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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Quem se lembra e quem não nas ruas de Macau

Macau foi sempre um território constituído por uma esmagadora maioria de chineses de fé budista nas suas diversas formas. A população católica não vai além dos 25 a 30 mil fiéis num cômputo total de meio milhão de almas, ou seja, uma gota católica que se perde num mar ou, pelo menos, num grande lago budista e taoista. No entanto, qualquer estudioso do futuro que se debruçasse sobre a toponímia da cidade e das ilhas, sem se rodear das necessárias precauções, seria levado a pensar precisamente o contrário.
De facto, quanto a padres, bispos, e irmãs da caridade, não parece haver cidade que tanto tenha preservado os seus nomes como Macau. Sobre o que fizeram, pouco se sabe em concreto, para além do facto de terem sido de facto padres, freiras, bispos e cónegos.
Tal é o caso do Padre António (António José da Costa) que para além de “administrar bem os dinheiros de vários fundos e legados que lhe tinham sido confiados”, nada mais terá feito de importante para merecer a posteridade. Mesmo assim teve direito a uma rua inteira.
Camões administrou também os dinheiros de vários fundos e legados, como Provedor dos Defuntos e Ausentes se é verdade que alguma vez ocupou tal posto. Eduardo Ribeiro, por exemplo, assevera que sim em dois livros e artigos impressos em revistas de grande valor cultural no mundo lusófono dados há não muito tempo à estampa. Mas seria profundamente duvidoso que o seu eventual zelo contabilístico lhe concedesse direito ao jardim que ostenta o seu nome, se não possuísse os outros dotes pelos quais ficou imperecível na história. E assim ficou para a tradição portuguesa o “Jardim de Camões” e para a chinesa o “Jardim das Pombas Brancas” (Pack Hap Chau).
Quanto ao padre Vasconcelos (António Maria Augusto de Vasconcelos), os créditos são ainda menores, do que os do seu confrade António, constando apenas ter pregado gratuitamente a oração fúnebre de D. Pedro V. Cinquenta anos antes, o frade António de S. Gonçalo de Amarante pregou a oração fúnebre de D. João VI igualmente gratuita. Mas, para além de não lhe terem sequer concedido um beco ainda o levaram preso a ferros para Goa. No entanto este frade (prior dos Dominicanos) foi o autor do primeiro jornal português do Extremo Oriente (“A Abelha da China”), facto que por si só teria merecido justo reconhecimento se não se tratasse de um liberal “contaminado” pelas ideias subversivas da Revolução Francesa, ou se em vez de ter sido superior da ordem espanhola fosse reitor dos franciscanos, confraria mais adequada ao nacionalismo luso e menos eivada de fumos castelhanos, ou então se fosse jesuíta. Mas, certo é que Vasconcelos teve direito, a uma rampa, enquanto o frade liberal (e provavelmente “pedreiro-livre”), Frei António de S. Gonçalo, perdeu-se na história apenas com o epíteto de “malhado” sem rua nem beco, nem pátio sequer.
A caminho do Farol da Guia
No que se refere ao jesuíta Roliz (António José Gonçalves Roliz), já se conhece mais alguma coisa. Formado pelo seminário local (S. José), partiu para a Europa a fim de repetir os cursos de filosofia e teologia, voltando à Ásia para leccionar em Cochim (Índia), missionando posteriormente na cidade chinesa de Shiu-Hing, antes de terminar os seus dias em Macau como perfeito, professor e director espiritual do seminário, promovendo aqui o culto de Nª. Sª. de Fátima. Teve, por isso, direito a uma rua.
No que se refere ao padre Narciso (Narciso Firmiano) nada há que justifique os gastos de uma placa ainda que em simples azulejo, nem a sobrevivência da memória, tendo em conta que os autos biográficos oficiais referem apenas ter sido criado de um francês chamado Molinau que era piloto de uma chalupa pertencente ao rico comerciante António Correia de Liger e, mais nada. Sendo assim, não se encontra explicação capaz para a sua perpetuação, já que nem Molinau nem Liger (Liger talvez merecesse, mas não cabe aqui fazer a sua história) figuram em parte alguma como particularmente lembrados por pensamentos, palavras, ou obras como diria a Igreja. O facto de ter falecido na dignidade de cónego não consegue, mesmo assim, resolver o enigma, tendo em conta que os cónegos foram pelo menos mais de uma centena ao longo da história de Macau e pouco se sabe sobre o que tenham feito de relevante fora de portas do Paço Episcopal.
O mesmo se pode dizer do padre Soares (Luís Soares) que também não possui biografia própria. Segundo Mons. Manuel Teixeira, este sacerdote, era “filho de Francisco Xavier Placé Soares e de Ângela Vicência Osório Soares, tendo um irmão, Matias da Luz Soares que casou com Júlia de Vasconcelos, filha de António José Vasconcelos, natural de S. Miguel, nos Açores e de Júlia Maria Cândida de Castro...” Convenhamos que, se trata de um currículo manifestamente insuficiente para lhe conceder quaisquer direitos, mesmo que a uma travessa. Quem teria sido este padre do qual consta apenas a biografia dos seus parentes?
