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quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Taipa, 1964

Lancha que fazia a ligação entre Macau e as ilhas

Continua neste post o testemunho de António Cambeta aquando da sua chegada a Macau, ou melhor, Taipa, em Setembro de 1964, ao fim de 45 dias de viagem oriundo de Lisboa, com passagem por Angola e Moçambique a bordo do Índia.

Nessa mesma noite seguiu para a Ilha da Taipa, numa lancha de desembarque dos Serviços de Marinha, no cais da Taipa, nos aguardava uma camioneta militar. Não cheguei a ver o pessoal que fui render, quem nos recebeu foi um cabo que tinha ficado em Macau por mais uma comissão, e foi este que conduziu a camioneta e a levou para o quartel.
Por estrada de terra batida e aos saltimbancos lá chegamos ao quartel que ficava junto ao cemitério chinês. O edifício principal do quartel estava dividos por uma rede, uma parte eram os alojamentos do pessoal e do outro lado da rede funcionava o Centro de Recuperação da Taipa.
A ilha da Taipa não é nada do que é hoje. Naqueles tempos havia somente duas estradas, a pequena vila com seu casario velho no máximo de um andar, os campos esses eram imensos arrozais. Havia ainda, junto à Igreja do Carmo uma praiazinha, a vila tinha uma casa de espectáculos, um barracão, um cinema, cujo projector ficava no outro lado da rua, havia um posto de correios, uma central eléctrica que fazia um barulho tremendo, centro de saúde e a Câmara Municipal.
autocarro que fazia a ligação entre o cais da taipa e o centro da vila

Chegados ao quartel o pessoal queria descansar. Os alojamentos estavam sujos, as gavetas dos móveis da cozinha estavam repletos de fios eléctricos velhos e de garrafas de cerveja. O dormitório, ou caserna, como queiram chamar, era um pequeno quarto e era ali onde iriam passar a dormir os 10 soldados que pertenciam ao grupo que eu comandava.
O cabo que fez a entrega do serviço levou-me até à casa do Sargento que ficava ainda longe das instalações do quartel, lá para os lados da antiga casa da guarda.Tudo por ali era uma matagal, e foi por entre ele que andamos até dar com a casa do Sargento. Como devem calcular estava uma lástima, visto que o Furriel que fui render não habitar lá. As osgas passeando pelas paredes eram muitas, embora a casa fosse espaçosa, tinha que levar uma limpeza completa e ser apetrechada dos materias necessários e não foi nessa noite que o fiz, preferindo ir dormir no gabinete do graduado do posto.

