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quarta-feira, 18 de julho de 2012

Primeira República Democrática do Oriente

Almerindo Lessa (1908-1995) nasceu no Porto onde se formou em Medicina pela Universidade do Porto em 1933, e em Ciências pela Universidade de Toulouse, sendo professor jubilado da Universidade de Évora. Antigo professor de Antropologia Tropical foi fundador e reitor da Universidade Internacional de Macau e é membro fundador da Universidade Internacional de Lisboa.
Tem centenas de trabalhos publicados nas áreas da medicina e da antropologia e foi alvo de condecorações por países como Portugal, Brasil, França e Senegal. Entre as suas obras dedicadas a Macau e ao Oriente destacam-se títulos como China, um País de Contactos, Convergências, Raças e Culturas numa Área Portuguesa da China Tropical, Antropologia e Antroposociologia de Macau.
Do livro A História e os Homens da Primeira República Democrática do Oriente, editado pela primeira vez, em 1974, retirei alguns extractos. Nesta obra defende o conceito global de Leal Senadismo dos Homens Bons eleito de forma democrática. Macau governado por si próprio...
Foi no século XVI que os portugueses se estabeleceram no estuário de Cantão. A Nação, cedo corporizada na Europa, devassava fronteiras e ideologias, organizava espaços comerciais e políticos, misturava o sangue com o de muitas e desvairadas gentes: era vizinha e senhoria em quatro continentes. Partindo do Atlântico, navegava no Pacífico, sumia e construía impérios. Abrangia o Universo com espanto dos outros povos e o pasmo dos seus próprios filhos. Recorde-se o azedume de Nicolau Tolentino: que «sem termos um palmo de terra andávamos repartindo o mundo!».
Soldados, mercadores, padres, navegantes dilatavam sem parar os horizontes físicos e culturais do homem ocidental. Fernão de Magalhães dobrando a Terra do Fogo e David Melgueiro, o anfíbio!, cruzando(?) os mares e os gelos da Sibéria, tinham passado os limites da imaginação, realizado o impossível. O mar para nós era sem fim. Tão-pouco o esforço tinha pausas. Todos os dias era Pentecostes e todos os dias era comércio. Bem dissera Vasco da Gama, ao entrar no Índico, que ia à procura de cristãos e de pimenta. Vivíamos num estado psíquico de admiração e de conhecimento germinal. Alvoroçados em Malaca pelo que lá contavam os chineses de Fuquiem partimos para a China em 1513 e em 1554 já estávamos instalados no fabuloso estuário dos três rios. Mais tarde a administração de Kuangtung confirmaria que «havendo os portugueses sempre conservado a paz com os Chinas, vivendo do seu negócio, sem nunca quebrar a harmonia não só na presente dinastia, mas também na antiga, haviam merecido por isso que os grandes mandarins e o imperador os tratassem, mais do que a nenhuma outra nação estrangeira, com especial contemplação». Cantão abria-nos as portas. Em Macau erguíamos a primeira república democrática do Oriente.
O que levanta dois problemas de História: explicar como conseguimos fazer negócio num meio tão hostil, xenófobo, onde só num dos séculos anteriores (o século IX) tinham sido sacrificados cento e vinte mil comerciantes árabes, parses e cristãos?, e porque não tendo sido Macau a nossa primeira residência (na ordem dos estabelecimentos comerciais estáveis foi talvez a quinta), só nela acabaríamos por permanecer? Ocorre até perguntar como não havendo conseguido mantermo-nos em Marrocos (entre outras razões por ali nos termos afrontado, e para issoíamos, com uma sociedade de grande força expansiva, como eram os árabes), viemos a fazê-lo na China, onde vivia um povo com mais de quatro mil anos de civilização, rico em élites, que formava ainda por cima o maior «melting-pot» genético da Ásia? Mais! Onde chegávamos um século depois dele se ter fechado de novo sobre si mesmo, abandonando as grandes expedições comerciais até Malaca, o Sião, a Índia e a África; quando suas «armadas das jóias» já não sulcavam os oceanos. Pouco antes de Tomé Pires alcançar Pequim, o imperador dissera, ao receber os presentes de um dos reinos do Sul: «os produtos dos países longínquos não me inspiram afeição. Penso (contudo) na sinceridade com que os trouxeram de longe e só por isso os recebo. Não é preciso felicitarem-me».

Edição de 1996
Com essa gente iríamos tratar: «[... ]o país dos Franges (comunicaria em 1521 o ministro dos ritos ao imperador Chia-Chíng) deve ser uma coisa muito pequena à beira do mar, porque desde que o mundo é mundo, nunca veio à China um embaixador de tal país». Em contraste, «coisa muito grande e de um só rei», e povoada de «infinita gente», também a sua pátria surgia para nós como um palco surpreendente. Anotávamos: «os chineses dispõem de centenas de bibliotecas construídas com grande dispêndio, e abundantes de obras de civilidade e cerimónias» (em que são escrupulosos), e «consideram em grau soberano o seu Império e tudo quanto lhe pertence, desprezando até o último ponto os estrangeiros e o que estes possuem». Fernão Lopes, depois de aludir à grandeza geográfica e à estratificação social, foi bem claro: «usa-se entre eles toda a polícia do mundo, e cuidam eles que não há em outra parte senão na China, nem têm por homem o que não é chin». Em 1571 D. Jerónimo Osório fazia-se de novo eco destes valores escrevendo: «seus ânimos relaxam mui aprazivelmente de cuidados com cantigas e acompanhamento de instrumentos músicos [...] e aplicam-se muito às matemáticas e observam com desvelo os astros. É antiga entre eles a arte de imprimir os livros por meio de formas de bronze, e propagar assim a memória das cousas [...]». Movendo-nos em pleno Renascimento, frequentadores da Itália e das culturas árabes, não tínhamos visto outro país não europeu onde o conhecimento dos homens e do mundo fosse tão apurado. Nem tão provocador. Leonel de Sousa, logo no primeiro contacto fizera dele uma inteligente observação; que «dispunha de mais de dez mil licenciados, centenas de doutores e mais de oitenta mil estudantes», continuava a dizer de Pequim o padre Gabriel de Magalhães; e em 1589 frei Amador Arrais destacava nos Diálogos sobre os ritos e os institutos dos Chinas, suas intermináveis fronteiras, suas artes, a sociedade abundante, a variedade física dos naturais, os costumes de roupa, os hábitos de mesa, o amor pelas ciências e pelos livros, a organização social, acrescentando: «não admitem homens forasteiros porque temem a perversão dos costumes e institutos de sua pátria com a comunicação deles», receio que seria através dos anos o maior obstáculo à nossa residência.
Segundo os documentos sínicos (revelados por Tíen-tsé-Chang), foi no 14.o ano de Chia-Chíng (1535) que recebemos autorização para nos transferirmos das ilhas costeiras para o continente. Primeiro de mistura com outros comerciantes, mas, por fim, sozinhos, adquiríamos esses jus perpétuo sem outro controle que um vago foro de chão e como prova fazíamos em breve cair por terra o nome de Fou-lang-ki ou Faranghi para receber apenas o de «portugueses»; em 1560 éramos uma feitoria e meio século depois (1613) esta interpretação serviria já como alegação de direitos. Por serean os chineses uma gente «deliciosa», menos combativa que os nossos próprios padres? Não o creio, porque além de disporem de uma inesgotável força militar, de grande marinha, e de poderem até (questão apenas de subtil audácia), mover contra nós as organizações de piratas que lhe infestavam as costas, e ainda alguns povos muçulmanizados, eram uma nação de grande unidade espiritual, de fina habilidade política, muito orgulhosa, e com a qual era difícil discutir. Como se pode ler nas cartas anuais dos jesuítas o país formava um bloco que, tanto pela extensão física como pela estrutura social, deixava estupefactos aqueles europeus chegados dum continente em revolução agrária, com a cristandade em cisma e o poder político fracturado por pequenos condados e pequenos reinos: «a China é, no principal, um grande trato contínuo de terra sem coisas que a divida», escrevia o padre Álvaro Semedo e outro, Luís de Fróis, continuava em 1570: «é um Império, que dizem ser tamanho ou maior que toda a cristandade da Europa junta»! «Monarquia do mundo», exclama com espanto Fernão Mendes Pinto, que sobre ela tece uma verdadeira utopia*, uma teoria de governo e razão pública, a qual juntamente com Os Lusíadas de Luís de Camões e a Mensagem de Fernando Pessoa constitui uma trilogia portuguesa de pensamento político com sentido universal. Dispúnhamos, é certo, de um maior poder de fogo, sobretudo naval, mas as bombardas rasantes não foram nem o único nem o nosso mais importante factor de permanência.
Na história portuguesa do Pacífico Norte antecedem Macau as instalações das ilhas, em Sanchoão e em Lampacau, e as dos portos continentais, em Chincheu e em Liampó para não falar já doutras escalas menores como Quang-Hai, Lamo, Chabaqueo, as enseadas da Preta, do Lobo ou de Rui Lourenço e o próprio porto de Pinhal, que Albert Kammerer foi enumerando no Roteiro de H. de Linschoten. Mas no Sul, Lampacau, entre Sanchoão e Macau, única que na verdade poderia ter persistido, foi absorvida por esta última e em Sanchoão fomos proibidos de ficar desde 1554. Mais ao norte, tivemos de abandonar Chincheu, na província de Fuquiém, e Liampó ou Ning-pó (na linha histórica nossa primeira feitoria), na província de Che-Kiang e, em ambos os casos, mais por erros nossos ou por se ter criado ao Sul um novo e próspero entreposto, que por inconveniência das populações locais. Só ficámos em Macau (que embora conhecida desde 1513 só a partir de 1554 começa a ter cor urbana) por uma conjunção excepcional de circunstâncias geográficas, políticas, religiosas e sociais, tanto nossas como chinesas; e por força, sobretudo, das lições aprendidas, já que em seguida aos desastres do Norte, acrescentaria mais tarde o bispo Saraiva, não poderíamos descansar no facto de os mandarins nos terem dado licença para ficar -- «pois [...] se fizéssemos outras desordens, nos sucederia o mesmo em Macau que nos sucedera com Liampó e Chincheu».