Cruzamento da rua do Campo com a rua da Praia Grande
No caso de Madre Terezina (Maria Teresa Lucian), já a posteridade se justifica plenamente. Desde que fundou o convento das irmãs Canossianas no Território, distinguiu-se imediatamente, por ocasião do surto de “cólera morbus” que afectou Macau em 1888, auxiliando os doentes e também o Dr. Gomes da Silva, cirurgião-geral que se “matou” a trabalhar lutando contra as infecções e o maioritário preconceito que na cidade rejeitava a medicina ocidental. Vencida a crise, Madre Terezina fundou e desenvolveu colégios, voltando a distinguir-se na luta contra novo surto de peste dez anos depois (1898). Entre crises, ergueu asilos e estendeu a acção das Canossianas a Singapura e a Malaca, ganhando assim com mérito os créditos necessários a fim de poder figurar na panóplia dos heróis e heroínas locais com todo o valor. Acho que, neste caso deveria ter direito a, pelo menos, um bonito jardim, ou alameda com árvores frondosas e crianças a brincar, mas enfim... a história às vezes é ingrata e a Madre Terezina ficou-se por uma rua traseira o que é pena, em minha opinião!...
Edifício no nº 15 da rua Madre Terezina
No que toca a prelados, muitos ficaram esquecidos nos recônditos dos séculos, outros não. Da justiça, ou injustiça das homenagens toponímicas não nos compete julgar, mas apenas assinalar que, por exemplo, D. Melchior Carneiro, esse bispo esclarecido do século XVI, o mesmo que para além de construir a primeira Misericórdia e o primeiro hospital e lançar as bases da organização política da cidade consubstanciadas no antigo Leal Senado, actual IACM, apenas teve direito a nome numa discreta rua das traseiras das ruínas de S. Paulo, num sítio onde poucos peões frequentam a passagem, a não ser os moradores e os que vão à missa, ao sábado, ou domingo à Igreja de Santo António.
Mais de trezentos anos depois, já que o cadastro de 1869 não o refere tendo sido perpetuado apenas no censo cadastral de 1925, D. Melchior, ainda que permanecendo na memória das conservatórias, da “Santa Casa da Misericórdia” e do “Arquivo Histórico”, ali ficou lembrado, mas foi praticamente eximido da toponímia. Desgraçado, jesuíta a quem Macau deve os alicerces da sua existência política de mais de quatro séculos mas, o qual a posteridade avara negligenciou negando-lhe a honra merecida de uma avenida, ou pelo menos de uma rua principal, ou de uma grande praça.
A rua de S. Paulo em 1965
Rua Padre António Roliz. Década 1960
Mas, ainda no que se refere a bispos, as injustiças são evidentes. De todos os prelados de Macau (e foram alguns os recordados) ficaram apenas o bispo Enes, um franciscano doutorado por Coimbra, par do reino e comendador da Conceição, que dirigiu a diocese local entre 1877 e 1883, sendo depois transferido para Bragança e também o Bispo Medeiros. O primeiro foi mesmo considerado um dos maiores prelados da diocese (ainda que não se saiba lá muito bem porquê). Ambos conquistaram duas ruas. D. João Paulino, fundador do Boletim Eclesiástico da Diocese, perpetuou-se, por seu turno, numa estrada ainda que deveras íngreme.
D. Jerónimo José da Mata, fundador da ideia do iberismo, talvez por isso, apesar do que fez e foi muito não só em Macau, mas também em todo o sudeste asiático, pelo catolicismo, esfumou-se nas brumas do tempo sem direito a memória a azul e branco em qualquer placa de azulejo que eu saiba, ou tenha visto (se calhar existe, mas não reparei nas minhas deambulações pela cidade).
Esquecido ficou também, em parte, o maior de todos os bispos de Macau depois de Melchior Carneiro, que foi D. José da Costa Nunes. Esclarecida personalidade, D. José, para além de ter dinamizado a vida religiosa, social e cultural de Macau nas primeiras décadas do século XX atingiu as mais altas honras da Santa Sé. Seria o sucessor de Pedro Hispano (Papa João XXI - 1276-77 - o único Papa português) se a morte não o tivesse levado prematuramente. No entanto, esta figura ímpar, de Portugal sobre a qual também há uma biografia por fazer não teve direito a quase nada, figurando apenas no pórtico de um infantário que esteve em risco de ser deitado abaixo há poucos anos por “ignorância dos povos” como diria o poeta e prevalência do camartelo do progresso e ganância da construção civil.
Que razões misteriosas levaram a toponímia macaense a esquecê-lo assim? Talvez um dia se saiba, embora antes de morrer o próprio bispo tenha queimado, todo o seu acervo de documentos pessoais. Que segredos pretenderia esconder este homem superior, magnânimo e esclarecido? Possivelmente terá apenas querido preservar a sua memória impoluta da incompreensão dos vindouros.
Traseiras das ruínas de S. Paulo
Passem as injustiças conclui-se todavia que a toponímia macaense regurgita de bispos, padres e freiras. No entanto, apesar da antiguidade da religião budista, do facto do templo da Barra ser anterior à chegada dos portugueses e de os pagodes se contarem por mais de uma centena na cidade e ilhas a toponímia macaense soberanamente decidiu ignorar esta fatia maioritária. É assim que, apesar de existir o Largo do Pagode da Barra, ou a recentíssima rua do Kun Iam Tung, não existe em Macau uma única via, nem um esconso beco que tenha merecido o nome de um monge budista de renome histórico. Em quatrocentos anos, não é crível que pelo menos um ou dois não tenham merecido ficar perpetuados. Chega-me notícia de que agora já constam alguns nomes dos seguidores de Buda na toponímia de Macau. Ainda que embora poucos. Ainda bem que assim é, mas falta divulgar o que fizeram tanto em chinês como em português.
Artigo da autoria de João Guedes publicado no Jornal Tribuna de Macau a 11-05-2011
Uma travessa na San Ma Lou

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