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sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Romance As Portas do Cerco, 1992

XI – Os Cavaleiros
Cada um por seu lado!... Eu vou sozinho, Eu quero arrostar só todo o caminho, Eu posso resistir à grande calma!... A casa onde viveu o Dr. Sun Yat Sen é um belo palacete de pedra branca com arcos em colchete e trilobados, colunas cor de esmeralda, varandas, balaústres, saliências, um dístico assinalando-a em caracteres dourados sobre fundo azul. Em frente, dois andrajosos condutores de riquexó fumam (ópio, segundo o Sr. Melo) e coçam as plantas dos pés nos assentos de pau das carrocinhas.
O Dr. Sun, empenhado desde a juventude em derrubar a dinastia manchu e implantar a República da China, com o grau de oficial da Dupla Flor da "Sociedade dos Três" ou "Tripla Harmonia", de coração imaculado, filho do céu e da terra e irmão das estrelas, tendo jurado participar nas alegrias e tristezas dos membros daquela confraria, adoptando o nome perante os céus e desdenhando por isso os motejos dos homens; crendo numa verdade pela qual lutaria corajosamente toda a vida, sem más intenções ou falsos sentimentos, sob pena de o céu o observar do alto e os demónios o vigiarem do fundo e de o seu corpo (como o de Ferreira do Amaral) ser cortado com facas e espadas e, de seguida, todos os seus vestígios (tais os do coronel Mesquita), serem eliminados pelos raios, caindo no inferno para todo o sempre e não podendo reincarnar como ser humano por miríades de anos, como castigo do perjúrio ao compromisso testemunhado pelos céus e os deuses, teria conhecido, conversado alguma vez com o Cavaleiro do Oriente ou da Espada, depois Cavaleiro Rosa Cruz da Loja Luís de Camões?
Teria alguma vez sabido que, a sudeste, na casa número 75 da Rua da Praia Grande, rodeado de pinturas, bordados, brocados, jóias, bronzes, esculturas, cloisonnés, champlevés, pedras, vidros, charões, cerâmicas, vivia com os seus familiares, servos chineses, as suas concubinas, cães e uma cacatua, fumando ópio, relendo Verlaine, Maeterlink, Dostoiewski, um advogado, um professor, um juiz, um ensaísta, um esteta que vira a luz em "um país perdido", "um país de pandilhas"?
Ouviria falar de Pui-Sam-Ngá, tuberculoso, trôpego, "vil despojo", de alcunha "amendoim torrado" (Han-Choi-Fá-San), mal sustendo lume nos olhos, pele cor de tabaco sobre o feixe de ossos, já menos homem de negras barbas resplandecentes do que ténue fantasma, espírito prestes a transmigrar, "pun-tio-iane-mean" ou morto-vivo?
Teria tido notícia, enquanto permanecera em Macau, quando trabalhara na sua farmácia da Rua das Estalagens ou no Hospital Kiang-Wu que ali vivia, ali vivia, ali morria aos poucos um Poeta Maior? Há uma fotografia de grupo mostrando o escritor na primeira fila, onde se encontra Sun Yat Sen, numa recepção dada por este. Para além desta prova não muito concludente, atendendo ao seu aspecto oficial, pluralizado, não seria difícil conceber, tendo em conta a pequena superfície do Território, a sua, nesse tempo, menor densidade populacional, que em qualquer rua, jardim, praça, avenida, travessa, calçada ou pátio, em qualquer estabelecimento os dois exilados se tivessem, porventura, cruzado, porventura encontrado, porventura esboçado simultaneamente breve vénia, porventura levado dois dedos às abas dos chapéus, o que, da parte do Poeta, representaria respeitosa reverência, sabendo-se variarem as suas cortesias, a efusão delas – desde o chapéu levado a cobrir o peito côncavo, a tapar o baixo vente, a rodar do crânio para o fundo das costas, encobrindo manguito – , em sentido inverso da consideração que os cumprimentados lhe mereciam.