Com base em três dados geralmente admitidos: que em 1554 Macau ainda não existia como povoação organizada, pois até essa data todo o seu mercado era irregular e fortuito; que as nossas dificuldades de comércio só diminuíram com o suicídio de Tchou Houan (1549); que nesse ano, Leonel de Sousa, ao conseguir fixar-se, o faz mesmo em Macau e não em Lampacau (o que deduzo da correspondência dos jesuítas Belchior Nunes, em Março, e M. N. Barreto, em Novembro de 1555; e ainda do irmão Fernão Mendes Pinto, em Novembro do mesmo ano), pode considerar-se que a transferência anterior do escambo marítimo com os estrangeiros, em 1545, fora feita para Lampacau e que Macau foi, portanto, uma criação puramente portuguesa. Teria resultado, penso também, de termos conseguido autorização para aí criarmos nós próprios um Lai-yuan-yi, entreposto ou hotel para forasteiros vindos de longe (como as autoridades o permitiam desde 1070 em Pien-Leang, e desde 1136 em Ning-pó e em Cantão, sendo até neste último que estiveram alojados Tomé Pires e os homens de Fernão Peres de Andrade), e fazermos constar por toda a parte e até entre os próprios portugueses, já que a língua se lhes soltaria de vez em quando, que se tratava de um favor pessoal e intransmissível, embora escondêssemos que findava no estuário.
Se o nome de Macau figura já em O Livro dos pesos, medidas e moedas (redigido antes de 1554), é provável que se trate não da Macau china mas de uma outra existente na baixa Birmânia. Assim, haveria no século XVI duas Macaus, uma no Pegu outra na China, mas quando António Nunes escreveu esse nome, esta última ainda não seria conhecida. Paul Pelliot admite, contudo, que tal facto possa ter contribuído para o baptismo do novo enclave.
Desse modo, forasteiros entre 1513 e 1554 e residentes desde esta última data, os tributos que entrámos a pagar a partir de 1572 foram a imprevidente transformação de um hábito local de cortesia, quanto muito de uma peita racial, num hábito administrativo. Não nos interessando advogar, o que de resto seria improcedente, qualquer direito por conquista, tal imposto apenas significava para nós, e como por enfiteuse, o pagamento anual (de 500 taéis; 600 mesmo, a partir de 1691) de um «foro do chão», de que Goa entenderia, de resto, mais tarde não dever nunca pedir-se escusa por falta de dinheiro, pois o Senado «não devia mostrar a sua necessidade, ainda que fosse grave, em uma cousa de tão pouca importância, pois se fosse uma cessão perpétua desse foro, já se mostraria ao Imperador que não estimávamos tal graça pelo direito mas antes como uma isenção e regalia». O qual, de resto, só passou a ser exigido no tempo do imperador Wan-li, por altura de uma das nossas fases de maior decadência e só terminou com o forte governo de 1849. Conquista requer posse pelas armas, ocupação pela força, e tais factos não constam na história de Macau, as crónicas chinesas não lhes fazem a menor alusão, e nas actas do Leal Senado não se registam nunca os termos conquista, que eram correntes na Índia e na África, ou de entrada, companhia ou bandeira, de uso no Brasil. Não descemos lá derrotando qualquer armada ou qualquer exército. A palavra «colónia» só figura nos textos mandados de fora, de Goa ou de Lisboa. Daquela, sobretudo, que a chegou a designar por «interessante colónia».
A opinião (que se diz encontrar-se no Ming-che) de que teríamos obtido facilidades por nos termos apresentado como habitantes de Malaca (Man-la-kia), já tributários do imperador, só pode ser uma interpretação errada dos textos. Como seria possível receber como malaios aqueles estranhos homens, barbados, de olhos grandes, que só sabiam comunicar com o recurso de intérpretes? A verdade é que nos foi concedida sem cláusula de vassalagem, a qual também não quadraria, de resto, com o clima da nossa política ultramarina: sublinhe-se que além de não pagar inicialmente qualquer renda, não se viu nunca o nome da cidade incluída na lista dos numerosos súbditos da China - Coreia, Laos, Cochinchina, Sião, Sulu, Burma[...]; que os nossos embaixadores nunca aceitaram ir a Pequim com bandeira de tributários (independentemente de os vice-reis de Cantão sempre procurarem olhar a cidade como um mandarim-domínio); que nunca o seu governo dependeu administrativamente do de Pequim; e que a jurisdição dos moradores se estendia inicialmente sobre Heang-shan, onde dispunham de alguns pomares e de alguma lavoura (o nome da ilha de Macau aparece nos nossos textos aportuguesada em Anção).
Mapa de 1792
Posta de parte a guerra, e de acordo com a doutrina política e diplomática da época, nossa presença só poderia justificar-se:
1) por descobrimento ou achamento, seguido de ocupação efectiva e contínua (gerando direitos consuetudinários);
2) por atribuição pontifícia; ou
3) por concessão dos naturais, e estou em admitir que todos esses motivos devem ter pesado. Mas temos que procurar ainda outras razões e antes de mais nas condições físicas e históricas encontradas e nas estruturas que introduzimos, ou aceitamos, tanto para a organização daquele espaço como para a prática geral do seu comércio.
Situada na foz de grandes rios navegáveis, com um clima semelhante ao do Sul da metrópole (pelo menos bem melhor que o da Índia e dos estreitos) e cravada na enseada de uma província fertilíssima, apresentava uma posição geo-fisica e geo-económica invulgar16. Escala natural do Japão era também a charneira das rotas costeiras e das linhas de comércio com as estruturas do Sul: as Filipinas, o Sião, a Cochinchina e Malaca. Chegávamos além disso numa oportunidade pois que naquela data a província de Cantão carecia de rectificar a sua balança de importações, deficitária por o porto se encontrar fechado ao comércio exterior, estar proibida a saída de chineses, viver o país em guerra aberta ou fria com o Japão, e andar o pouco negócio que ainda se fazia maltratado por piratas malaios, japoneses e até chineses bem entendido (o que nos permitiu prestar certos serviços de cruzeiro e polícia marítima).
Nessa circunstância os mandarins fecham os olhos à nossa auto-organização, aceitam o auxílio naval e estudam tão atentamente a nossa maneira de negociar que em 1580 abrem eles também em Cantão, duas vezes por ano, uma feira. Por isso, a primeira versão ocidental foi que o estabelecimento havia sido uma recompensa pela derrota infligida ao pirata Tchang-si-lau (ou Ching Chi Lung) e George Staunton refere terem existido na casa do Senado colunas com caracteres chineses expondo publicamente estas razões. Mas alguns historiadores, como H. B. Morse, admitem antes tratar-se de uma ideia lançada ao ar pelos próprios moradores, com o fim de afastar de Macau outros europeus; contudo, que a limpeza das ilhas (afastando os ladrões) foi um dos motivos que levaram o imperador a consentir a nossa instalação perpétua, está na tradição histórica e em todos os cronistas, até os mais anónimos. Outra versão, também chinesa, recolhida pelo padre Francisco Cardim, é que em 1553 tendo necessidade de secar a mercadoria de duas naus, pedimos ao hai-tao da região, de nome Wang Po, que o deixasse fazer em terra. Obtida a autorização, erguemos algumas barracas e assim teria nascido Macau. Tudo isso se diz. No entanto, aceitando parte delas, eu penso que as razões foram bem outras, e nomeadamente, a execução de uma política de relações comerciais mais dentro dos moldes locais, admitindo o consulado dos mandarins, deixando de molestar os pequenos comerciantes, pagando direitos alfandegários (e logo desde 1544), entregando uma pequena indemnização pela utilização do território, numa palavra, inaugurando ou aceitando outros hábitos de comércio. Assim o do saguate (do «estilo de sagoatear»), coisa a que os mercadores de Goa envenenados de psicologia imperial sempre ficariam resultantes e, por isso mesmo, sempre tão mal servidos na China; assim o do comércio sem moeda («os portugueses [...] levam e despacham as mercadorias por câmbio de outras, pois ali o dinheiro e prata que entrou não volta a sair»); assim o do intermediário ou comprador interposto, entre o produtor e o traficante [...] Quer dizer: deixando desde 1554 de confundir comércio com exploração, deturpação de que ingleses e holandeses tanto nos acusariam mas só eles executariam cem anos depois. E tanto isso foi verdade, que uma das razões da quebra económica verificada no século XVII, resultou do mal-estar criado em Cantão por outra modalidade de pirataria, embora mais modesta, em que caímos: a das fraudes alfandegárias. A estes motivos acrescentemos: a organização municipalista que, apesar do contraste entre essa democracia de mercadores e a autocracia dos mandarins e dos vice-reis, lhe permitiu a maior maleabilidade administrativa; uma ousada política social e religiosa, que a erigiu em reserva e refúgio da China, porta de entrada para os servidores de Cristo (tanto católicos como protestantes) e conduziu aos ritos chineses, às vivências chinesas e aos cruzamentos raciais; e, por fim, uma acção colaborante com Pequim não só no respeito das suas instruções mas ainda na prestação de auxílio técnica e até militar do imperador.
