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terça-feira, 23 de outubro de 2012

Chineses Alfacinhas - 6ª (última) parte

A década de 60 foi simultaneamente o culminar e o termo da actividade que durante anos animou a vida de Juan Y Hing e da esposa - foi em 1961 que aconteceu o primeiro grande dissabor da vida de Dona Olga depois do casamento com Juang: a morte de Armando, único filho da sua ligação com o militar Alfredo Rodrigues, vítima de doença grave. Juang e Dona Olga prosseguiram, apesar disso, a sua actividade comercial e, com clientes espalhados por todo o país, Juang - também conhecido por Akun (avô) - não esmoreceu e decidiu começar a investir na compra de imobiliário nos arredores de Lisboa, mais precisamente na Amadora, expandindo desse modo a sua área de negócios. Eis, porém, que sucede um segundo desaire: Juang faleceu em 1965. Foi praticamente o fim da prosperidade da produção e do comércio de gravatas, doravante conduzido sob a orientação exclusiva de Dona Olga. Mas os proventos já não justificam o seu empenho e em 1968 Dona Olga opta por abandonar esse negócio e prestar mais atenção ao comércio de imobiliário, a que ainda hoje se dedica. Entretanto, pondo em movimento o seu instinto de solidariedade familiar, Dona Olga ainda promoveu, em 1971, a vinda do irmão Kaukun de Macau, para sua casa à Praça da Figueira - e aqui desponta um outro notável caso: trazido da criação no Delta do Rio das Pérolas, este irmão só fala e escreve cantonense, mas compra diariamente o jornal “A Bola”, e sob a espessura imensa de umas sobrancelhas negras, é impossível nele identificar feições chinesas...Quantas mais histórias haveria para contar!
A Casa Chinesa
As leis da sobrevivência mantêm-se em vigor na baixa lisboeta
Como se sabe, a vida estimula os lutadores e, tal como Dona Olga se adaptou à mudança, assim o fizeram naturalmente todos os seus familiares, bem como os cunhados Wen e Angelina Chai que, em 1966 já haviam aberto um dos primeiros restaurantes chineses em Lisboa, o “Xangai”, na Avenida Duque de Loulé, deslocando para esse ramo o centro da sua actividade — porque o comércio das gravatas esmorecera e havia deixado de ser um sector maioritariamente chinês, fora-se disseminando por outras mãos, ganhando novos caminhos e outros protagonistas.
O “Xangai” inauguraria, pois, à distância de muitos anos, a moda dos restaurantes chineses e nisso foram também pioneiros em Portugal os seus fundadores que, já nos anos 80, haviam de o passar para novos empresários. Curiosamente, a zona de Lisboa escolhida para instalação desse primeiro restaurante viria a constituir-se como um dos marcos de referência para a localização de muitos outros que se lhe seguiriam.
Wen Chai faleceu em 1974 e hoje Angelina dirige um estabelecimento de retalho em conjunto com a sua filha primogénita Maria do Carmo, a “Casa chinesa”, na Rua João das Regras, em plena Baixa Lisboeta, distanciada uns breves cinquenta metros do número 12 da Praça da Figueira, em cujo 3º andar Dona Olga Lam ainda reside.
Eis que a baixa lisboeta continua a ser o cenário a que se ligam as memórias de vida do pequeno núcleo inicial desta comunidade chinesa tão discreta quanto ignorada das memórias colectivas da sociedade portuguesa. Afinal, prova irrefutável de uma especial forma de resistência à adversidade, e capacidade de integração lograda por alguns. Dona Olga é disso exemplo marcante, como o atestam a inesquecível passagem do ano de 1966/67, a bordo do paquete Santa Maria, no Funchal (em companhia dos cunhados Wen Chai e Angelina e de amigos, aproveitando a estadia para rever o velho compatriota Fong Há, estabelecido no Funchal desde os anos cinquenta, vivendo aí uma versão madeirense do sucesso continental da comunidade chinesa), as romagens a Fátima, as idas à revista...
Uma ida à praia
Querida China, lá tão longe!
Olga Lam, ao longo de todos estes anos deslocou-se diversas vezes a Macau, mas, com o avançar da idade, a frequência dessas viagens foi diminuindo. Além disso, os seus conhecimentos em Macau foram-se reduzindo a um conjunto cada vez menor de pessoas. Macau tornou-se assim cada vez mais um manancial de memórias depositadas sob vivências mais recentes. Mas a ligação da família Yuan a Macau e à China prosseguiria por outras vias e teve outros desenvolvimentos, mais ou menos fugazes, mas nem por isso menos emocionantes para os respectivos actores. Foi assim que Li Chien Yuan, a netinha de Dona Olga que aos quatro anos viera com o pai cego e a mãe para Lisboa, já cristãmente baptizada Vanessa e adulta, viveu em Macau, em plenos anos oitenta do século passado, onde desempenhou funções na Teledifusão (TDM), casou com um português (embora não militar) e... constituiu família.
