Páginas

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Vicente Nicolau de Mesquita: 1818-1880

Carlos Montalto de Jesus, no seu livro “Macau Histórico”, criou porventura intencionalmente, o mito do herói romântico corporizado na figura do Coronel Mesquita, de seu nome completo, Vicente Nicolau de Mesquita (1818-1880), insuflando uma energética motivacional mais aguerrida e viril a uma história de Macau que dela parecia necessitada. Com uma poderosa e sedutora escrita de ideias, similar em alguns aspectos com a de Oliveira Martins, Carlos Montalto de Jesus descreve as façanhas de Vicente Nicolau de Mesquita salientando a valentia, a temeridade e a coragem de que deu provas, numa época em que a soberania portuguesa esteve em risco de ser apagada da geopolítica local e regional. Sem a sua acção, Macau tinha, provavelmente, acabado em 1849. Contudo, para entendermos melhor algumas mudanças estruturais que aconteceram em Macau, e que precipitaram para a ribalta a figura de Vicente Nicolau de Mesquita, será necessário evocarmos uma sábia e clarividente providência régia, assinada pela Rainha D. Maria II, em 1844, cujo artigo primeiro rezava assim: “A Cidade de Macau e os Estabelecimentos de Solor e Timor, com todas as suas dependências, e territórios a que tem direito a Coroa portuguesa, formarão uma Província que se denominará – Província de Macau, Solor e Timor – independente, quanto ao seu governo do Geral do Estado da Índia”. Esta fragmentação do mapa político e administrativo do Império, com o progressivo apagamento de Goa e com a emergência de Macau como unidade política autónoma, exigia uma nova política cuja praxis não poderia ser inconsequente e, evidentemente, um novo governador. Assim, foi destacado para governar Macau, em 1846, João Maria Ferreira do Amaral, um destemido oficial da armada, que tinha perdido o braço direito no decurso da guerra da independência do Brasil, na ilha de Itaparica. A sua missão era clara e inequívoca, repor e restaurar a soberania portuguesa, centrada na figura do governador, fazendo cessar a jurisdição chinesa e as constantes e caprichosas interferências dos mandarins.
Por outras palavras, era a imposição pura e dura da soberania portuguesa: o Leal Senado perdeu a preponderância política que detinha no relacionamento com as autoridades chinesas, as alfândegas chinesas foram abolidas, as ilhas da Taipa e Coloane foram plenamente ocupadas, foi enfrentada a tiro a revolta dos faitiões (há uma Rua dos Faitiões), mandou-se rasgar uma estrada estruturante cujo traçado coincidia com um cemitério chinês, entre muitas outras acções. Tudo isto, como é bom de ver, configurou uma verdadeira revolução em Macau. Afrontar o status quo dominante, hostilizar as autoridades mandarínicas e alterar o jogo de interesses económicos, políticos e sociais, foi uma mudança muito grande em muito pouco tempo. Com o pleno apoio do governo régio, em Lisboa. Mas Lisboa ficava muito longe.
Ouçamos Carlos Montalto de Jesus: “Em Cantão, cartazes inflamatórios, afixados com a conivência oficial, ofereciam recompensas pela cabeça de Amaral. Em Macau, a sanguinária conspiração era tão evidente que, dois dias antes da sua consumação, Amaral expressou a D.Sinibaldo de Mas a sua convicção de que cedo ou tarde seria disso vítima; e na própria noite da chocante tragédia, um dos seus criados chineses o avisou do perigo que o aguardava no seu usual passeio a cavalo até à Porta do Cerco – um aviso repetido por um amigo mendigo que encontrou no caminho”. O cobarde assassinato foi consumado no dia 22 de Agosto de 1849. Macau ficou em estado de choque perante a tragédia. Mas não era tudo. Nas cercanias da Porta do Cerco, junto do Forte do Passaleão, reuniu-se um pequeno exército chinês, com mais de 2000 homens, com o objectivo de invadir e conquistar Macau e cuja artilharia começou a fazer fogo sobre o Território. A situação era dramática, o Conselho de Governo estava tolhido de indecisão e a angústia tomava conta de uma cidade que se sentia indefesa. Aparece Vicente Nicolau de Mesquita, então subtenente de artilharia, a oferecer-se “como voluntário para, com um grupo escolhido por ele, assaltar o Forte do Passaleão”, no dia 25 de Agosto. A descrição de Carlos Montalto de Jesus é verdadeiramente épica: “À frente de dezasseis homens com um morteiro - presente de um comandante naval francês a Amaral - Mesquita correu para o campo de acção e entregou ao capitão Sampaio uma ordem do Conselho para avançar com as forças até aos arrozais; aí, ele mesmo carregou e assestou o morteiro. A carga, rebentando onde havia mais gente, dentro do forte, criou um pânico evidente. Foi o único tiro eficazmente disparado. No coice, uma roda partiu-se, incapacitando o morteiro. Mesquita pediu, então, formalmente, ao oficial em comando, permissão para assaltar o forte, apresentando a autorização do Conselho para esse efeito; em seguida, dirigindo-se às tropas, pediu aos que o queriam seguir que dessem um passo em frente. Vinte bravos o fizeram e, com os dezasseis escolhidos que tinham trazido o morteiro, seguiram em fila indiana pelos estreitos caminhos que bordejavam os arrozais para além dos quais, no cume de um escarpado cabeço, o Forte do Passaleão lançava para o ar fumo e estrondos. Quando se aproximavam eram tais o canhoneio e a fuzilaria que o capitão Sampaio chegou a ordenar a retirada. Ao ouvir o toque de corneta para esse fim, Mesquita, sedento de sucesso, ordenou ao seu corneteiro que tocasse para avançar; e enquanto isto ocorria, um tiro, passando a assobiar, fendeu a corneta em dois pedaços. Incitados pelos gritos de Mesquita, lançaram-se então para a frente os galantes trinta e seis, com um entusiasmo digno dos mais orgulhosos dias do heroísmo luso. (…) Quando escalavam o