A falta dum instrumento diplomático de tipo convencional fez com que Portugal mal a China se abriu, em 1858, nos termos do tratado de Tientsin, às demais potências europeias, procurasse igualmente cobrir com um tratado a sua presença tricentenária. E já antes, como em 1846 quatro anos depois do tratado de Nanquim, as autoridades de Hong Kong tivessem definido especificamente Macau como «um lugar nos domínios do Imperador da China», isso levara Lisboa, em 1849, para as colocar bem frente a outra realidade a fechar o Hoppo (Hopú) e declarar Macau cidade aberta. Já anteriormente se haviam estabelecido alguns regulamentos locais, por exemplo o de 1843, entre o governador A. A. Silveira Pinto, o procurador do Leal Senado e o mandarim de Cantão, mas a primeira tentativa real dum tratado com a China data de 1862, e foi conduzida pelo governador Isidoro Francisco Guimarães que em Tientsin acordou um protocolo em que a China confirmava (art.º 2.º) a perpétua ocupação e governo de Macau e suas dependências por Portugal como qualquer possessão portuguesa; mas a missão diplomática que dois anos depois lá voltou chefiada pelo governador J. R. Coelho do Amaral não o viu ractificado. Subtilezas semânticas e síncopes de tradução impediram então esse acordo, mas em 1873 as nossas autoridades firmaram com as de Cantão pactos sobre as áreas alfandegárias e, finalmente, em 1887, em Lisboa, a 1 de Dezembro, o ministro dos Negócios Estrangeiros e um representante do Governo Chinês ractificaram o protocolo de 1862 publicando em 28 de Agosto a declaração de que a China confirmava, na sua íntegra, o artigo 2.º do protocolo de Lisboa que tratava da perpétua ocupação e governo de Macau por Portugal, ficando estipulado que comissários dos dois governos procederiam à respectiva delimitação por uma convenção especial, e que «enquanto os limites se não fixassem se conservaria tudo como estava sem aumento, diminuição ou alteração por nenhuma das partes». Mas posteriormente a China não considerou bastantes os acordos posteriores a 1890, sobre a neutralização dos terrenos da Porta do Cerco ao paralelo médio de Apo Siac, nem os de 1902, sobre o caminho de ferro de Macau a Cantão e que então também não ractificámos nós, não só por não se conseguirem capitais suficientes para contrapor os investimentos subscritos por Singapura, mas também porque incluía inaceitáveis formas de processo aduaneiro.
Antigo quartel da Taipa. Foto de Francisco Ribeiro
Porta das ilhas inumeráveis que na boca do rio de Cantão formavam o território mais fértil das fraldas da China, Macau serviu primeiro como escala natural do Japão, onde chegáramos aí por 1541-43, para onde se dirigia inicialmente o nosso comércio, onde acabaríamos por fundar, em 1569, em Vocojura, a cidade de Nagasáqui (que administraríamos quase sem o conhecimento da Metrópole) e por onde ficaríamos até 1639. No Japão fazíamos bom escâmbio, e tão honesto que na falta de capitais nos aceitavam a prática da correspondência, recebendo nós adiantada a prata que trocávamos na China por mercadorias a lá revender, ainda com bom lucro, apesar do juro que nos cobravam por aquele adiantamento, mas que perderíamos pela dupla concorrência dos franciscanos contra os jesuítas (justamente associados a Macau), e dos holandeses contra nós, os quais para se criarem posição junto do shogun lhe faziam crer em que eram nossos inimigos não só no terreno político mas também no da fé. De resto, o destino era outro. As condições naturais daquele bom porto atraíam-nos. E, como disse atrás, as leis chinesas proibiam os seus súbditos, sob pena de morte, viajar para o estrangeiro, disposição que só não alcançava Fuquiém pelo que a cidade seria durante um século, mesmo dois, o único entreposto admitido para o comércio externo, facto que logo aproveitamos para o fechar nas mãos. Era um autêntico monopólio que incluía a cabotagem entre todos os portos do estuário, os do Norte e os do Sul da China e, sobretudo, com o Zipangu (corrupção sónica de Jinpen ou Japão) mas interessava aos próprios chineses que por isso mesmo desde 1579 davam aos nossos barcos uma pauta especial.
Ao cair de 1600 os rendimentos da China, através das alfândegas de Macau e de Goa, já eram uma das maiores se não a maior receita (em direitos sobre os panos, o cobre, o ouro, o almíscar, as porcelanas [...]) que tínhamos no Oriente. Tanto que reis e vice-reis todos se inquietavam se alguma miséria afectava os «opulentíssimos aumentos» da cidade ou se, por falta de monção, as naus da China ficavam por Cochim! Sem economia extractiva, sem usinas, sem lavoura, essa feição comercial foi tão dominante que só a partir dos fins do século XIX, surgiriam na cidade as primeiras indústrias: de fiação de seda e de panchões, em 1882; de cristais, em 1884; de tecelagem, em 1890. E assim se compreende como uma sociedade cuja economia dependia do mercado geral tivesse necessariamente que se enquadrar num sistema social de padrões de liberdade. Ciosamente sempre os defendeu. Por isso, sem fazer ruído (alguém escreveu: «fariseusticamente»), por nosso intermédio e sob nossa rigorosa polícia, negociantes de três continentes lá se foram dando as mãos.
Desta forma obrigada, pela distância a que ficava de Goa e do Reino, a assumir ela própria, as responsabilidades do seu fomento e da sua administração, cedo Macau se criou também uma vida municipal que ficaria única no género dos nossos serviços públicos. E cuja história é uma série de romances. Embora sociologicamente, e durante muito tempo, formasse um simples grupo primário, de pronto passou a ser uma república à parte (aceitando embora, por comunidade histórica, uma super-capital política em Goa; política mas não autocrática) e com dois processos aparentemente contraditórios de governo: unidade e pluralidade, os quais coexistiriam e viriam a ser exercidos colectivamente por portugueses reinóis, os seus descendentes mestiços, os filhos da terra, os chinas de nação e até os estrangeiros, numa das mais perfeitas expressões de municipalismo já realizadas no espaço português. Uma autêntica ilha cívica!
Instruídos por uma larga experiência de comércio e com os territórios do interior a garantirem-lhe o sustento, os moradores decidem, em 10 de Abril de 1585, constituir-se numa pequena comunidade na qual todo o cidadão tinha direito, quando nela nascido, a ser eleitor e ser eleito; regalias que os naturais de outras partes do Reino, e também necessariamente qualificados, podiam alcançar uma vez estabelecidos ou casados na cidade. As eleições faziam-se de três em três anos e em cada uma delas o povo organizava uma pauta com os nomes «desimpedidos» para os vários pelouros, a qual era transmitida a Goa para conhecimento do vice-rei que exigia saber das pessoas destinadas aos cargos, muito embora ciente de as não poder escolher nem sobre elas decidir. Desprovida de rendas e sem impostos organizados, o seu primeiro orçamento foi então o do caldeirão, ou colecta pública voluntária, onde o dinheiro dos remediados se misturava com o dinheiro dos ricos. E os chineses estranhavam!
Reflectindo no Oriente, é certo, o estilo medieval da Europa, espécie de pequeno estado apenas, por assim dizer, nominalmente sujeito à mãe pátria e até 1585 quase desconhecendo o Vice-Reinado de Goa, ao qual só a ligavam a presença temporária dos capitães da rota do Japão, como sucederia de 1557 a 1625 (o tráfico no Pacífico sendo um negócio da cidade, mas o tráfico com a Europa continuando monopólio real, tanto que os direitos de passagem pelos mares de Goa, devidos ao rei, só seriam perdoados durante as guerras com Castela), os mandarins de Cantão viam, estupefactos, aquela pequena república mercantil olhar de frente os governadores que lhe mandavam, os próprios bispos e até o Rei: «[...] pedaço de terra [...] a compreender em si uma grande povoação, de muita quantidade de gente, assim portuguesa como naturais feitos já cristãos, com mulheres e filhos [...] e que nada custou à Coroa de Portugal», expunha para Lisboa o Leal Senado numa carta de 1593; «[...] se acha este Povo tão livre, que os que nele temos o cargo governar, não nos é possível mais que governar pelos ditames de seu querer» dizia em 1647 o governador D. João Pereira; «[...] governando-se entre si pelos principais moradores, tem outro governo diferente das cidades da Índia por depender da vontade dos naturais [...]» -- reconheciam os cronistas da época. Tal poder residia no Senado, formado por homens de poucas ou nenhumas letras (para isso lá estavam os padres!), quantas vezes assinando as actas com uma simples cruz, dotados porém de coragem moral, de bom senso, de prudência, e onde os antigos senadores, os «homens bons» formavam uma espécie de câmara de reflexão. Todo cidadão tinha prática pessoal da vida pública e por isso mesmo os primeiros deputados que a cidade mandará às cortes de Lisboa serão chamados «homens de experiência». Um «capitão da terra» dava episodicamente algum sabor militar ao município, mas além do povo só a Igreja tinha força. De aí, também haverem-se gerado conflitos entre os dois poderes e com o tempo tão graves, que sentindo-se sem energias os bispos acabaram por pedir, um dia, a presença permanente dum oficial de guerra que os secundasse, o que o rei satisfez por carta de Valhadolide, de 30 de Dezembro de 1604. Mas nem os próprios militares conseguiram sempre impor-se, pois em 1717 por exemplo, tendo Goa para lá despachado António de Albuquerque Coelho, bem conhecido na cidade, é tal a resistência que encontra que é levado a resignar, e D. Cristóvão Severim Manuel, que lhe sucede, incapaz de aguentar um Senado que o acusa de iludir os compromissos com a China, não fica mais tempo. Ainda procura reagir banindo para Manila, Batávia ou Madrasta os cidadãos mais recalcitrantes mas em breve lhes segue as pisadas e é castigado pelo próprio rei. Estas questões entre o Senado e os delegados reais geraram por vezes ambientes agitados, tanto que quando em 1710 o Senado «se divide em duas parcialidades», uma a favor e outra contra o governador Diogo Pinho Teixeira, a cidade fica mesmo em convulsão.
Já em 1563, quando Lisboa, desgostosa com o comportamento demasiado independente de Diogo Pereira acabara com o posto de capitão de terra, para que fora eleito, os cidadãos exigiram que continuasse (o que sucederia até 1587), dizendo claramente: « [...] declaramos nós, povo, não consentir outro nenhum governo de eleitos (que o nosso), visto que todas as despesas que para a conservação desta cidade se fazem saem de seus moradores, e que convém que se não faça sem seu consentimento; que esta cidade chama o seu povo, como sempre foi costume, todas as vezes que lhe for necessário tratar tudo o que virem convém para a sua conservação, bom governo e aumento»; mas, por outro lado, também em 1733 em nome de todo o Comum chamam a atenção doutro governador para o indevido uso que está a fazer da tropa; e em 1740 quando um capitão-geral, alegando poderes especiais, pretende interferir nas suas decisões convoca expressamente os seus habituais consultores (entre eles o vigário-geral, o comissário do Santo Ofício, o vigário de S. Domingos, os priores de S. Agostinho e S. Francisco e o reitor da Companhia de Jesus) e com todos se lhe opõe.
