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terça-feira, 20 de abril de 2010

Edifício das Repartições Públicas


Desenho da fachada feito a partir do projecto original por Tiago Quadros em Autocad.
O Edifício das Repartições Públicas veio substituir o Palácio das Repartições que tinha sido construído entre 1872-1874, em traça clássica, feito de tijolo e madeira. Com o passar do tempo, o Palácio das Repartições estava já muito gasto, devido à formiga branca, a tufões e outras intempéries, acabando por ser demolido em 1946. Aí tinham funcionado vários serviços públicos, os tribunais e durante algum tempo, a filial de Macau do Banco Nacional Ultramarino.
Havendo a necessidade de realojar os serviços públicos, foi construído novo Edifício das Repartições Públicas. O projecto original pode ainda hoje ser consultado. Assinado por António Lei, data de Outubro de 1949. Em Maio de 1951 ficou concluída a construção. Para além do arquitecto, trabalharam no projecto o então Director da Obras Públicas Eng. José Baptista e o Eng. Zhou Zifan. A partir da década de 80, o edifício albergou o Tribunal.

Uma obra, uma época
A obra traduz uma nova mentalidade, a da modernidade. A arquitectura, imposta pelo Regime ou Ditadura de Salazar, chegou a Macau nos finais dos anos quarenta, traduzindo-se, como em Portugal, numa assinalável dinâmica das construções públicas como a edificação de escolas, hospitais, tribunais e de outros edifícios institucionais, num estilo frio, austero e autocrático. Em Macau, entre outros exemplos, refira-se o Hospital Conde de São Januário, o antigo, datado de 1955, e o Liceu Nacional Infante D. Henrique, edificado em 1958. Ambos demolidos nos anos 80.
Seguindo os padrões do Estado Novo, António Lei cria uma obra austera, de simetria rigorosa, grandes vãos, linhas acentuadamente horizontais. Mas, curiosamente, pontuada por elementos classicizantes: as quatro colunas que ladeiam a escadaria de acesso ao edifício, as falsas colunas que decoram o corpo central do edifício e as balaustradas que encimam a cobertura. É esta combinação de elementos modernistas com elementos classicizantes que torna o edifício único. A obra é um dos últimos exemplares da arquitectura portuguesa do Estado Novo existente em Macau.

Pormenores do interior
Através da escadaria, com alguma monumentalidade, faz-se o acesso ao Hall central do edifício. Na planta original, as repartições situavam-se sobretudo no rés-do-chão: a recebedoria, uma secretaria, o gabinete de um director, uma biblioteca, salas diversas e dois pátios. O acesso ao nível superior do edifício fazia-se por uma escada que ocupava o corpo central do mesmo, também ela decorada com elementos classicizantes. No primeiro piso ficavam as salas de audiência do tribunal, uma biblioteca, um arquivo, a sala para um advogado, uma sala para o Delegado, uma prisão, a sala do aspirante, um cartório, um arquivo, entre outras salas com funções diversas. Ao segundo piso podia aceder-se através de dois lances de escadas que ocupavam as faces laterais do corpo central do mesmo. A circulação interna era feita através de dois corredores principais paralelos que percorriam o edifício na longitudinal, unidos por corredores secundários.
A iluminação faz-se por via de grandes janelas e de uma clarabóia, coincidente com a escadaria central. Os caixilhos das janelas são em aço, as ombreiras e as portas em madeira maciça.

