Garcia Leandro veio a Macau em Junho de 1974, a mando do Movimento das Forças Armadas, para tomar o pulso à situação no território. O New York Times escreveu na altura que o delegado do MFA aproveitou a visita para oferecer a devolução de Macau à China. Mas os documentos confidenciais da época hoje desclassificados apontam noutro sentido: o regime revolucionário português queria dar a Macau uma certa forma de autodeterminação, pouco lhe importando se a população de Macau escolheria deputados comunistas ou até fascistas. Quanto ao resto, a conselho do representante de Pequim no território, o melhor mesmo era manter tudo como antes.
26 de Abril de 1974. Marcada semanas antes, uma recepção do Governador de Macau Nobre de Carvalho ao corpo consular acreditado no território teria sido de rotina como todas as outras dos anos anteriores, não fosse ter acontecido na véspera um golpe militar que acabara com quase meio século de ditadura. Em Hong Kong, o consulado americano, antena privilegiada do governo de Washington para a evolução política na China, transmitiu nesse mesmo dia para o Departamento de Estado a sua primeira informação sobre Macau pós 25 de Abril. Dizia que os funcionários do governo de Macau presentes na recepção consular mostravam-se “pouco surpreendidos” com a ocorrência do golpe e relatava uma confidência do Governador a um diplomata americano de que “não tinha ocorrido qualquer problema” no território nas horas que se seguiram ao anúncio da mudança de regime em Lisboa. O único queixume ouvido na recepção partiu de um “importante empresário de Macau”, que disse esperar que a revolução levasse a uma redução dos “impostos opressivos” que eram cobrados em Macau para suportar a guerra em África.Mas o telegrama do consulado americano para Washington continha uma outra informação ainda mais importante. Citava o representante oficioso da República Popular da China em Macau, Ho Yin (pai do actual chefe do Executivo, Edmund Ho), como tendo afirmado que os residentes locais nada teriam a recear das mudanças políticas em Portugal, porque economicamente Macau era autónomo da Metrópole. Em declarações publicadas pelo jornal Ming Pao, Ho Yin ia mais longe: “Macau esteve sempre incluído no território chinês e regressará à China mais cedo ou mais tarde”.
Era uma reacção a quente, e ainda assim pouco inflamada. A julgar pelas comunicações entre o consulado americano em Hong Kong e o Departamento de Estado – muitas delas secretas ou confidenciais, mas desclassificadas nos últimos anos –, os meses que se seguiram ao 25 de Abril foram a tal ponto de expectativa e incerteza, que raras são as declarações públicas disponíveis dos principais intérpretes da política local. Até Junho de 74, Washington teve por isso que se bastar com os relatos de jornalistas, políticos ou empresários que visitavam o território, a maioria dos quais apontava a manutenção do status quo como o desejo predominante na população de Macau. Até que em Julho foram mandados regressar a Portugal o Comandante Militar e o seu adjunto, medida que coincidiu com a chegada ao território de dois majores do exército português, ambos delegados do MFA.Aparentemente, as mudanças na hierarquia militar destinaram-se a apaziguar um grupo de cerca de 200 oficiais que se mostrava insatisfeito com a permanência em funções de figuras ligadas ao antigo regime, e ameaçava por isso desencadear uma rebelião. Segundo eles, os comandos militares de Macau utilizavam em proveito próprio os recursos das forças armadas, sendo por isso “ladrões” e “burgueses”. Acalmados os ânimos, os delegados do MFA anunciaram então que a Junta de Salvação Nacional pretendia levar a cabo eleições em Macau no prazo de um ano, para a escolha dos representantes da população. Segundo o consulado americano, a promessa terá mesmo incluído a eleição do governador, apesar dos representantes de Lisboa terem deixado claro que Nobre de Carvalho mantinha a confiança do novo poder. Os dois delegados do MFA, Garcia Leandro e Rebelo Gonçalves, diziam que os habitantes de Macau tinham plena liberdade para escolher os seus representantes, “mesmo que fossem fascistas ou comunistas”, mas não teriam a possibilidade de determinar o futuro do território – ao contrário de Timor-Leste, por exemplo, para onde estava planeado um referendo sobre a questão da independência – porque Macau era considerado um “caso especial” entre os territórios ultramarinos.