As desavenças de 1626 com o governador D. Francisco de Mascarenhas, que apesar de ter sido mandado em seu socorro instalam de forma vulgar, com o qual abrem querelas, cuja casa chegam a bombardear (história que correu mundo e foi saborosamente recolhida pelos espiões holandeses) e que por fim acusam de violento, dissoluto, assassino e «forçador de mulheres e filhas de cidadãos», numa revolta a que mais tarde (1632) o rei, cheio de compreensão, fecharia os olhos -são outro exemplo daquela rebeldia. E as demonstrações abundam, sendo uma das mais curiosas, demoradas e mesmo picarescas a que se travará sobre a côngrua dos bispos, que começa em 1694 quando Dom João do Casal, que havia dois anos se encontrava empossado, apela para os letrados da Câmara para que a aconselhem no pagamento, e arrastar-se-á por mais de um século e não sei quantos bispos.
Porque, fossem quais fossem os atalhos o caminho do poder acabava sempre na Casa da Câmara. Os vereadores negavam-se a tratar fora dela, obrigando os próprios governadores a lá se deslocarem e não eles à sua casa, em havendo qualquer coisa a discutir (quando em 1778 um há que exige consultar os livros do Senado este força-o ir lê-los à Câmara, pois nem para o Palácio deles abririam mãos). Em 1814 nega mesmo o governo a Lucas Jorge Alvarenga, que chega nomeado de Goa.
Deste modo, sujeita dentro do esquema nacional à jurisdição de Lisboa, mas com um Senado autónomo e regendo-se por leis em parte derivadas das condições locais, Macau criou para si um institucionalismo inédito na nossa política, porém tão maleável que só raramente surgiriam verdadeiros conflitos entre as leis gerais do país e as leis municipais, seja justo embora reconhecer, também, que as primeiras concediam às segundas imensa margem de liberdade e que este amor à autonomia administrativa nunca impediu que apoiasse o reino nos seus momentos críticos. De resto, este tecido de valores comuns e de fidelidade aos seus símbolos (Cristo e o Rei) sempre o encontrei, como um dos cimentos cívicos e morais das actividades do Senado.
Por isso, a cidade vive inquieta durante o interregno filipino e se é certo que dentro dos próprios muros houve hesitações e se esboçaram partidos a favor da Espanha, a verdade é que enquanto o capitáo-mor, alguns fidalgos, certos padres e o próprio bispo juravam obediência ao intruso, os moradores fechavam a boca, não se comprometiam, e um quarto de século depois ainda continuavam a agravar os castelhanos que se queixavam para Madrid das «insolências dos vizinhos de Macau», de que a seu turno se vingavam embargando-lhes o comércio com a Nova Espanha e o Peru, e chegando até a pensar ocupar a cidade com as tropas de Manila. E quando lhe chega a notícia de que a metrópole rompera com o domínio espanhol, táo-pouco aproveita a crise para se tornar ainda mais independente (lembremo-nos que no Brasil a cidade de S. Paulo tentaria, no ano seguinte, 1641, eleger por seu rei um tal Amador Bueno), antes aconselha D. João IV que proclame, solenemente, e por toda a parte a sua realeza: «Para Vossa Magestade lograr estes grandiosos tesouros convém e é muito necessário que a cidade de Macau tenha aviso de como Vossa Magestade está em posse e se tem restituído este Reino antes que pelas Índias de Castela o dêm aos Castelhanos em Filipinas»; e quando, a 28 de Maio de 1642, vindo por Batávia, um barco holandês traz o aviso da aclamação, a artilharia dispara, todo o povo (com excepção dum galego que é posto a ferros) participa nas festas, e nem o receio de perder a fazenda que tem em Manila lhe esmorece o entusiasmo. Os holandeses testemunham essa alegria. Em 15 de Junho fazem-se os actos oficiais da aclamação. Até o preço do ouro sobe, e a cidade apressa-se a mandar à corte dois moradores com uma elevada soma em dinheiro, 200 bombardas, e o recado de que se encontra, face ao inimigo holandês, sob a protecção do imperador da China (o que logo o monarca faz saber ao cardeal Mazarino) embora disposta a tomar parte na luta final contra o inimigo, tanto no seu próprio mar como até na Índia, onde o Idalcão recebe dela 300 000 serafins para nos ajudar. E a maneira como uma cidade assim tão livre mandava festejar os acontecimentos reais, desde os nascimentos às aclamações (ou celebrar exéquias pelos reis defuntos), impressionava os chineses e os seus mandarins, muito sensíveis a estas provas de amor e obediência à monarquia. O que também a Coroa não esquecerá. Assim, em 1676, ano em que o padre Verbiest, director do Observatório de Pequim, aproveita a embaixada de Nicolas Milescu para solicitar do imperador a abertura duma estrada que poupasse aos missionários as agruras e os perigos das rotas marítimas, ela logo se opõe para que Macau possa continuar a ser o «átrio privilegiado das missões». Também mais tarde, em 1809, como D. João VI, para evitar Andoche Junot, se deslocasse para o Brasil, a cidade apronta o navio Ulisses e manda ao Rio de Janeiro outra missão carregar de novo o ouro dos moradores e algumas peças de artilharia da rendição de Kam Pau Sai. O que de tal modo sensibiliza o monarca que lá mesmo promove um deles, alivia a cidade de alguns impostos e outorga ao Senado o título perpétuo de Leal, pela lealdade à Coroa, os parabéns recebidos, os serviços prestados, as vitórias sobre os piratas e haver acudido em muitas ocasiões com «úteis e importantes socorros pecuniários à capital dos estados da Índia, em circunstâncias apertadas e árduas». Menos de um ano depois a Coroa facilitava à cidade o comércio directo para os portos do Brasil e generosamente privava-se dos direitos sobre os géneros de luxo que da China para lá levassem os barcos de Macau, «a fim de a animar a entrar em um comércio que não podia deixar de facilitar-lhe extraordinários interesses».
Oito anos depois (1818) vai ao Rio um procurador como deputado do Leal Senado e Cidade de Macau, testemunhar «a fiel vassalagem da Cidade, em todo o tempo, à Real Pessoa e à Real família». Nas instruções recebidas em 18 de Dezembro de 1817 ficara-lhe proibido apresentar quaisquer súplicas, públicas ou particulares, pois a visita deveria ser apenas um «acto todo demonstrativo da satisfação da Cidade».
Mas sempre muito atenta, medita e repensa as ordens que recebe. Assim, como a aliança inglesa entrasse em pleno funcionamento, e de Goa o conde de Sarzedas desse ordem ao Leal Senado para deixar desembarcar as tropas britânicas, entregar-lhes as fortalezas e todas as munições, tanto de terra como navais, e fazer recolher aos quartéis a tropa portuguesa, o Senado, que tem uma larga experiência de sobressaltos, hesita, fica na expectativa, tanto mais que logo em Dezembro já os negociantes chineses de Macau fazem pressão em Cantão para que se embargue o comércio britânico e que os seus sobrecargas sejam mesmo expulsos de Macau. Também os ingleses exageram e a Coroa reflecte. Só que não quer perturbar nem a aliança nem o auxílio que aquela potência lhe presta na península. Por isso vem ordem do Rio para «que as autoridades de Macau continuem a defender com prudência a imunidade do seu território e a protestar com energia contra qualquer violência intitulada ou praticada contra o mesmo território», e ao mesmo tempo informa que já «mandara também fazer na corte de Londres as reclamações convenientes».
Outras instruções seriam ainda mais claras: «ficará o Senado na inteligências das Reais Intenções de que [...] é muito necessário conservar um sistema médio, prudente e ao mesmo tempo enérgico afim de nem se ofender directamente, e com modo desabrido, e com resistência, e teima, em cousas de menos importância o amor-próprio e ambição da Nação Britânica, nem deixar-lhes campo livre para estabelecer pela nossa frouxidão e incúria contrárias a nossos Direitos e Imunidades».
Os vereadores eram eleitos pelo povo, que logo estabelecera sanções (primeiro apenas morais, mas legais a partir de 1689) para quem não quisesse cumprir os cargos ou os cumprisse mal; tomavam posse por três anos, jurando sobre os Evangelhos; e com mais três entidades oficiais e um secretário formavam o Senado, cuja presidência passava de modo rotativo, ano após ano, às mãos de cada um deles.
Nas situações graves, convocavam também, como disse, as autoridades eclesiásticas e militares, bem como os cidadãos mais notórios e todos decidiam em conselho geral, por «votação sempre livre, sem descomposturas, sendo multado o que abrisse boca depois de votar», bem como aquele que descobrisse o que votara, e decidindo por unanimidade ou simples pluralidade de votos. Uma vez tomadas, as decisões eram irrevogáveis, ficando cada um e todos como fiscais e árbitros delas. E o povo vigiava-os, bem como o decoro e a honradez dos cargos, como se viu em 1720 quando alguns procuraram formar uma pequena oligarquia para benefício próprio. Sem recear, também por mais de uma vez chamaram o Rei ao respeito pelos direitos da comunidade. No palácio só os vereadores possuíam cadeiras. O ouvidor e o tesoureiro assistiam sentados em bancos. Encostos, também só para o governador ou bispo, quando convocados.
Em chegando a hora das eleições, o povo aconselhava-os a despejarem-se das emulações próprias, das sugestões alheias, e por isso cuidava, para melhor conservação da república, em só levar àquele tribunal político «sujeitos cujas direcções e prudência (fossem) universalmente aprovadas e aceites do povo». Princípios, de resto que tanto Goa como Lisboa aceitavam e reforçavam até. Um vice-rei, por exemplo, lembrava-lhes, em 1827 que «a concórdia conserva e aumenta as cousas pequenas e a discórdia destrói e aniquila as muito grandes»; e o Conselho de Estado determinava em 1689 que os cargos de eleição eram de exercício obrigatório e ninguém os podia recusar sob pena de lhe serem impostas as penas respectivas.
Homens de poucas letras socorriam-se, se necessário, de quem as tinha, eclesiásticos ou não. Consultavam: «[...] o capitão-general (quere dispor) com o pretexto de que tem ordens Reais, as quais não constam; mas antes tem este Senado privilégios que suspendem o intento do dito capitão-general; e porque a tenção do dito Senado não é mais que a estar no Serviço de El-Rei e deste Povo, lhe pareceu ser conveniente consultar [...]». Como os governadores, em virtude dos privilégios, só tinham poderes sobre eles em casos militares, subtraíam-se continuamente à sua acção (tinham direitos de cavaleiros), embora Goa estivesse sempre a lembrar-lhes que não eram senhores mas sim administradores, «meros administradores e não senhores do cabedal do Senado».