cabeço escarpado, disparando, o inimigo foi tomado de pânico e abandonou o forte, assim como as elevações vizinhas. Quase exaustos sob o sol escaldante, Mesquita e os seus seguidores saltaram para o forte mesmo a tempo de matar um soldado que estava prestes a deitar fogo ao paiol por meio de uma pederneira. Os canhões – de vinte e nove quilos – foram então encravados. Um dos heróis, que trazia uma bandeira portuguesa dobrada junto ao peito, desdobrou-a e, por entre frenéticos vivas, desfraldou-a por cima das ameias do Passaleão, conquistado à custa de apenas um soldado gravemente ferido. (…) Do paiol, Mesquita fez um rastilho de pólvora até ao local onde o grupo estava reunido e aí acendeu-o. Com um estrondo medonho o paiol voou pelos ares e a muralha adjacente cedeu, desmantelando vários canhões”. A emoção eufórica da narrativa não belisca o arrojo e a valentia patenteadas por Vicente Nicolau de Mesquita e pelos seus homens.
A situação serenou e o equilíbrio de forças recompôs-se lentamente, com fragilidades evidentes. Incidentes diversos pontuaram a vida do Território, por exemplo, no dia 21 de Novembro de 1873, há um ataque ao comandante da escuna ‘Príncipe Carlos’, tendo morrido diversos oficiais e marinheiros, acometidos por piratas que tinham um refúgio seguro na ilha da Lapa, ou, ainda, um problema ainda mais delicado, que se prendia com o reconhecimento formal do exercício da soberania portuguesa, em 1878, protagonizado pelo Governador de Macau, Carlos Eugénio Correia da Silva, pelo Governador de Hong Kong, John Pope Hennessy e o Vice-Rei dos dois Kuangs, o Mandarin Liu. A diplomacia começou a trabalhar na elaboração de um Tratado com a China que garantisse a idiossincrasia de Macau, a governação portuguesa e o modus operandi em termos de relações bilaterais. O primeiro passo foi dado pelo Tratado de Tientsin, em 1862, embora não ratificado, pelo que só em 1887 é que foi assinado um Tratado, cujo artigo segundo dizia o seguinte: “A China confirma a perpétua ocupação e governo de Macau e suas dependências por Portugal (…)”. As Portas do Cerco, melhor dizendo, Porta do Cerco, foi inaugurada em 1871, ostentando duas datas simbólicas, uma referente ao assassinato de Ferreira do Amaral (22 de Agosto de 1849), a outra, dedicada a Vicente Nicolau de Mesquita e à Batalha do Passaleão (25 de Agosto de 1849).
Estátua no Largo do Senado em Dezembro de 1966 quando foi derrubada nos eventos do 1,2,3
Vicente Nicolau de Mesquita foi promovido por mérito a Primeiro-Tenente em 1850, atingindo a patente de Tenente-Coronel em 1867. Com o pedido da reforma, em 1873, é promovido a Coronel, com “o vencimento de 54$000 réis mensais”. A progressão dos oficiais do quadro ultramarino revelou-se mais lenta e marcada por algumas situações de injustiça, decorrente do enquadramento legislativo que era diferente daquele que servia os oficiais do quadro metropolitano. O Coronel Mesquita foi particularmente sensível a essa questão. Está por averiguar se lhe terá sido proposta uma comissão no exterior, por exemplo, em Timor. Desempenhou os cargos de Comandante da Fortaleza do Monte, de Comandante do Forte de São Tiago da Barra, de Comandante da Fortaleza da Taipa, tendo integrado o Conselho de Justiça Militar e o Conselho de Governo. Recebeu diversas condecorações, entre elas a Medalha de Prata de Valor Militar, a Medalha de Ouro de Conduta Exemplar, a Comenda da Ordem de Aviz e a Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa.
A vida do Coronel Mesquita terminou numa tragédia. No circunspecto ‘Boletim da Província de Macau e Timor’, de 27 de Março de 1880, o comandante geral interino da Guarda Policial de Macau, major Francisco de Paula da Luz, assina o relatório das ocorrências havidas no dia 20 de Maio: “Pela uma hora da madrugada de hoje houve uma denúncia a S.Exª o Governador de que o Coronel Mesquita assassinara todas as pessoas de sua família achando-se o denunciante, filho mais velho do referido Coronel, gravemente ferido por três tiros de revólver, em vista disto marchou imediatamente, por ordem do mesmo Exmº. Sr. o tenente Azedo com 4 praças do piquete sendo pouco depois seguido pelo comandante da guarda policial com oito homens, e tendo chegado ao lugar da habitação do referido coronel, ali encontrou S.Exª. o Governador, juiz de direito da comarca, delegado do procurador da coroa, e mandando em seguida bater à porta a que respondeu o silêncio; mandou depois buscar uma picareta e arrombar a porta principal e aberta esta entraram parte das pessoas presentes, tendo de se arrombar também a porta interior que dava para a escada e em poucos momentos se deu com os cadáveres de duas senhoras e uma outra ferida gravemente. Devia ter havido grande luta porque tudo estava em desordem, percorrendo-se a casa em procura do mesmo coronel foi encontrado morto dentro do poço, donde se tirou pelas 5 horas da manhã por falta de aparelho próprio e pela enorme profundidade do mesmo. Foram prestados os socorros que em tais ocasiões se devem prestar, recolhendo a ferida ao hospital de S. Rafael, bem como o filho”. Nunca foram devidamente esclarecidas ou estudadas com rigor científico as causas desta tragédia, se loucura, se demência ou outra grave patologia. Leôncio Ferreira, na qualidade de administrador do concelho, publicou um documento, “Relatório do Administrador de Macau sobre a Tragédia da Morte do Coronel Reformado, Vicente Nicolau de Mesquita, ocorrido na noite de 19 de Março de 1880”, que é omisso quanto à origem psicopatológica de tal acto tresloucado. Tendo em conta, lê-se num documento oficial, “os nefandos crimes que aquele oficial acabava de praticar”, não se prestarão honras militares “ao assassino de sua mulher e de seus filhos”, sequer terá o direito a uma sepultura cristã.