publicidade nos jornais em 1974
Ho Yin ria-se dos rumores sobre a entrega de Macau
Regressados a Portugal os enviados do MFA, Macau voltou a sentir-se só e abandonada. Nos meses que se seguiram, intensificou-se a especulação sobre o futuro do território, para o que muito terão contribuído as declarações nem sempre coincidentes de responsáveis do novo regime português sobre o processo de reaproximação à República Popular da China. Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros, reconhecia que a presença portuguesa em Macau se devia a acordos celebrados com a “velha China; Almeida Santos, ministro da coordenação interterritorial, garantia que Lisboa só decidiria o futuro de Macau depois de discutir o assunto com a China; e Vítor Alves, ministro sem pasta, defendia o princípio da autodeterminação para o território. Em Setembro, no período de maior incerteza, o consulado americano informava Washington de um encontro entre o editor de um jornal comunista de Hong Kong e o líder da comunidade chinesa de Macau, Ho Yin, tal como lhe foi relatado pelo chefe da delegação do New York Times na colónia britânica. Contou o editor, Fei I Min, que tinha estado uma noite com Ho Yin e ambos tinham “rido um bom bocado” com o alarido que se estava a fazer à volta do futuro de Macau. Para ambos, “um punhado de portugueses estava a dizer disparates sobre uma mudança em breve do estatuto da colónia”. Nada de muito preocupante. “São comunistas, quer dizer, são revisionistas, trostkistas. Não são para levar a sério”, terá dito o editor chinês ao correspondente do NYT. Outubro trouxe a Macau o ministro da coordenação interterritorial. Enquanto o Partido Comunista Português aprovava no seu congresso em Lisboa um programa que reclamava a integração de Macau na China, Almeida Santos sossegava os residentes do território, afirmando que o governo português iria introduzir apenas ligeiras alterações no estatuto político do território, no sentido de uma maior representatividade da população local. Sobre a eleição do governador, nem uma palavra. No mês seguinte, Nobre de Carvalho era finalmente substituído no cargo por Garcia Leandro, nomeado pela Junta de Salvação Nacional. Vingava a política da acomodação à realidade de Macau, que diplomatas portugueses teriam depois ocasião de prosseguir nas Nações Unidas, ao chegarem a um entendimento tácito com os seus congéneres chineses de que o status quo era para manter.Já em 1975, no mês de Janeiro, o ministério português dos Negócios Estrangeiros emitia um comunicado de reconhecimento da RPC como “único e legítimo representante do povo chinês”. O MNE admitia também que Taiwan era parte da China e sublinhava que “o estatuto de Macau seria objecto de negociações a começar em data considerada apropriada pelos dois governos”.Pobre Garcia Leandro. Nem assim se livrou das suspeitas de que teria oferecido a devolução de Macau à China aquando da sua primeira passagem pelo território, em Junho do ano anterior. No dia 1 de Abril, o New York Times dava credibilidade a esse rumor, num artigo assinado pelo seu correspondente na região, David Binder. O agora governador de Macau não esteve de modas: disse que só podia ser uma “brincadeira do Primeiro de Abril”. Ho Yin apoiou-o, desmentindo que alguma vez tivesse proposta a entrega de Macau. E Almeida Santos considerou o artigo do NYT uma “mentira” e especulação mal intencionada”, que tinha em vista atrapalhar os esforços de Lisboa no processo de descolonização em África.