Mas o próprio governo de Goa desconhecia por vezes a importância e extensão tanto das ordens régias como das resoluções locais, cujas cópias pedia então ao Leal Senado, tanto que um dia que o vice-rei mandou que fossem embarcados para Goa certos dinheiros, o Senado e os homens bons da cidade responderam claramente que nada deviam, acrescentando «tudo era um donativo que pelo povo era dado».
O Senado no séc. 18: Reprodução do antigo Senado como aparece no livro chinês «Ao-Mun-Kei-Leok».
Goa fiscalizava a balança dos pagamentos, o movimento da alfândega, o mercado do dinheiro (pois sobre tal movimento cobrava rendas) e isso até 1832 quando Lisboa, concedeu, por fim, que o Senado deixasse de contribuir para as despesas de Goa e que lhe ficasse exclusivo o privilégio do comércio com Solor e Timor, mas respeitosa dos direitos dos moradores ia aceitando a sua independência, por exemplo o daquele já antigo «estilo de se não tirarem papéis do Senado e de não os haver mesmo o Governador, se não por carta». De resto, não era fácil impor-se àquela gente. Se algum governador os mandava fazer vereação em dia ou hora que não queriam, ou por razão que não entendiam, desobedeciam, iam à pesca, faziam-se doentes, ou recolhiam-se aos conventos em exercícios espirituais, como se queixava em 11 de Julho de 1733, um dos governadores. Tão-pouco a estes ou aos capitães-generais lhes era permitido arrogarem-se, esquecendo o Senado, o conhecimento e trato dos negócios estrangeiros da cidade, competindo-lhes apenas (e isso mesmo só a partir do século XIX) presidir, intervir e orientar as discussões que tais negócios, sobretudo os chineses, provocassem na cidade; ou então no que tocasse à admissão ou saída de estrangeiros, cujas licenças só deviam ser concedidas conjuntamente pelo governador e o Senado para «segurança, tranquilidade e boa polícia do Estabelecimento». Mas era sobretudo nos negócios pertencentes aos chinas, ou com outra qualquer nação estranha, que Goa exigia a presença dos governadores. Mas se exageravam mostravam-lhe logo a sua independência, votando contra eles na sua própria presença, opondo-se-lhes sempre que eles não atendessem aos vínculos que a ligavam à China, embora isso resultasse muitas vezes da ignorância de direitos e obrigações com que, mal habituados ao que se passava em Goa, chegavam a Macau. Mas alguns reconsideravam. Assim, António Carneiro de Álcaçova pedia em 25 de Março de 1725 «um catálogo feito e assinado pelo Escrivão da Câmara com todas as Provisões, Alvarás, Cartas e ordens reais [...] tanto de S. Magestade, como do Supremo Senado da Relação de Goa e dos Vice-Reis e Governadores da Índia». Mas não me consta que lho tenham feito.
É certo que os governadores se preocupavam sobretudo por nada se resolver sobre os chineses sem a sua presença, e que o Senado mostrasse coesão e firmeza nos negócios, assentando as suas disposições antes de entabular conversas com os mandarins. Um deles, António José Teles de Meneses, escrevia-lhes em 7 de Agosto de 1748: «para crédito da Nação (devem) assentar no que hão-de fazer antes que chegue o Mandarim, pois não conheça ele incapacidade em nós para governar quatro gatos». E o mesmo governador, em face de certas hesitações, insistia em 16 de Novembro do mesmo ano: «eu só sirvo aqui para desfazer semelhantes absolutos e impedir não usurpem a terra ou caminho desta Praça, por ser de sua Magestade». Mas eles faziam orelhas moucas. O que os levou por vezes também a tomar providências que aos procuradores pareceram violentas. Assim, quando em 1733 o governo de Cantão pensa mudar todo o comércio estrangeiro para Macau e o Suntó começa para isso a sondar os rios, o governador protesta por o terem no desconhecimento e adianta-se ao Senado consultando os bispos, cujos depoimentos constituem hoje importantes documentos para a história da cidade. O problema é além de económico e político, militar. A posição do bispo de Pequim é clara: «o Imperador quer ou não quer o comércio das nações estrangeiras? se o quer porque o não conserva em Cantão? se o não quer, porque não o exclui de toda a China? Ou só quer deste negócio o útil mas não o oneroso?» Entre a prata e as liberdades que os europeus lhe iam metendo pelo Império hesitava, por ventura. Mas era esse mesmo perigo, e não tanto da liberdade como da licença, que D. Frei Francisco, temia em Macau: «Virão os estrangeiros habitar nela. Para os nossos navios ficarão os sobejos dos outros europeus (também as alfândegas embarcarão em conflitos); e o sexo feminino»? -- interroga! Por isso dá um parecer em contrário aconselhando que nos escusemos com a pouca capacidade do rio, o perigo dos tufões, que chegam no geral ao mesmo tempo que os europeus, a incompatibilidade de tantas nações diversas em terra tão pequena, a pouca firmeza de paz entre os respectivos soberanos «e a confusão que há-de necessariamente resultar do concurso do governo sínico e português em terreno tão encolhido». Foram do mesmo parecer os bispos de Nanquim, de Uranópolis e de Macau, mas ao receber toda essa extensa documentação o Senado reconhecendo embora as obrigações e os interesses que o governador tem em defender a terra e a sua paz protesta, de novo, pois que «como cabeça daquele Comum lhe não ocorre menor obrigação, pois nela (todos) têm famílias, fazendas e vidas»; acrescentando: «a nosoutros cabe decidir».
Durante dois ou três séculos foi quase impossível aos governadores, como delegados do Rei ou de Goa, imporem-lhes as suas vontades. Fugiam-lhes das mãos, como sucedeu (exemplo entre muitos) no ano de 1725 em que tendo-se alguns moradores manifestado contra um deles em pleno Senado, tenta obter por escrito os seus nomes e as razões («para ir no conhecimento do que cada um dissera e castigar a liberdade menos decorosa»), mas isso sem efeito, porque lhos negaram. Em contrapartida, foram eles também, por vezes, os zeladores dos direitos cívicos, por exemplo quando em 1839 no meio de grandes desinteligências o Senado chegou apensar suspender as garantias dos cidadãos e o governador se lhe opôs, «por não ser possível sem manifesta infracção das leis existentes, autorizar a cidade a suspender ainda que por momentos as garantias individuais dos seus habitantes», direito só permitido ao Governo Central e só também em casos de rebelião ou invasão do inimigo.
De modo igualmente maquiavélico (e durou setenta anos! de 1554 a 1625) tínhamos estabelecido uma governação volante de três capitães: um em terra, outro já no mar a caminho do Japão e o terceiro, também já em rota, desde Goa para Macau, por forma a nenhum estar por mais de dois ou três anos seguidos, o que dava à administração um ar de descontinuidade, de curta permanência no poder, e enganou os chineses que no método só viram a instabilidade governativa própria de uma nação bárbara (e nem outro juízo seria de esperar por parte de uma sociedade que Teodoro de Almeida compararia, mais tarde, ao regime das abelhas). Com isso coincidiu também o princípio, que se tornaria tradicional, da aludida presidência rotativa no Senado, e se com o tempo esse sistema acabaria por revelar as deficiências de todo o executivo descontínuo (os próprios estrangeiros observavam como isso o desacostumava a obedecer), mostrou-se de início excelente.
As decisões do Senado faziam lei e embora algumas tivessem sido arbitrárias, ou contrariassem certos títulos dos códigos gerais do reino, a verdade é que acabaram por formar a muralha jurídica da «[...] melhor e mais próspera coluna que os Portugueses tinham em todo o Oriente». De modo rábula, e disso se queixaria um dia o próprio rei, utilizava conforme lhe convinha as várias ordens dos vice-reis da Índia, as quais em verdade, pelos seus «desencontros, confusão e diversidade» podiam ser jogadas umas contra as outras.
Mas no que respeita aos capitães da viagem do Japão ainda em 1623, o vice-rei da Índia continuava a instruí-los não lhes caber «nenhuma jurisdição na Cidade, nem cadeirão na Igreja, nem outra preeminência alguma; nem entender mais que na nau, ou embarcação, em que houver de ir fazer sua viagem», independência de que a cidade se orgulhava, pois, como por mais de uma vez afirmou, ia «[...] defendendo-se de seus inimigos, sustentando presídios, fortificando-se com muros, baluartes e artilharia à sua custa [...]», «[...] fazendo em tudo excessivos gastos, e sem a Magestade gastar de Sua Real fazenda cousa alguma». Modus vivendi que o próprio vice-rei parecia reconhecer, tanto mais que o seu Conselho de Estado já lhe dissera um dia «não ser ela terra de Sua Magestade»; muito embora expressando-se assim em 1764 o referido órgão mostrasse ignorar (ou esquecer) o parecer do Conselho Ultramarino que, em 5 de Março de 1719, instruíra a cidade que ela «não podia privar à Magestade a liberdade com que pelos seus vice-reis mandava governar seus vassalos», o que D. João do Casal comentaria quatro anos depois esclarecendo o Senado que «só Príncipe que estabelece a Lei a pode derrogar».
Em 1784 Frederico Guilherme de Sousa tentou, em nome da rainha D. Maria I, dar à cidade uma constituição mista, em que o governador tivesse a seu cargo os casos políticos, civis e militares e o Senado a colecta e administração das rendas e o expediente geral do comércio; mas não conseguiu. A supremacia civil e o poder colectivo ficariam sempre reconhecidos (veja-se como a mesma rainha ordenaria em 1789, a propósito dos desacatos de 1787 com chinas e mandarins, «que nenhum Procurador abrisse chapa nem a expedisse senão em sessão do Senado, para evitar o perigo de se perder a terra pela cabeça de um ou dois homens e por não ser também consentâneo que às chapas que fossem escritas ao Senado se lhes fizesse resposta senão pelo mesmo Senado»). Para manter as funções independentes de outros compromissos, só também em circunstâncias excepcionais, «pela ocasional falta de homens e sujeitos», o Senado aceitaria que soldados da guarnição servissem nos cargos da república.