Podia também ser que por razões distintas, atendendo a que a grande parte da mansão do médico fora adquirida ao potentado chinês, ambos se tivessem reunido em casa de Lou Lim Yeok e, atentamente, observasse o político aquele frágil ser de olhos fulgurantes, tez de bronze, barba muito espessa, estranho aspecto de faquir indiano, de feiticeiro e de profeta, senão mesmo de místico; admirasse o verbo fluente e a prodigiosa memória do ensaísta que, só depois de profarir as conferências, delas elaborava os minuciosos, fidelíssimos relatos e, como juiz, no processo de extradição do mandarim-literato Pui-Keng-Foc, sem ter tomado notas do seu depoimento, prolongando-se por quinze dias, noutros tantos o ditaria para a acta com tal rigor que, embora condenado, não se eximiria o depoente de o felicitar, dedicando-lhe, quando cumpria a pena, versos escritos nas varetas de um leque. Ou com aquela simpatia pelo revolucionário, pelo companheiro de maçonaria, mas também com indícios de uma ironia redutora a boiar-lhe no rosto, o Poeta encarasse aquele camponês europeizado, futuro presidente da República chinesa.
No infindável mar de hipóteses, sempre falíveis, mas, nesta terra de jogo e probabilidades, desfrutando foro privilegiado, porque não conjecturar o Dr. Sun Yat Sen a receber a sós no seu encantador palacete da Avenida de Sidónio Pais o Dr. Camilo de Almeida Pessanha, Ilustre Advogado, Conservador do Registo Predial, Magistrado Insigne, Professor do Liceu de Macau, Escritor e Conferencista, notável da colónia, intelectual de prestígio que Blasco Ibañez com muito interesse visitara, relatando o encontro em páginas do livro A volta ao mundo?
Porque não supor o Dr. Sun dirigindo-se à casa da Rua da Praia Grande, mais parecendo um adelo, aqui chamado tim-tim porque em carrinhos com estridentes campainhas transportavam os negociantes as suas peças de bricabraque, do que a moradia de um Poeta, célebre mesmo antes de ter qualquer livro publicado, aguardando-o em encardida camiseta de onde sobressairiam os seus ossos, num quarto onde permaneceria um cheiro misto, intenso, a incenso de pivete, ópio, suor, pêlo húmido de cão e onde, o olhar nas mãos cruzadas sobre o peito, como miragens, virtualizações, suavemente se sumiriam nas sombras a suas concubinas. Num quarto sem exuberância, extravagância, fausto, com tanto de cenóbio como de cenário fruste, de requinte mesquinho em que o desleixo se instituía sacramento, a cama se transformava em altar, sustentando divindade dependente do ópio, ópio que poderia ser o "país perdido", enlanguescendo o corpo, tornando inerme a alma, mas dando vida aos sons e música às palavras.
Não, não seriam prováveis mais intimidades, conquanto as diferenças linguísticas não constituíssem intransponíveis embargos. Quer falassem chinês, português, uma terceira língua, mesmo que se entendessem sem palavras, não trocariam almas.
Apesar da sua longa permanência na antiga Ho-Keang, apesar das suas concubinas, do seu ópio, dos seus estudos da língua sínica, do carácter e da arte chineses, Camilo que nem por exotismo, esse um tanto folclórico e fim de século fascínio do Oriente, se deixara fotografar de cabaia, conservar-se-ia para sempre europeu do gesto ao gosto, à maneira de ver e de pensar, a esse um tanto olímpico, decadente, desprendido modo de viver e estar no mundo.
Por seu turno, e apesar do cabelo dividido por risca, do colarinho de goma ocultando o nó da gravata, do casaco de bandas muito largas, Sun podia disfarçar-se, nunca, porém, perdendo ou sequer pondo em crise o espírito do Oriente que nele habitaria até à morte, mesmo para além dela.