Foi durante a estadia nesse Território, no início do ano de 1986, que Vanessa teve a oportunidade de receber a irmã Hua Chien Yuan, então Nádia König (vinda da Suíça, onde reside) e João Lin Yun, vindo de Lisboa, onde se tornou anos depois director do Observatório Astronómico de Lisboa. Assim reunidos os três irmãos pela primeira vez às portas da China, aí decidiram lançarem-se numa breve mas emocionante viagem com destino à cidade de Wengzhou, para verem os respectivos pais. Uma série de circunstâncias tinham confluído para que essa aventura pudesse ocorrer e ganhasse um significado de inevitável intensidade afectiva.
Na verdade, o falecimento do marido de Dona Olga Lam, determinara direitos de herança ao filho Leong Iam, mas o desconhecimento do seu paradeiro na longínqua China impossibilitou por muito tempo a resolução dessa questão legal, impasse suficiente para inviabilizar a realização de algumas transacções de imobiliários que Dona Olga pretendia levar a cabo em Lisboa. Acontece que se deu o feliz acaso de um membro afastado da família Yuan ter ido trabalhar, directamente da China para o restaurante “Xangai”e, com base em informações por ele fornecidas, foi possível restabelecer contactos, tornando possível resolver a questão da herança deixada por Juang. Concretizaram-se então os negócios que Dona Olga planeara realizar, não só para benefício próprio, mas também do casal de Wengzhou que, apesar das limitações materiais em que vivia, aplicou o dinheiro da herança, assim conseguido, no dote de casamento de um quarto filho, nascido já depois do regresso à China!
Foram estes os factos que antecederam a viagem de João e Nádia e motivaram quer o reencontro com a irmã Vanessa, em Macau, quer a visita aos pais e aos outros três irmãos mais novos nascidos entretanto e residentes na longínqua cidade de Wengzhou.
Nádia recordou-nos emocionada essa ida à China. Falou-nos do longo trajecto que tiveram de percorrer de Macau até Cantão de autocarro, de Cantão a Suzhi - um dia de taxi - e daí finalmente até Wengzhou, um salto relativamente pequeno, de novo de autocarro.
Um longo percurso vivido de forma intensa, observando, horas a fio e com estranheza, o mundo rural visível das janelas dos sucessivos transportes que tomaram - durante o dia atravessando intermináveis arrozais, de noite perscrutando na escuridão pontuada por grupos de pessoas defendendo-se do frio com fogueiras. E, apesar desta realidade que sentiu como se fosse o regresso inesperado a um passado longínquo da história do mundo que se habituara a imaginar, Nádia teve, ao mesmo tempo e apesar disso, a sensação de pertencer ainda àquela terra, de se sentir parte daquela gente, “carne e osso com raízes próprias, raízes que estavam ali” – como se o passado estivesse irremediavelmente contido nos genes e, como fez questão de acentuar, integrado até no nome que lhe fora dado à nascença - Hua Chien, que em português se traduz “Querida China”. Mas eis que, contrariamente ao que esta visão de uma ruralidade de sabor medieval lhe sugerira, o que encontrou em Wengzhou foi uma realidade urbana chinesa “à século XX”: em vez do aglomerado rural, atravessado de ruas tortuosas e sujas, invadidas pelo cheiro dos esgotos a céu aberto, encontraram afinal uma grande cidade limpa e fervilhando de gente, já então no avançado estado de modernização que lhe permitiu tornar-se num dos pólos com maior índice de qualidade de vida da China actual. Esfumadas assim instantaneamente as impressões da ruralidade medieval, chegaram finalmente ao seu destino, onde, por entre uma multidão de gente curiosa e já informada da visita, Chi Mei, a mãe dos visitantes, teve que irromper a custo, afastando as pessoas para um emocionado abraço... saudado em português!  Com a multidão a aplaudir, e abrindo alas por entre o aglomerado de vizinhos, entraram em casa onde outros três irmãos (duas raparigas e um rapaz que haveria de servir de intérprete familiar, pois é fluente na língua inglesa), os esperavam juntamente com o pai, Leong Iam. Leong reconheceu pelo tacto os filhos em visita e, esfuziante de alegria e expressando-se num português peculiar mas espontâneo, manifestou a sua admiração ao constatar o crescimento de cada um deles - “é glande, muito glande!” — expressando-se em Português, mais de vinte anos depois de uma estadia de apenas quatro anos em Portugal. Nádia recorda, a título de exemplo, o pai a ir ao bolso do casaco e a mostrar, na mão que abriu orgulhoso, um molho de parafusos, exclamando e gesticulando muito -“palafuso, pai tlabalha fáblica palafuso” - e ria-se, ria-se muito...