A Biblioteca Central e as Políticas do Património
Não existindo nenhuma obra de conjunto sobre o modernismo em Macau, e talvez por desconhecimento da importância do movimento moderno nesta cidade, a arquitectura da época tem sido constantemente menosprezada em termos de preservação patrimonial.
Sendo que se prevê-se para breve o anúncio do novo concurso público de reconversão do antigo Edifício do Tribunal em Biblioteca Central de Macau, convém lembrar que não seria desejável criar aqui um novo BNU, preservando apenas a fachada e destruindo todo o interior do edifício.
Cada edifício é uma entidade autónoma que obedece à lógica de uma época, de um tempo e ao pensamento de um criador, o arquitecto, não devendo por isso ser esquartejado.
A destruição do interior do edifício significa a perda do único edifício que seguindo os princípios da arquitectura modernista do Estado Novo português incorpora de forma única elementos classicizantes, segundo a interpretação do arquitecto local António Lei, e que é dos últimos exemplares desta arquitectura em Macau e em toda a Ásia. Perde-se igualmente um lugar de memórias que se prendem com o julgamento de casos crime de grande relevância para a história da cidade. E restará o quê? Mais uma fachada.
Há muito que caiu em desuso por toda a Europa a política da preservação exclusiva das fachadas, porque com isso preserva-se apenas um certo ambiente urbano, um cenário, mas um cenário sem alma.
Cada corredor, a escadaria, a clarabóia, os vãos, as ombreiras e as portas em madeira maciça, as dimensões dos corredores, dos vãos e das portas, o corrimão das escadas são pormenores que nos transportam, através de uma certa forma de construção, do desenho e dos materiais usados para um outro tempo. Uma vez destruídos ficará irremediavelmente comprometido o conhecimento e a experiência viva daquela arquitectura, daquele tempo, daquele arquitecto. Em termos de políticas de preservação patrimonial, é urgente começar a considerar a integridade da peça arquitectónica como um dos princípios fundamentais da conservação de edifícios com reconhecida relevância histórica. Caso contrário, parece que se preserva, mas não se preserva realmente.
O edifício do Tribunal é classificado, por lei, como edifico de “interesse arquitectónico”, podendo por isso “beneficiar de obras de ampliação, consolidação, modificação, reconstrução e recuperação, desde que estas não prejudiquem as suas características originais, nomeadamente no plano das cérceas (altura) e fachadas”. Acresce que a lei permite a demolição do interior de edifícios com interesse arquitectónico, em caso de parecer favorável do ICM.
A questão é simples: o programa da Biblioteca Central não cabe dentro do Edifício do Tribunal. Criar um lote que vá desde a fachada do Edifício do Tribunal até à fachada do Edifício da Polícia Judiciária, com possibilidade de construção a 30 ou 50 metros de altura, conforme se previa no concurso anterior, não parece uma opção digna de uma cidade que quer ser, ou diz querer ser, uma cidade de património. Primeiro, a opção carece de legalidade porque permite a alteração da cércea em metade do edifício, constituindo por isso um convite à destruição de todo o seu interior. É uma solução que visa contornar a lei e não preservar o património classificado como sendo de “interesse arquitectónico”.
Segundo, se a empresa que ganhou os dois primeiros lugares do concurso conceptual para a Biblioteca Central foi a mesma que efectuou os estudos preliminares, o concurso deve naturalmente ser anulado, mas com ele caem por terra todos os estudos efectuados por carecerem de credibilidade. Torna-se necessária a realização de novos estudos, feitos não por empresas de construção, mas por técnicos especialistas em património local, capazes de consultar as fontes históricas originais, em português, e de compreender a importância cultural, histórica, social e estética da obra em causa. Por fim, será eventualmente necessário rever a decisão de ali se construir a Biblioteca Central de Macau.
Soluções à vista
Caso se insista em converter o Edifício do Tribunal em Biblioteca Central, a solução será aumentar a área do edifico do Tribunal para baixo, isto é, criar 2 ou 3 pisos de cave que possam servir como depósitos da biblioteca, e com isso manter o interior e a escala do edifício. Para além das dificuldades técnicas de uma obra do género, é preciso considerar que a área ganha através desta opção poderá ainda não ser suficiente para cumprir com todos os requisitos do programa da biblioteca e, por isso, talvez não seja viável.
Resta uma última opção: construir um novo edifício, noutro local, como por exemplo nos novos aterros do NAPE, conforme já foi sugerido na imprensa portuguesa e chinesa, junto ao Centro de Ciência e Tecnologia e ao Centro Cultural, criando naquela zona um pólo cultural, sem paralelo na cidade. Seria recomendável a abertura de um concurso internacional para garantir a construção de uma obra que constituísse um contributo para a qualidade arquitectónica da cidade.
O Edifício do Tribunal poderia ser reutilizado para outra função, também de natureza cultural: um show-room para as indústrias criativas de Macau, com salas de exposição, lojas para venda de produtos made-in-macau, livrarias, cafés com bolinhos chineses típicos, salas de chá, lojas de bolinhos e bolachas de Macau, lojas de artesanato urbano, utilizando os pátios interiores e o terraço como esplanadas. Assim, o edifício seria um espaço verdadeiramente útil ao centro da cidade, capaz de surpreender os cidadãos e os visitantes através da criação contemporânea local.
O centro da cidade não dispõem de nenhuma grande sala de exposições e a localização e a dimensão dos espaços do Edifício do Tribunal prestam-se perfeitamente a esse papel. Aí poderiam realizar-se exposições de arte contemporânea local, exibindo a dinâmica cultural da cidade, mas também exposições dedicadas ao património edificado da RAEM.
O Edifício do Tribunal tornar-se-ia num espaço histórico íntegro dedicado à divulgação do património arquitectónico da cidade e à criação e produção contemporânea, passando pelo design de moda, a fotografia, o mobiliário, o artesanato, os brinquedos e a gastronomia.
Faça-se justiça ao edifício.
Artigo da autoria de Margarida Saraiva, Mestre em Planeamento e Políticas Culturais Europeias, Montfort University, Leicester, Inglaterra, Abril de 2010 
Imagens da década de 1960

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