Busto no cemitério de S. Miguel

A memória e a honra de Vicente Nicolau de Mesquita foram reabilitadas em 1910 pelo Juízo Eclesiástico, o que permitiu que os seus restos mortais fossem transladados para o Cemitério de São Miguel com as honras inerentes. Muito mais tarde, o Leal Senado inaugura a Avenida do Coronel Mesquita e manda erguer uma estátua em bronze, em frente à sede da municipalidade, com os seguintes dizeres: “Homenagem da Colónia ao Herói Macaense Coronel Vicente Nicolau de Mesquita. 25 de Agosto de 1849. Monumento erigido por subscrição pública e auxílio do Governo da Colónia. Foi inaugurado por ocasião das festas comemorativas do duplo centenário da Fundação e Restauração de Portugal. 24 de Junho de 1940. Oferta do Leal Senado”. Esta estátua foi vandalizada nos tumultos maoístas do 12.3, em 1966, tendo sido retirada e removida para Portugal. No Cemitério de São Miguel existe o seu busto em mármore, em cuja base se pode ler: “Vicente Nicolau de Mesquita, heróico defensor de Macau em 25 de Agosto de 1849”; “Erecto por subscrição pública com o concurso da primeira subscrição promovida pela Comunidade Portuguesa de Hong Kong em 1884”; “Tomou Passaleão em 25-8-1849. Faleceu em 20-3-1880. Foi transladado em 28-8-1910. Teve nesse dia honras militares e eclesiásticas”. Vicente Nicolau de Mesquita foi realmente o último herói romântico de Macau cuja vida terminou em tragédia.
Artigo da autoria de António Aresta, docente e investigador, publicado no JTM de 26-5-2011

Sem comentários:

Enviar um comentário