Ao longo dos quatro dias que durou a visita foi este o clima de emoção e alegria intensa, em que os elementos femininos da família frequentemente se comoveram até às lágrimas por entre carinhos, e patéticas tentativas de diálogo gestual, muitas delas hilariantes e inesquecíveis. Nadia König repetiu visitas a Wengzhou em 1988 e em 2002, tendo nesta última deslocação levado os seus dois filhos adolescentes. Para ela, a ligação com os pais, apesar das distâncias, foi restabelecida para sempre e certamente hoje não ocorreriam os lapsos em que inadvertidamente incorria durante a infância e adolescência, ao confundir os laços de parentesco de pais e avós.
Passeio até ao aeroporto de Lisboa
Epílogo
Em Lisboa, Olga Lam prosseguiu o seu caminho. Retirada das tarefas absorventes da vida dos negócios, vive uma vida pacata e confortável. À medida que os anos passaram foi-se integrando da melhor forma possível, ou seja, adoptando hábitos próprios da cultura portuguesa, embora mantendo intactos alguns costumes próprios da sua cultura de origem.
Vê filmes chineses, em vídeo, mas acompanha também as telenovelas da televisão portuguesa e devora diversas publicações editadas em torno do fenómeno televisivo.
Não despensa a ida regular a restaurantes chineses onde, por exemplo, oTau-Fu com o Pak Tchói e o camarão fazem o delicado contraponto oriental ao portuguesíssimo arroz de marisco. Por outro lado, é numa pastelaria da Praça da Figueira que, sem falta, todas as manhãs, de há muitos anos a esta parte, leva a cabo o ritual do pequeno-almoço, juntamente com o seu irmão Lam Kam Tong: um galão e meia torrada, ou um bolo à escolha entre uma “Madalena” e um “Pão de Deus”. E a seu lado, o irmão cumpre, também infalivelmente, outro ritual matutino: a leitura do jornal desportivo “A Bola”, que compra diariamente num quiosque perto de casa, para assim poder acompanhar os mais recentes episódios do seu glorioso Benfica. E há ainda os caracóis no Verão — “ ah! não esquecer os caracóis no Verão! “ — habitualmente acompanhados por um fresquinho “Sumol de Ananás”! Outros hábitos seriam igualmente representativos deste caso de feliz aculturação: por exemplo, durante as décadas de 80 e de 90 foi sócia da Associação das Mulheres Chinesas Amigas de Taiwan, a que aderiu por razões de convívio activo e em cujo seio levou a cabo uma série de viagens num roteiro de peregrinação turística e religiosa, de Fátima a Santiago de Compostela.
Foi este enraizamento profundo, alicerçado em quase 60 anos de vida no nosso país, que a impediu de alguma vez ter sequer considerado a possibilidade de regressar de vez a Macau. É por cá que tem a família e as suas amizades de muitos anos — normalmente cultivadas de forma acalorada, à volta de uma mesa de restaurante chinês no Areeiro – negócio montado por chineses vindos de Moçambique - jogando mah jong horas a fio.
Por outro lado, nos últimos anos, com a vaga maciça de imigrantes chineses, Lisboa ficou mais próxima do Oriente e conhece uma fervilhante e crescente actividade comercial da comunidade chinesa espalhada pela capital. E de tudo há um pouco, nalguns casos até, bem mais do que pouco: da venda ambulante, ao comércio em estabelecimentos próprios, de restaurantes a sapatarias, de lojas de revenda de roupa a papelarias, de mini-mercados a mercearias, onde praticamente há de tudo – fresco, enlatado ou congelado — o que é essencial para a confecção da culinária chinesa mais apreciada, tudo é actualmente possível encontrar. É esta Lisboa multicultural a que cada vez mais se veste ao gosto de Dona Olga. Por isso, daqui já não sai: nem da cidade que a acolheu, nem da casa onde, normalmente ao entardecer, à janela do seu terceiro andar voltado para a Praça da Figueira, se põe a observar a vida que corre num frémito pelas ruas da Baixa Pombalina.
Da autoria de Miguel Andrade, 2006

3 comentários:

  1. Excelente trabalho! Histórias muito interessantes.

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  2. Devo apenas mencionar que a foto da Casa Chinesa é a do Funchal

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  3. Devo apenas mencionar que a foto da Casa Chinesa é a do Funchal

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