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sábado, 18 de abril de 2009

"Macau que eu conheci: anos 20 e 30"

Descendente de uma velha família macaense, Maria do Céu Saraiva Jorge nasceu em Lisboa, em 1919, e foi para Macau com poucos meses de idade, ali permanecendo até aos 16 anos. Estudou depois em Lisboa, no Liceu Maria Amália e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, licenciando-se em Filologia Germânica. Como bolseira do British Council, frequentou a Universidade de Nottingham, tendo feito teatro amador na Inglaterra e aprendido dança na Escócia, além de trabalhar na BBC como locutora nas emissões em língua portuguesa.
Professora efectiva do ensino secundário, deu aulas em Cascais, Faro e Santarém e nos Liceus de Gil Vicente, Pedro Nunes e D. Filipa de Lancastre, em Lisboa. Traduziu os sonetos de Shakespeare, ministrou aulas de Inglês na Emissora Nacional e escreveu uma gramática de Inglês, adoptada como livro único do 2º ano liceal, em 1953. Também foi inspectora nacional do ensino secundário para a disciplina de Inglês no Ministério da Educação, aposentando-se em 1974, pouco depois do 25 de Abril.
Excerto do livro - editado em 2006 e escrito pouco antes -"Macau que eu conheci" de Maria do Céu Saraiva Jorge, com uma descrição da 'cidadezinha' que era Macau por volta de 1930:
“Nos últimos dias do mês de Julho de 1935, decidi que não ia deixar Macau sem a percorrer mais uma vez na minha bicicleta, como tinha feito todas as tardes, desde os meus dez anos. Agora, era para me despedir daquela querida terra, uma vez que ia deixá-la para continuar os meus estudos em Portugal, porque lá não havia universidade.
Macau... linda peninsulazinha, ligada à China por um pequeno istmo, as Portas do Cerco, um arco não muito mais largo que o Arco da Rua Augusta, em Lisboa. A uma pequena distância desta fronteira começava a enorme baía da Praia Grande, agora truncada por aterros com elevadas edificações, mas nesse tempo estendendo-se em formoso arco protegido do mar por uma baixa amurada de pedra, onde nos podíamos sentar à sombra das frondosas árvores que bordeavam esta avenida em toda a sua extensão, em frente de uma aprazível linha curva de bonitas moradias. Distinguia-se ao meio o imponente Palácio do Governador, rodeado por um grande jardim, o gradeamento do qual confinava com uma rua que conduzia, a subir, até ao largo da igreja de São Lourenço, uma das mais importantes da cidade.
Se continuássemos pelo passeio à beira-mar junto à amurada, chegávamos ao fim da curva da Praia Grande, a uma pequena reentrância chamada ‘A Meia Laranja’.
Um pouco mais adiante, do lado direito, erguia-se à beira da encosta o famoso pagode chinês intitulado Ma-kok-Miu, o antiquíssimo templo da deusa A-Ma, que deu o nome ao ancoradouro a que aportaram os primeiros portugueses. De A-ma-ngao, ou seja, Ancoradouro de Ma, teria derivado o nome de Macau.
Neste ponto começa a arredondar-se o extremo da península, dando lugar ao Porto Interior, que, visto em panorama, era um vasto aglomerado de barquinhos chineses, os sampanes, movidos a remos, com uma meia cobertura arredondada, de vime entrelaçado, por baixo da qual se abrigava uma família inteira, casal e vários filhos, rodeados geralmente por alguns galináceos, que por ali andavam à vontade. Mais além, havia uns barcos maiores, as lorchas, e ainda os imponentes juncos, de enormes velas, que faziam lembrar as antigas caravelas portuguesas. Ao fundo, separada desta barreira de navios por uma estreita passagem de água, fechava o horizonte a grande ilha da Lapa, território chinês que, apesar da sua proximidade, os macaenses nunca chegaram a ocupar.
A seguir ao Porto Interior, isto é, na costa oposta à da Praia Grande, a península prolonga-se, estreitando-se até às Portas do Cerco, onde termina o território de Macau.
No largo estuário em frente da Praia Grande viam-se a ilha da Taipa, hoje ligada a Macau por uma ponte, e a muito maior ilha de Coloane, ambas então quase desertas, mas agora densamente povoadas. Um aterro recente estabeleceu a comunicação terrestre entre as duas ilhas. Macau deixou, portanto, de ser uma península ligada à China. Ainda do lado do Porto Interior, avistava-se no meu tempo uma ilhazinha, a Ilha Verde, em frente da qual se situava a única área agrícola de Macau, uma plantação de arrozais, cuidada pelos chineses que habitavam na estreita faixa de terreno à beira-rio que precedia o istmo das Portas do Cerco. Assim ficam encerrados os contornos marginais do que era a península de Macau no meu tempo, os anos 20 e 30.”

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