Assim, se o político não perdera o seu tempo com o Poeta tão-pouco este o desperdiçara com aquele.
Sun Yat Sen, o médico, não conseguindo evitar a violenta hemorragia que a implantação da República iria desencadear por toda a China, morreria no ano de 1925. Dele mal ou bem, mal e bem, agora mal e depois bem ou ao contrário, como costuma suceder no decurso dos tempos, dos caprichosos ventos, falaria a História. Dele ficaria a casa rural onde nascera em Choi-Hang-Chin, o imponente solar do seu exílio macaense.
Camilo de Almeida Pessanha morreria em 1 de Março do ano seguinte. As peças de arte chinesa de que se rodeara, que adquirira a Ah-Men, que regateara nos antiquários de Cantão e de Hong-Kong, não seriam, no entender do Dr. José Figueiredo, seu conservador, dignas de figurarem no Museu de Arte Nacional para o qual o escritor as destinara. Esta afronta, abalando-o, não o faria, no entanto, desistir de coleccionar novos especímenes de arte chinesa sobre os quais recairiam, por certo, idênticos juízos se a sua herdeira e última concubina, Kuoc-Nga-Yen, dita também Águia de Prata, não os dividisse com o seu meio– irmão que o pai abandonara à lei da natureza, expulsando-o de casa por o surpreender a cortejar aquela sua amante, essa pequena, de andrógino rosto, chinesinha que muito o carpiria, embora, à morte do Poeta, se entregasse já a um outro europeu mantendo-se a seu lado até à venda do último móvel valioso, da derradeira acção do Hong-Kong and Shangai Banking com que Camilo a contemplara.
João Manuel Pessanha, bem parecido, elegante mesmo com a farda de mestre de pequena cabotagem dos navios chineses que, navegando sob pavilhão português, eram obrigados a transportar cidadão desta nacionalidade desempenhando cargo meramente simbólico, ao herdar velharias a que Nga-Yen e o seu amante não deitariam mão rapace no dia do funeral do pai, estabelecer-se-ia com um tim-tim. Como a Camilo o ópio, também a tuberculose, bem assim vitimando a por muitos dita falsa meia-irmã, o mataria.
Do Poeta subsistiria também um rastro de ódio, de malquerença, de antipatia, pois jamais lhe poderiam perdoar os que constituíam "o meio acanhadíssimo, mexeriqueiro e boçal – a todos os respeitos misérrimo", os filhos destes e os seus netos o orgulho, o sarcasmo, a concubinagem, a toxicomania, o ateísmo, a filiação maçónica, os poemas; como os chineses não esqueceriam nem absolveriam as críticas, os deprezos, a empenhada participação para reabilitar a odiada memória do coronel Mesquita.
Mas dele ficaria para sempre um livro excepcional de altíssima Poesia e, sem se saber por quanto tempo, o nome da ruelazinha até então denominada do Mastro, entre a Rua das Estalagens e a Avenida de Almeida Ribeiro, onde os ourives, obsequiando-os com cafés, uísques,!coca-colas, mesuras e sorrisos em leque, atendem chusmas, alongando-se para além dos portões, ocupando os passeios das arcadas, de japoneses pacientes, não discutindo preços.
in As Portas do Cerco, 1992 (págs.99 a 104) de António Rebordão Navarro
"A convite do Instituto Cultural de Macau, visitei o território e de lá regressei com “As Portas do Cerco”(1992).
António Rebordão Navarro, natural do Porto, cidade onde nasceu em 1933, começou por se render à advocacia antes de se converter à literatura. Especializou-se em Direito do Trabalho e ainda hoje, reformado das leis mas não das letras, dá pareceres por desvelo e simpatia. Filho de escritor, Augusto Navarro,trabalhou com o pai na revista “Bandarra”, por ele fundada em 1953 e, posteriormente, por si dirigida.

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