram residências na sua parte superior, as quais com o tempo ficaram arruinadas. No 12.° ano de Hon Hei (1674), o Magistrado Distrital, Sân-Leong-Hón, mandou repará-las e construir ao lado uma casa de governo para servir de alojamento aos que vigiavam os que passavam pela barreira». A mesma Monografia diz a pág. 89: «Pela barreira da Porta do Cerco se deixavam passar todos os anos uns poucos de séàks (72 quilos) de arroz e, para isso, era ela aberta seis vezes ao mês depois de ser conjuntamente inspeccionada pelas autoridades civis e militares».

Peter Mundy, que esteve em Macau em 1637, escreve: «Uma muralha entre os chinas e os portugueses; o fim a que se destina. A cerca de 3/4 de milha de distância, existe um braço estreito de terreno, que liga com o resto a parte da ilha onde fica Macau. Neste estreito local, está levantada uma muralha que se estende de mar a mar, numa extensão de cerca de meio tiro de espingarda. Na dita muralha existe uma porta ou passagem com guardas chinas, que nenhum português pode transpor sem licença especial. E os escravos, que planeiam fugir de seus senhores se conseguem transpô-la, ficam livres de ulterior perseguição, e não são poucos que o fazem. Estes guardas exigem e cobram alguns direitos da gente do interior que traz provisões, etc. E em certas ocasiões de descon­tentamento com os portugueses essa porta é fechada, sendo im­pedida pelos chineses toda a forma de provisões, que os portugueses recebem deles, como nos foi contado» (C. R. Boxer, Macau na época da Restauração (Macau, 1942), p. 72.
Lyunsgstedt escrevia, em 1834, no seu Esboço Histórico dos Estabelecimentos Portugueses na China: «No meio do muro há uma porta de comunicação, chamada a Porta do Cerco, guarda por alguns soldados e um oficial, para que nenhum estrangeiro possa passar além deste limite. No princípio, a porta, segundo Navarrete, era aberta só duas vezes ao mês; depois, cada cinco dias, para vender mantimentos aos degredados; agora abre-se ao romper da aurora».

R. Marim escreve em O renascimento do Município Macaense, 2.° Vol. p. 148-150: «Mas o desenvolvimento da população tais engulhos ocasionava às reacionárias autoridades cantonenses, que estas olvidando os valiosos serviços que anos antes lhes havíamos prestado, conseguiram em 1573 que o novo imperador (Van-Li) nos impusesse o pagamento anual de quinhentos taéis de foro pelo ter­reno que estávamos ocupando. Ao mesmo tempo, ergueram no istmo da península um muro com uma pequena porta abobadada ao centro, afim, diziam eles, de marcar o limite do território macaense. Era a Porta do Cerco que os chinas apelidam de Kuan-Chap, edificada pouco mais ou menos no local onde actualmente se encontra. Reparavam os mandarins, com certo receio, no crescimento da população. Sabiam, por observação direta, que os portugueses não se levavam de vencida com facilidade em combate franco e leal. A Porta do Cerco, com o rótulo de marco divisionário de fronteiras, servir-lhes-ia admiràvelmente para travar qualquer pretensão da nossa parte de nos tornarmos independentes da sua autoridade ou qualquer instinto nosso de lhes conquistarmos o poder. E tanto assim era que a Porta do Cerco, depois de construída, passou a abrir-se unicamente de quinze em quinze dias. De modo que, como, pela via marítima, os víveres de que neces­sitávamos estavam já sujeitos ao controle e às alcavalas dos vários mandarins do mar, nada podendo ser importado em Macau sem o respectivo salvo-conduto, a Porta do Cerco era o meio excelente de que eles se serviriam para subordinar o nosso estômago às suas exigências. Enquanto pagássemos o foro ao imperador (o que era uma insignificancia) e todas as contribuições que o vice-rei de Cantão e os mandarins de Hian-Chan nos lançassem (e a violência estava nisto), Macau teria arroz, carnes, hortaliça e todos os mais gêneros alimentícios de que necessitava para o seu consumo; no caso contrário, a porta deixava de se abrir (o que várias vezes sucedeu) e a população citadina correria o risco de morrer à míngua…
Vê-se evidentemente o fim a atingir com a edificação da Porta do Cerco: 1.° O estabelecimento de um único mercado onde os portugueses teriam de adquirir os gêneros de consumo em dias determinados pelas autoridades de Cantão; 2.° Tolher o desenvolvimento da progressiva Amacau com a proibição de nela entrarem os chineses que voluntariamente escolhessem a civilização moralizadora dos europeus de preferência à jurisdição venal das autori­dades do seu país; 3.° Impedir a penetração dos portugueses no seu território».
A 25 de Setembro de 1828, o mandarim da Casa Branca proibiu os chineses de atirar pedras às casas vizinhas do Forte de S. An­tónio e de cometer outros distúrbios para exigirem a abertura das Portas do Cerco antes do tempo determinado, as quais costumavam ser abertas às 5h. a. m. e fechadas às 20h., conservando-se as cha­ves em poder do Governo.
A Estrada das Portas do Cerco foi construída em 1875, segundo se lê no Boletim Oficial de 13 de Fevereiro desse ano: «Vão bastante adiantados os trabalhos da estrada das portas do cerco; já se pode passar de carro desde a rampa dos cavalheiros (aliás cava­leiros) até ao ponto em que a estrada se liga com a denominada do Coelho do Amaral, que vem a S. Antônio.»
A 18 de Março de 1928 foi inaugurada pelos governadores de Macau e Hong Kong, Artur Tamagnini Barbosa e Sir Cecil Clementi e autoridades chinesas a Estrada que vai das Portas do Cerco a Seak-Kei, com uma procissão de milhares de pessoas, que mar­charam da aldeia de Tch’in-San até Macau.
O actual arco da Porta do Cerco foi levantado para honrar a memória do Governador Ferreira do Amaral, a 31 de Outubro de 1871, durante o governo de António Sérgio de Sousa (1868-1872). Nele se lê esta inscrição: «A Pátria honrai que a Pátria vos contempla». O director das Obras Públicas, ten.coronel Francisco Jerónimo Luna, no seu relatório acerca das obras realizadas em Ma­cau, em 1871-1872, escrevia acerca do Arco das Portas do Cerco: «Obra construída segundo o plano que achámos delineado, tendo sido inaugurado o seu acabamento, por ordem do governo da colônia, no dia 31 d’Outubro (1871) anniversario natalicio de S. Magestade Fidelissima El Rei o Sr. D. Luis 1.° Este cerco construido no caminho principal, que de Macau segue a varias povoações chinas é dedicado á memória do benemérito exgovernador — João Ferreira do Amaral, á tomada de Passeleão, conforme se acha publicado no Boletim Official do governo n.° 44, de 30 do referido mez». 
Padre Manuel Teixeira in "Toponímia de Macau", CIT, 1979-1981

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