António Cambeta na Taipa em 1964
A noite foi mal passada... a humidade era muita bem como o calor e as ventoinhas, já bem usadas, pouco efeito faziam. Depois de uma vistoria a todas as instalações a conclusão era simples: uma limpeza a 100% e uma arrumação condigna. Na antiga enfermaria que ficava defronte do edificio principal, os vidros da porta estavam partidos, o material farmacêutico estava cheio de pó, havia muitas ampolas de morfina, calculem só, isto junto a um centro de recuperação social. A porta da escotaria tinha igualmente os vidros partidos o armamento que constava de espingardas Mauser e uma pistola metrelhadora FBP apresentavam-se numa estado de má conservação e cheias de ferrugem. Vassouras ou material de limpeza não havia, e muito menos comida. Na espaçosa garagem encontrava-se um jeep, uma camioneta de transporte de água, uma bicicleta e a tal camioneta que nos tinha transportado na noite anterior.
A sessão composta por 10 militares, tinha um condutor e um cozinheiro. Falei com o condutor para dar uma limpeza ao jeep e me levar até à vila afim de adquirir algo que pudesse fazer o pequeno almoço. O cabo que me tinha entregue o serviço, sempre muito prestável, informou-me que o jeep não tinha combustível, a camioneta de transporte de água estava desactivada fazia tempo, a bicicleta tinha os pneus furados e a camioneta que nos tinha servido na noite anterior estava sem combustível. Bem, para o início de uma comissão de serviço as coisas não podiam ter decorrido da pior forma. Telefonei (telefone de manivela) para o quartel da Ilha Verde, em Macau, onde estava sedeada a Companhia de Caçadores 690 à qual pertencia. Falei com o Tenente Barroso de Moura, Comandante da Companhia e dei-lhe conta de tudo o que tinha encontrado.
A resposta do senhor Tenente foi para que eu me desenrrasca-se, e que no dia seguinte então seriam enviados os géneros alimentícios para nós confecionarmos as refeições, quanto às vituras, quando houvesse disponibilidades enviaria um mecânico para ver o estado das mesmas. Sobre a limpeza, que eu usasse uns ramos de árvores como fasculhos, nada mais.
Na companhia desse tal cabo, fui até à vila da Taipa, levando à mão a bicicleta, por entre os arrozais caminhamos, ele o cabo conhecia o dono de uma mercearia, aliás a única existente na Taipa, sita na Rua do Cunha.
O seu proprietário o senhor Mok, falava português. Contei a razão porque ali estava, ele prontamente forneceu umas batatas, azeite, grão e umas latas de atum bem como um frasco de café, açúcar, alguns pãezinhos, tendo emprestado cinco patacas para o conserto da bicicleta. Fiquei-lhe muito grato e disse que dentro de dias viria liquidar as contas. O regresso ao quartel foi feito a pedalar na velha bicicleta, sempre com o cabo ao lado transportando os mantimentos.
Chegados ao quartel o cozinheiro tratou de preparar o pequeno almoço e aprontar o almoço. Defronte do quartel, e perto da antiga enfermaria, havia uma casa habitada pelo cabo Lopes (de origem chinesa) e sua extensa família, ele não estava debaixo das minhas ordens, era o encarregados dos paiois, e estava sob o comando de um Major de Artilharia, cujo gabinete se encontrava em Macau, no Quartel General, em S. Francisco.
O Cabo Lopes, super simpático, foi muito prestável telefonando para os fornecedores, em Macau, solicitando-lhes que nos enviassem alimentos. Na companhia do cabo Lopes fui visitar a carreira de tiro e as suas instalações. Ali nada tinha para constestar, estava tudo direitinho, até o vasto matagal que ia até ao cemitério chinês que ficava ao fundo da carreira de tiro.
Nesse primeiro dia, sabendo dos materias que necessitava para o bom funcionamento do quartel, fiz uma enorme requisição de materiais.
Mas nesse segundo dia de estada na Taipa, duas coisas ocorreram. Recebi dois telefonemas. Um do Delegado de Saúde, este em tom de gozo disse: então temos novo Comandante Militar na Taipa e não se veio apresentar? eu quero verificar o estado de saúde de todo o seu pessoal e de você, como tal e com a maior brevidade venham até ao Posto Médico.
O segundo telefonema veio de Macau, a voz era feminina, não sei se de uma senhora ou de uma moça jovem, era macaense, pois falava português, e queria conhecer-me para nos tormamos amigos, e segundo ela disse tinha sido amiga do Furriel que tinha vindo render, bem nestas coisas militares não se costuma fazer o rendimento das amigas, foi a minha resposta, resultado essa pessoa nunca mais me telefonou.
A pouco e pouco as coisas começaram a se compor, os géneros alimentícios, vindos de Macau, eram entregues todas as manhãs pelo senhor Alcantra, os serviços da Ilha Verde enviaram, quase na totalidade os materias requisitados, e com eles foi feita uma limpeza geral ao armamento e a todas as instalações, incluindo a casa do sargento, que nunca usei. O jeep foi reparado e fornecido o respectivo combustível.
A consulta médica foi muito produtiva, o médico Dr. Serra era uma pessoa super gentil, e receitou cálcio e multivitaminas para o pessoal, e segundo disse estava a nossa inteira disposição para tudo o que fosse necessário.
Tornei-me amigo dele e todas as noites iamos até ao café da Maria, o único na altura, e presentemente ainda lá se encontra, e lá tomavamos o nosso cafezinho e ele bebia brandy Macieira, que eu ajudava a beber um ou dois copitos. Este médico regressou a Portugal em virtude de sofrer de tuberculose (já faleceu).
No final do mês e após ter recebido o vencimento fui ter com o Senhor Mok onde tendo pago tudo que nos tinha fornecido, através dele, que ficou meu amigo, conheci o sapateiro que tinha uma pequena loja de artigos eléctricos, assim como outras pessoas comerciantes que me deram uma preciosa ajuda na integração social, ensinando-me até o dialecto chinês.
Um dia, apareceu no Quartel um major de Artilharia, vinha passar revista à escotaria, já tinha ido aos postos de Ká-Ho e Hac Sá e participado dos furrieis, devido ao mau estado de conservação do armamento, tendo esses dois Furrieis sido punidos com 15 dias de prisão, que foram cumprir no Quartel da Flora em Macau, e depois destacados para o Quartel da Mong-Ha. O mesmo não aconteceu comigo, visto ter todo o material em condições, mas a perseguição continuou, e no mês de Novembro fui punido com 15 dias de detenção por ter feito uma participação contra um internado do Centro de Recuperação Social da Taipa, e a não ter feito seguir pelas vias legais. Fiz a queixa ao Tenente, que servia na PSP e era responsável pelo Centro e a pedido dele o fiz, enfim!...
Nessa altura não havia ainda qualquer ponte a ligar Taipa a Macau. (a ponte Nobre de Carvalho, a primeira ser construída só foi inaugurada no ano de 1974). Para nos deslocarmos a Macau era necessário obter-se uma autorização do Comandante Militar. As deslocações a Macau ou a Coloane eram feitas através das lanchas. Havia duas grandes, a Hoi Veng e a Hoi Heng e duas pequenas, cujos nomes já não me recordo, essas viagens estavam dependentes das marés. Por essa altura estava-se a construir o istmo entre a Ilha da Taipa e a Ilha de Coloane (inaugurado em 1968), com a participação de muitos reclusos do Centro de Recuperação Social, hoje a zona do Cotai. No mês de Dezembro de 1964, em virtude da punição, tive que mudar de unidade, sendo transferido para o Quartel da Ilha Verde. Só assim, 3 meses depois de ter chegado, fiquei a conhecer Macau, mas só depois de ter cumprido os 15 dias de detenção...

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