Já alguém tentou explicar esta forma de governo democrático por uma modalidade imprevista de aculturação incluindo modelos políticos europeus, chineses e japoneses, pois que até frades estrangeiros, italianos e espanhóis aparecem por vezes interferindo no seu governo (assinando mesmo actas de sessões extraordinárias), como sucedeu nas crises de 1764, e que pode filiar-se, de resto, numa tradicional forma comum, pois já nos primórdios da nacionalidade se encontram documentos firmados lado a lado por nomes latinos, germânicos, mouros e judaicos.
Em 22 de Julho de 1814 o príncipe regente, escrevendo do Rio sobre os impostos a aplicar na cidade, reconhecera claramente que «ao estabelecimento de Macau não podiam ser aplicáveis muitas daquelas disposições que formavam o regime geral de Administração em todas as outras partes dos seus vastos Domínios». A sua execução dependia em grande parte da aceitação que lhes desse o Senado, que com toda a sua escala de poderes subsistiu até ao fim do século XVIII, quando foi extinto, mas tão grande era o seu prestígio que logo em 1820 José Baptista Miranda e Lima requeria às cortes a sua restauração (embora adaptada aos princípios constitucionais), e ao mesmo tempo a isenção dos subsídios que a cidade continuava a dar a Goa e a Timor, e preferência para os macaenses em todos os empregos tanto civis como militares, numa palavra: Macau para os macaenses. É que para lá das lutas entre constitucionais e absolutistas, todos estavam de acordo em reinstituir a forma de governo que até 1784 fizera a grandeza daquele burgo, com todos os poderes legislativo, executivo e judicial nas mãos do Senado e relegando o governador e o ouvidor a simples conselheiros e delegados régios.
Contudo, enfraquecido pelas lutas políticas da metrópole, está de novo reduzido em 1834, às funções de simples Câmara Municipal. Sete anos depois, a 20 de Novembro de 1841, um decreto separa-o de Goa. Em 1847 a Procuradoria é anexada à Secretaria de Governo. Em 1865 os procuradores, que desde 1583 eram eleitos pelo povo, passam a ser nomeados pelo rei. Por fim Ferreira do Amaral acabou com o que restava da tradicional independência municipal. A República tentou devolver aos cidadãos esse direito mas o Senado esteve posteriormente suprido por uma comissão administrativa, que se sobrepôs ao sistema democrático que fizera durante quatro séculos a sua glória e a sua independência. O processo histórico e as necessidades políticas impuseram a sua reintegração. Mas haverá agora que adaptá-lo à extrema complexidade administrativa das actuais sociedades.
Em 1585, «[...] indo a povoação com grande aumento (juntaram-se os moradores, o bispo e o Capitão da viagem do Japão (e) pediram a Sua Magestade lhes fizesse mercê de a fazer Cidade por ser necessário governo político», «porquanto, se as Cidades todas pretendem de seus reis suas liberdades, isenções e privilégios para se haverem de conservar, e aumentar, com muito mor razão os devia (aquela) pretender e as merecia pois estava no cabo do mundo, sujeita ao seu Rei, defendendo-se de seus inimigos, sustentando presídios, fortificando-se com muros, baluartes e artilharia à sua custa sem gasto algum de Sua Magestade», acrescentando que «para lá se conservar gastava muito com os chinas gentios».
É atendida. Em 1586 o vice-rei concede-lhe privilégios, honras e mercês iguais aos de Cochim e de Évora, os quais o rei confirma em 1589, embora logo os advirta que com a categoria de cidade se acrescentavam novas obrigações de governo. Depois da independência, em 1643, outro vice-rei referenda o alvará de Filipe II. Mais tarde D. Pedro II e D. João V, definem em termos amplos as jurisdições do Senado e do capitão-general, este como delegado directo da coroa mas sem qualquer gerência na vida política e financeira da cidade, e como esta, receosa, teimasse em não querer capitão-general o rei voltou a expressar-lhe formais garantias quanto às condições a seguir na escolha desse funcionário e das suas exactas prerrogativas. Os macaenses pretendem por fim privilégios iguais aos dos cidadãos do Porto, «havendo respeito ao ser o nome dessa cidade em seu princípio Porto de Amacau». Uma carta régia de 30 de Dezembro de 1709 dá-lhe esses novos direitos, os quais a partir de 1736 já são semelhantes aos de Lisboa. O que deixa boquiabertos os administradores de Cantão! Em 1810 o Leal Senado volta a pedir que se lhe confira o tratamento de Senhoria e o direito de despachar no alto das petições.
Contudo os títulos e os privilégios que se vão acrescentando não conseguem disfarçar o tipo especial daquele entreposto (mais parecido com as feitorias fenícias do que com o género político português) ou o carácter de um governo que discutindo embaixadas, a administração da justiça, aparelhamento de navios, levantamento de tropas, manutenção de cargos militares, pagamento de tenças, construção de casas, entrada ou saída de estrangeiros, montagem de serviços camarários (sirva de exemplo o problema dos cemitérios), portagens de barcos, etc., se garantiu sempre uma forma de independência, de não-metropolização, que permaneceu aos olhos chineses como o verdadeiro aval da cidade. E é isso que importa sublinhar: a dignidade com que continuadamente defendeu os direitos municipais, os de cada morador e os dos chineses nela domiciliados ou em trânsito - frente aos bispos, à cúria, aos ouvidores, aos capitães-generais, aos governadores, aos vice-reis, ao rei e (só com o tempo isso sobressaiu) até à própria constelação de mandarins que a cercava.
Recorde-se (são mais alguns exemplos), como protesta em Lisboa, em 1636, contra o modo como são organizadas as viagens a Solor e certos «negócios do Japão»; em 1709 contra as despesas com pólvora nas salvas particulares das fortalezas, ou em 1720 contra a nomeação de novos funcionários (estando a cidade coberta de dívidas); como em 1719 declara ao rei que ele não pode determinar, sem parecer do Senado, despesas extraordinárias; ou em 1723 (em resposta a um alvará sobre o comércio que o vice-rei mandara promulgar em banco público) «ser indubitável que a toda a lei que não sirva de reformação, que não aumente a conservação da República e que só sirva para a destruição e ruína do Comum dela, em nenhum modo se deve dar exacta execução»; e não só não cumpre o dito alvará como volta, em 1732, a assentar claramente, «a mais votos», que se não dê satisfação às provisões reais que sejam em prejuízo da cidade. Se aceita um casamento de conveniência com os governadores, tanto que em 1764 a um deles requere contra o bispo diocesano que procura ausentar-se para a Europa, não o faz contudo sem reservas, pois quando outro em 1728 tenta impedir as eleições e manda o Senado reunir juntamente com os prelados, responder «não ser estilo convocar Prelados para as eleições nem (receber) ordens do Senhor General»; e lança bando para elas logo no dia seguinte. Com a mesma isenção também chegou a defender o poder central dos esquecimentos ou desvios dos seus próprios representantes ao negar, por exemplo, entrada de navios abonados apenas com cartas de crença do Governo de Goa, por entender que isso contrariava o seu comércio, podia ser motivo para altercações com os mandarins, e deformava a vontade anteriormente expressa por Lisboa. Tanto mais que a experiência demonstrara que tais passaportes poderiam ter sido obtidos subrepticiamente.
Contudo, um século (exactamente 114 anos) depois de instituído, sofreu grave crise eleitoral que levou os vereadores a pediram os pareceres dos prelados, e a assembleia comum resultou numa grande sessão cívica, onde depois do prior do Convento da Graça insistir que «as raízes em que a árvore da República se sustenta são os sujeitos hábeis, prudentes, experimentados, constantes e zelosos nos negócios, tanto com os chinas como com os estrangeiros»; do vigário-geral observar que o «talento e partes que se requeriam para os ofícios de senador, eram tão importantes ao Regimento e conservação da terra quão diferente era o Governo e Administração desse Nobre Senado das mais Câmaras, pois não somente tem o governo político enquanto aos chinas, mas também correspondências com todos os Reis circunvisinhos e Portos de contrato, em contínuo negócio, ora com uns ora com outros, em que para acertos se requere muita prudência, com muita experiência; e para com os chinas, muita indústria e inteligência»; D. João do Cazal, «lamentando a não poucos a muita preversidade» repetiu as condições e requisitos necessários para os cargos da eleição: «homens do bem comum, práticos, e que tenham experiência das astúcias e cavilações com que (outros) quotidianamente procuram tiranizar a cidade; que tenham 25 anos, que não estejam criminosos, que conste serem filhos legitimados e não espúrios, não terem raça infecta e terem talento para governar»; o provincial dos Jesuítas, subscrevendo, a seu turno, o parecer do bispo, acrescentava «que no mais que (fosse) do serviço do Senado (ficaria) muito certo ele e todo o Colégio». Como a questão se arraste, e vendo as eleições anuladas pelo capitão-general Diogo de Melo Sampaio, apelam de novo os senadores para os letrados, retornam-se para D. João do Cazal o qual embora amuado, sem «ter que comer nem com que sustentar a sua casa», volta a afirmar-se confiante no Senado e disposto, «para o que pertencer à conservação do Povo, a derramar até à última gota de sangue».
Mas se o Senado ouvia os prelados apelava maiormente para o povo, pois não se podia alterar coisa alguma de grande, assente pelo Povo, sem o Povo de novo resolver. Assim se vigiava a vida da cidade, não deixando sair os seus capitais (mesmo que fossem da Igreja), nem abandoná-la os moradores mais abastados ou de maior capacidade cívica, ou se colocava no comércio marítimo, nos ganhos da terra ou sob penhores importantes, alguma prata que excedesse as despesas obrigatórias (nas poucas vezes que depois de 1710 isso aconteceu).
Porque, a cidade era um cais. Toda a sua riqueza estava no giro marítimo. Chamava «dinheiro vivo» aos empréstimos que fazia por hipoteca sobre barcos e fretes. Do mar vinham a prosperidade e a conservação. Reconhecia que no seu isolamento estava a sua fraqueza: «nada há sem que venha de fora diariamente e não poderá vir sem que haja guarda-costa com força para comboiá-lo» dizia em 1805 um dos moradores; «no tráfico mercantil se encerrão, como em um círculo, todos os nossos recursos» escreveria outro para o Senado, falando do anfião.