25 de Novembro em Macau foi em Junho
Apesar dos desmentidos, a imprensa internacional continuou nos meses seguintes a noticiar que a China tinha “rejeitado a oferta portuguesa de fazer regressar Macau ao controlo chinês”, ao mesmo tempo que Pequim continuaria a ignorar os pedidos insistentes de Pequim para um rápido estabelecimento das relações diplomáticas. Mas em Junho de 75 todas as atenções se viraram para a Cimeira de Timor, que deveria reunir em Macau os representantes dos principais partidos políticos timorenses. A cimeira acabou por ser um fiasco devido ao boicote da Fretilin, mas a presença do ministro Vítor Alves no encontro acabou por servir de pretexto à resolução da mini crise político-militar que entretanto se vinha desenvolvendo em Macau. O comandante Catarino Salgado, líder da facção mais revolucionária dos militares colocados em Macau, recusou-se a punir disciplinarmente um seu subordinado que fotografou Vítor Alves num clube nocturno do Hotel Lisboa, a dançar com uma prostituta. Garcia Leandro não hesitou e deu ordem de marcha a Catarino Salgado, sancionando desse modo, com algumas semanas de atraso, os desafios que o mesmo militar terá dirigido à sua governação.Resolvido este problema, o governador terá aproveitado também para um ajuste de contas com Ho Yin, segundo se depreende de um extenso telegrama enviado nessa altura para Washington pelo consulado americano em Hong Kong. Por um lado, Garcia Leandro terá travado a pretensão de Ho Yin de ver aprovada a construção de uma refinaria de petróleo em Coloane, projecto em que tinha como sócio Henry Fok, sócio marioritário da Sociedade de Turismo e Diversões de Macau (STDM), concessionária exclusiva dos casinos do território. Por outro lado, terá manifestado a intenção de negociar directamente com o governo de Cantão todas as questões que pudessem ter implicações no volume de receitas de Macau, não ficando assim dependente dos interesses de Ho Yin enquanto empresário. Segundo os americanos, esta investida teria ainda como objectivo “recuperar algum do poder e prestígio que as autoridades portuguesas, de forma humilhante, tinham sido obrigadas a ceder aos manifestantes esquerdistas liderados por Ho Yin, durante os acontecimentos da Revolução Cultural em Macau, em 1966”.
Kissinger cansado da confusão em Portugal
Pequim não aceitava, porém, que as autoridades portuguesas de Macau estabelecessem ligação directa a Cantão. E os dois homens acabaram por ter de adoptar uma postura conciliatória. No dia 10 de Julho, Ho Yin deu uma conferência de imprensa para garantir que empresas estrangeiras a operar em Macau não seriam nacionalizadas e para apelar à confiança de todos no futuro do território. Em contrapartida, dizia ter recebido garantias de Garcia Leandro de que “actividades de espionagem russas em Macau não seriam toleradas”.Esta preocupação assim expressa pelo representante oficioso de Pequim em Macau, não era mera retórica política. Antes, já Garcia Leandro tinha informado o governo português que a China tardava em aceitar o restabelecimento de relações diplomáticas com Portugal, não tanto porque não estava ainda concluído o processo de descolonização em África – tese apresentada oficialmente por Pequim –, mas por desconhecer ainda o grau de influência que a União Soviética teria futuramente na vida política portuguesa.“A China aborda a situação política de Portugal com prudência, por receio de que Portugal venha a cair na órbita de Moscovo”, explicava o cônsul americano em Hong Kong aos seus superiores em Washington, servindo-se para isso de comentários feitos por Garcia Leandro a políticos portugueses. A China preferia a passividade, permitindo mesmo que Macau continuasse a “chafurdar nos seus pecados e num capitalismo sem limites”.Nada podia agradar mais em Washington ao homem que então ocupava o cargo de secretário de Estado na Administração Ford. Numa informação secreta distribuída em Setembro de 75 por várias embaixadas e consulados da região, Henry Kissinger comentava um hipotético restabelecimento das relações diplomáticas entre Portugal e a China afirmando não estar “convencido com o argumento de que a presença da RPC em Lisboa actuaria como contrapeso psicológico à influência soviética”.A isso acrescentou um desabafo: “A cena política portuguesa está já suficientemente confusa, só faltava juntarmos-lhe tutores Maoístas”.
Artigo de Ricardo Pinto no jornal Ponto Final, Macau - 24 de Abril de 2009