Com o mesmo objectivo a cidade financiava o seu tráfego de alto mar, mas os dinheiros tomados pelos navios eram somente para cada viagem no fim da qual os senhorios deviam pagar os capitais e os prémios, sob pena de penhora das fazendas, e os riscos concedidos só abrangiam as fazendas e nunca os cascos (que eram, de resto, a segurança dos empréstimos). O Senado ficava por fiador, no caso do dinheiro ser de particulares, mas segundo o estilo geral do comércio, o risco marítimo só cobria os «acontecimentos sinistros, tais como força do mar, inimigo, pirata, ou falso amigo e detenção, embargo -- ou outro embaraço por autoridade dos Príncipes ou Magistrados, legalizados com documentos autênticos de direito de força maior e não por barataria do capitão, pilotos e mais tripulação, a chamada rebeldia do patrão, nem os outros sinistros que proviessem do vício próprio da coisa, tal como o mau estado da embarcação, ou a mudança da viagem para portos que não previamente declarados ou venda do navio em portos estrangeiros sem licença do Senado [...]». Para maior cobertura do risco marítimo, o Senado reestrutura em 1821 a Casa de Seguro, reduzindo o valor das acções e facilitando desse modo a afluência de accionistas.
Estes cuidados do mar obrigavam também a cidade a estar atenta aos estrangeiros que por todos os modos, a coberto de quaisquer negócios e nos próprios barcos dos moradores, lá se procuravam instalar. Mas nisso também a ajudavam os reis e os vice-reis, como ainda em 1756 provava uma vez mais o de Goa: «[...] que de nenhuma sorte consinta (o Senado) que barco algum dos dessa cidade seja refretado para a viagem por pessoa de outra nação que não seja a Portuguesa». Essa instrução do conde dÁlva, era de 4 de Abril e em Setembro, a 18, o Senado lançava um Bando, do mesmo teor. Ainda meio século depois, assentaria que nem pelo casamento ficaria aos estrangeiros permitido negociar na cidade.
Se Goa mandava que os admitidos se não deviam expulsar, mas se fizesse «o que se pudesse por meios compentes e civis, de modo a evitar a entrada e moradia de outros, além dos já tolerados», e isso conjuntamente com o governador, o Senado ia mais longe determinando que deviam, contudo, sair os que se negassem à obediência geral ao rei e então mesmo que fossem casados84.
Posteriormente, um despacho do príncipe regente foi mais claro: que nem os de fora nem os portugueses de outras colónias que fizessem o seu comércio com fundos estrangeiros poderiam estabelecer-se na cidade ou lá mandar navios. Já antes fora decretada a pena de 5 meses de prisão para o capitão que trouxesse algum.
Por isso desconfiava sempre, mesmo quando algum navio de outra bandeira alegava necessidade de encostar por ter doentes a bordo ou carecer de consertos de estaleiro, mas compreensiva, também, se algum barco não português chegava da Europa com tão pouca fazenda que se não atrevia a subir a Cantão, pois não ganharia para as despesas da alfândega, deixava-o tratar no cais apenas pelo preço da ancoragem (se o seu pavilhão fosse, bem entendido, duma nação amiga), mas com toda a prudência, pois havia que acautelar o domínio das rotas e a properidade dos navios. Em 1712 o Senado, preocupado com as viagens que os moradores e os religiosos faziam em barcos chineses, proclama que «[...] a felicidade da cidade depende de que os moradores não tenham sociedades com os chinas em compra de navios [...]», previsão tanto mais avisada quanto era certo que logo em 1725 se veria o Suntó limitar a 25 o número de barcos de que a cidade poderia dispor. Por motivos iguais já decidira ela, em 1710, juntar os seus aos da companhia que acabava de se fundar em Lisboa, e desde 1718 que os governadores não podiam ter navio próprio. Nesses e noutros pontos teve que ser formal, apenas facilitando a presença dos sobrecargas, ou taipan, das várias companhias estabelecidas em Cantão, ou os representantes consulares, por serem cabeças das suas nações e não contratarem em outros negócios.
Normalmente, só os barcos da costa ou os de matrícula portuguesa poderiam entrar em Macau mas lá fundeavam também os daquelas bandeiras cujos agentes comerciais, uma vez terminadas as transacções em Cantão, tinham que esperar algum tempo pelo arrumo final das contas. Assim, lá ancoravam espanhóis, ingleses, americanos, franceses, holandeses, suecos, dinamarqueses e russos. Como tais comerciantes eram obrigados a vir a Macau esperar os seus navios (em 1717 o imperador voltara a determinar que nenhum barco estrangeiro poderia passar da cidade e que só lá deveria fazer negócio), o Senado assentaria, de acordo com Lisboa, conceder-lhes hospitalidade, sob a condição de a requererem previamente, de só saírem de Cantão depois de recebida a resposta com o prazo cedido, de cada vez, e o modo porque poderiam alugar casa; e de se retirarem no fim do dito prazo, que seria sempre o da chegada dos «navios da Europa». Se alguma vez esses sobrecargas alegavam, pelos seus cabeças, que como estrangeiros não estavam sujeitos ao nosso rei nem à sua justiça, logo eram expulsos ou postos de quarentena enquanto se advertiam o vice-rei e os mandarins. E estes, o mínimo que nos aconselhavam era o seu despejo. Mas nós não perdíamos facilmente o respeito devido aos seus bens e aos direitos gerais do comércio. No que tínhamos o apoio e o estímulo de Lisboa, cujas ordens eram bem claras e entre 1746 e 1757 por várias vezes repetidas: não consentir morador algum estrangeiro sem expressa licença, «nem mesmo com o pretexto de negócio ou outro que não fosse daqueles que pertencessem ao direito de hospitalidade entre as nações aliadas, como de arribada, introdução ordinária para o Império da China, ou casos semelhantes». Sublinhe-se a expressão introdução ordinária para o Império da China, de que Macau era o pórtico reconhecido, tanto para os missionários como para os comerciantes.
Em 1598 os espanhóis foram autorizados a instalar-se em Pinal (El Pinar) ou Ping-hal, a doze léguas de Cantão, embora proibidos de penetrar no país, limitação que nós completámos cercando o pequeno enclave com todos os impedimentos comerciais e espirituais possíveis e fechando, ainda os olhos e os braços às guerras que lhe passaram a mover os piratas do delta. Também Weddel, ao tentar ir em 1637, tendo por intérpretes alguns cafres fugidos, negociar directamente em Cantão (fingia desconhecer que os navios europeus só lá podiam entrar para descarregar) ficou surpreendido por o não receberem sem um passe de Macau. Nos seus subúrbios estavam, é certo, as feitorias de sete nações ocidentais, mas uma vez concluída a estiva, os seus agentes eram, como disse já, obrigados a descer dentro de oito dias para os abrigos de Macau e lá ficarem até à segunda monção,
O regime da cidade acabou por ser este: admitir as companhias e botar fora os arribaldos a título individual, facto que entre 1746 e 1747 obrigou os franceses, para terem alojamento, a organizarem-se em corporação real. Em 1773 o Senado declarava peremptoriamente que dependendo a cidade do aumento do seu comércio estava decidido não consentir-se nenhum particular estrangeiro, «nem com estabelecimento de moradia».
Dois anos depois, como o Supremo Governo da Índia aconselhasse, como remédio para o deficit económico, a concentração do comércio pela diminuição do número de navios da praça, o Senado reunindo juntamente com os homens de negócios assentava não ser o número de navios da cidade (já houvera mais: 25 no começo de 1700) que fazia cair o comércio; que o dano vinha dos navios estrangeiros que iam a Cantão, porto aberto para todas as nações, e os navios portugueses que vinham pela costa do Malabar, comprando os mesmos efeitos que se negociavam em Macau e provocando grande baixa nessas fazendas; e também as casas de negócio dos estrangeiros que se achavam estabelecidos na cidade; e que a prova de que os barcos não eram causa do prejuízo estava em que os seus donos os não queriam vender.
Como princípio geral voltou a ficar o de «admitir as Companhias e botar fora os particulares», embora sempre com subtileza e maleabilidade, pois como lhe lembrava Goa em 1834 «a respeito do importante negócio da franquia, ou introdução de fazendas estrangeiras nessa Praça cumpre que a tolerância que nisto se tiver seja de maneira tal que se evitem comprometimentos com o governo chinês, e se não cause prejuízo ao comércio e navegação dessa Praça, fazendo-se sempre entender aos estrangeiros que essa tolerância é meramente precária e lhe não dará direito algum para a reclamarem todas as vezes que o Governador e o Ouvidor dessa cidade reunidos com esse Leal Senado julgarem que se deve suspender ou não ter absolutamente lugar».
Por isso, descontadas as experiências de Liampó e de Chincheu, a nossa administração na China pode ser apresentada como o tipo consumado da habilidade política de uma república pobre de terra e de recursos militares, muito afastada do poder central (que também não admitia sem reservas), mas largamente experimentada nos usos e costumes do Oriente: que sabia estar sem ostentação, ganhar com a face de quem perdia e não com o ar de quem grangeava, e sempre disposta a substituir o diálogo das espadas pela dialéctica dos arranjos subtis.
O pensamento político, por assim dizer maquiavélico, firmava-se numa doutrina que o próprio rei acabaria por reconhecer e encorajar ao escrever em 1725 que «prudência e astúcia eram os únicos meios com que poderia resistir às adversidades». Também ainda em 1734, a 23 de Março, o Conselho Ultramarino aconselhava o Leal Senado a «conservar com reputação os negócios da cidade sem dar motivo a rompimento com os Chinas» e o rei voltava a acrescentar em 1768 que «[...] com brandura e suavidade deveria sustentar repulsa [...]» contra os excessos dos mandarins e sobretudo nada lhes conceder por escrito (voltava em 1793) de onde pudessem deduzir depois algum argumento novo. Eram cautelas com que a inteligência política de Lisboa completava a prudência do Senado e sem dúvida necessárias pois que, mesmo assim, o veríamos em 1812 preocupado com que os auxílios prestados nas lutas contra os piratas, se não transformassem em consentidas obrigações militares ou de direito administrativo. Tal habilidade não quis, porém, significar jamais renúncia. A posição era flexível mas de aço. Numa época crítica, mal convalescendo de uma das maiores misérias da sua história, ao ser mais uma vez apoquentada pelas habituais ameaças de bloqueio alimentar, responde aos mandarins «[...] que não perturbem mais a paz pública, não molestem com chapas e deixem viver quieta e pacificamente a cidade [...]». E bem o sabiam os chineses, pois que em 1749 ainda o vice-rei de Cantão escrevia para Pequim que «Macau, sem ser um reino, sendo mesmo um lugar insignificante, tinha várias fortalezas e uma grande e insolente população». Porque em dois capítulos: o respeito pela religião e o decoro do símbolo monárquico sempre os moradores foram irrevogáveis. Eram homens de costumes, só que muitas vezes foram obrigados «entre dois males, a escolher o menor», «entre duas partículas a eleger uma». Então as opções eram orientadas. Habilmente, evitando quezílias inúteis, a cidade ia liquidando em dinheiro os problemas que se lhe levantavam (até a fuga ou o trânsito de alguns dos padres da Propaganda assim se arquivaram).
A política do sagoate acabaria mesmo por tornar-se um acto lícito, e só a sua importância discutível, tanto que algumas vezes ficaria limitado a vinho e doces. Servia essencialmente como pretexto de dissuasão, como meio para abrir um diálogo e por isso se escolhia com cuidado o melhor portador (no caso de um enviado a Tonquim, o padre provincial aconselhava que fosse «pessoa capaz de tratar como o Rei, palpar o negócio da terra e tomar experiência da entrada do porto») entre todos os intermediários possíveis. Poderia até ser um mestiço ou um china; o que se tornava preciso era evitar conflitos com os mandarins, cuja inteligência dos factos era verdadeiramente insondável. Por isso se assistiu às cenas mais estranhas como naquele dia 28 de Abril de 1711 em que o governador-geral mandou prender o provedor da Santa Casa da Misericórdia por se opor à admissão de um china no hospital e, de força, proceder ao seu internamento, porque a única coisa que retinha o mesário era não tanto o não ser costume como «o receio do que poderia ocorrer à Santa Casa, por parte dos mandarins, se o dito china morresse no hospital». Era o saber acumulado da História, como ficou claramente expresso numa acta: «para esta cidade se conservar é necessário viver-se como quem está em terra alheia, e depende de sua vontade e não mostrar lha querem ou lha podem tomar [...]; [...] é necessário dissimular quanto puder ser por se não vir a rompimento com eles, pois a China de guerra não serve [...]». A China de guerra não serve, era a grande lição da nossa experiência. Tanto assim que, em 1665, ano de pobreza, com o comércio fechado, mas avisada pelos padres de Pequim que Cantão já tem ordem para reabrir o porto e só o não faz porque tenta vender-nos a licença, e os moradores admitem ter soado, dessa vez, a hora de pelejar, o padre Manuel Pereira diz-lhes que «as vexações eram na verdade tão grandes que podiam incitar o peito mais covarde a vir a rompimento, o qual era fácil principiar mas se devia ver se se poderia continuar; porque se devia considerar que o Império tinha gente imensurável; que éramos tão poucos que não fazíamos número de mil homens, e estes os demais deles bisonhos moços sem experiência; e ainda que tendo armas ofensivas, havia muita falta das defensivas, e as mais eram daquelas que os romanos chamavam 'proletárias', que são para os incómodos da guerra; que (seria) rompimento contra gente que guerreia com arma irresistível a todo o poder humano, ainda que o de César ou Alexandre Magno, porque tem por arma a fome, com que (bem) nos pode vencer a qualquer tempo [...]; e considerar (ainda) que de nenhuma parte nos poderia vir socorro e a guerra consumiria cada dia gente». Aludia assim a duas das três formas de pressão, quase sempre simultâneas, com que nos cercavam: o corte de mantimentos incluindo o embargo sobre o sal, mais que qualquer outro produto monopólio dos mandarins; o encerramento do comércio; e o esvaziamento demográfico pela saída da população nativa, sem falar na última com que nos ameaçaria um dia o Suntó de Cantão: matar toda a gente, botar a pique os navios e fechar o porto.
O exemplo é edificante porquanto, como a questão se arraste por mais de vinte e quatro meses, o Senado lança mão de todos os recursos: cabedais emprestados sem juros, a renda de um novo imposto imobiliário, o próprio ouro dos depósitos legais (dos órfãos, dos defuntos, dos seguros marítimos), os por-centos do comércio futuro, etc., e já se prepara para negociar, quando os padres voltam a informar que uma favorita do imperador se oferece para conseguir a reabertura por doze mil taéis, e a pagar só depois de publicada a respectiva chapa, tanto mais que Kam-lu, embora mantendo a proibição geral de viverem chineses nas costas de Kuangtung, já dispensara os nossos dessa deslocação forçada para o interior. Confiada, a cidade autoriza os padres a irem mesmo até trinta mil taéis, ao mesmo tempo que Goa presenteia o imperador com um leão e de Lisboa segue uma embaixada, a de Manuel Saldanha, que é bem recebida ao contrário de uma holandesa que ficara coberta de vexames (para o que não pouco deviam ter ajudado os nossos jesuítas).
Em 1719 numa carta para Pequim, em que volta a agradecer não ter sido incluída na proibição geral de navegação para os mares do Sul, o Senado repete: «[...] somos contratadores que vivemos do mar e temos acima de dez mil bocas para sustentar [...]»; não seriam tantas, mas o número ajudaria no ânimo imperial. Tudo isto implicava, e sempre pesou, na forma de organizar as nossas relações com a China. Todos os cuidados pareceram sempre poucos. E tanto à cidade, como a Goa ou Lisboa.
Assim, ainda em 1749 o marquês de Alorna, em 1752 o marquês de Távora e em 1758 o arcebispo primaz ordenavam que os assuntos chineses fossem também sempre comunicados ao governador. E como a maior parte dessas questões exigia muita ponderação, outro vice-rei advertia em 1780 «que nesses assuntos fossem ouvidos conjuntamente pelo Governador, o Senado da Câmara, com os seus homens bons, mais os Religiosos e outras pessoas doutas da terra conforme a qualidade dos negócios». O seu trato era sempre delicado pois ainda em 1789 se viu como foi difícil, quer dizer impossível, à cidade mandar para Goa os casais chinas que ela lhe pedia para desenvolvimento da sua agricultura. Tinham-se recusado ir sem ordem dos mandarins, os quais nem sempre era possível abordar (um simples soco na mesa dado no calor da discussão por um dos ministros do Senado, fora dois anos antes considerado como injúria por um deles, que logo se recolheu arrebatadamente a Honsan, primeiro, e depois a Cantão, e de lá cortou a saída de mantimentos, proibiu às aldeias vizinhas o trato e o contrato com os nossos, nos cercou com tropa e só voltou a Macau quando mudámos de procurador). Também por isso nem mesmo este, nem pessoa alguma, tinha autoridade para se entender com os mandarins ou para lhes expedir chapas sem aprovação do Senado, «para evitar o perigo de se perder a terra por cabeça de um ou dois homens». O trabalho devia ser conjunto e, pelo menos em dois negócios, os da real fazenda e os dos chinas, caberia por isso mesmo o direito de voto no Senado, ao governador e ao desembargador-ouvidor.
Tudo isso deveria correr, porém, sem subserviências. De resto, quando tal aconteceu sempre um governador, o vice-rei ou Lisboa reagiram. Esta última, não compreenderia um «Senado quadrilheiro dos Mandarins» como lhe chamou a propósito da complacência com que deixou julgar e sentenciar um marinheiro de Manila e censurava «o vil abatimento de se prosternarem (às vezes) os Vereadores, baixando sete vezes a cabeça perante os mandarins que iam à sua casa, quando semelhante demonstração não a deviam os Portugueses fazer a Nação alguma, nem os cristãos mais que a Deus». Concordava em «que em semelhantes ocasiões houvesse a maior pompa (mas) sem o abatimento dos genuflexões». Só que nesse passo confundiríamos algumas vezes servilismo com práticas tradicionais de civilidade. E tanto isso estava na nossa subconsciência que quando em 20 de Abril de 1792 Goa aprova as resoluções tomadas pelo Senado, em 9 de Novembro do ano anterior, de não fornecer pilotos aos navios dos chinas para desse modo dificultar a concorrência que nos faziam, logo aconselha que tal proibição «se revista de alguma cor aparente, que lhe tire, quanto puder, tornar-se feia, e desagradável».
Até porque em caso de perigo eminente de forças estrangeiras, em havendo «razões prováveis de guerra, mesmo sem dela se ter certeza física nem Metafísica», como escreveu uma vez (1793) o reitor do Seminário de S. José, a cidade preferia contar com a ajuda, se não provável pelo menos sempre sobre aquelas outras suspensa, das forças imperiais, do que com ajuda de qualquer eventual aliado da Europa. «Dar-se parte aos Mandarins», foi expressão corrente nos tempos em que franceses e ingleses querendo atacar-nos ou entrar como amigos só tinham em vista, face às nossas fraquezas e hesitações, apoderarem-se daquela paragem. A cidade admitiu sempre assim uma dupla responsabilidade, um duplo compromisso, com os superiores de Lisboa e com o governo china. O caso é flagrante em 1808 quando sentindo a impossibilidade de se opor aos Ingleses, que lá querem desembarcar como aliados, e de poder contar com os chinas, «a quem pertence o território», o provincial dos Agostinhos propõe que todas as famílias se retirem para o Brasil com toda a frota da cidade «dando-se parte aos chinas deste abandono ocasionado por falta de meios para a defesa, que eles poderiam buscar, como bem lhes parecesse».
Na mesma sessão, de 20 de Setembro, outros prelados referiram a aliança chinesa e os compromissos morais com Pequim, dadas sobretudo as nossas limitações geoeconómicas: «ser este país um terreno que não dá comer aos seus habitantes para um dia».

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